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O Pequeno Príncipe, “livro de miss”, e a história de um duplo preconceito

As misses –desastre!– já não leem mais O Pequeno Príncipe. Quando entrevistadas, preferem citar a Bíblia ou algum best-seller do momento. Ou seria esta outra lenda machista?

Cynara Menezes
17 de setembro de 2015, 10h50

Reza a lenda que a fama de O Pequeno Príncipe como “livro favorito das candidatas a miss” começa no ano de 1966, após uma entrevista de Ronnie Von, então ídolo da juventude, ao programa de Hebe Camargo. Como é também aviador, o cantor, aos 22 anos, comentou com Hebe que admirava um escritor com quem tinha em comum o fascínio pelos aviões: o francês Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944). Imediatamente, a apresentadora soltou: “O Pequeno Príncipe!” E, voltando-se para a platéia: “Ele não é a cara do Pequeno Príncipe?”

O apelido pegou e, em outubro daquele ano, o cantor ganharia um programa na TV Record, O Pequeno Mundo de Ronnie Von, onde interpretava um personagem inspirado no principezinho, e lançaria o primeiro LP, com a música Pequeno Príncipe como faixa-título. O sucesso de Ronnie e seus faiscantes olhos verdes teria, enfim, sido o maior responsável por tornar o livro de Saint-Exupéry popular entre as moçoilas de Norte a Sul do País.

Daí até virar “livro de cabeceira das misses” foi um pulo. Nas décadas de 1970 e 1980, jornalistas (certamente homens) começaram a reparar que, em todos os concursos de beleza, era batata: quando o apresentador perguntava sobre as preferências literárias, a bonitona, não importa que fosse de São Paulo, da Bahia ou do Amazonas, indefectivelmente citava a história do loirinho de cachecol perdido no deserto. A “explicação” sempre era a mesma, que as moças tinham se encantado com frases “melosas” como a célebre “tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”.

72 anos após seu lançamento em Nova York, O Pequeno Príncipe continua a ser o segundo livro mais traduzido do mundo –só perde para a Bíblia. No Brasil, saiu pela primeira vez em 1959, em edição portuguesa, e desde então foi reeditado inúmeras vezes. A mais recente delas, pela Geração, no ano passado, com tradução de Frei Betto. Em certos círculos intelectuais brasileiros, porém, se tornou símbolo de literatura piegas e chegou a ser classificado como “auto-ajuda” –principalmente porque era “leitura de miss”. Uma piadinha de machos, um duplo preconceito: com o livro (um clássico) e, claro, com as misses.

O Pequeno Príncipe é uma história ao mesmo tempo autobiográfica e cheia de imaginação. Também possui metáforas poderosas. A conversa entre o menino e a serpente no deserto remete ao Novo Testamento. Experimente relê-lo: ao encontrar o aviador, o principezinho começa a rememorar a jornada em direção à Terra. Desde o seu planeta, onde cuida de uma rosa e evita o crescimento de baobás, até chegar ao nosso, ele passa por cinco outros lugares: o planeta do bêbado, o planeta do acendedor de lampiões, o planeta do geógrafo, o planeta do astrônomo e o do homem vaidoso.

baoba

Tudo que é possível pensar a partir destes arquétipos permanece atual. Toda vez que eu penso no reizinho, por exemplo, lembro dos marqueteiros e suas pesquisas qualitativas, sempre fazendo o político prometer exatamente o que o eleitor deseja –o reizinho, para manter intacta sua autoridade, só dava ordens que estavam prestes a ser cumpridas. O homem de negócios, ocupadíssimo em comprar e vender estrelas, é o legítimo representante do 1% que segue no topo do mundo. O Pequeno Príncipe não é nada piegas. É poético. E extremamente bem escrito.

Ganhou fama de “boboca” porque era lido por misses, mulheres bonitas, logo “burras”. Com menos de 20 anos de idade, em média, pelo menos naquela época, as misses possivelmente eram ingênuas. Mas apreciar O Pequeno Príncipe demonstra, ao contrário, que elas tiveram uma sensibilidade para se dar conta da grandeza da obra muito maior do que seus detratores –delas e do livro. Quem era o burro da história, afinal? As misses, que perceberam estar diante de uma obra-prima, ou aqueles que estamparam nele o pejorativo “livro de miss”?

Os críticos estrangeiros imediatamente respeitaram esta pequena grande obra de Saint-Exupéry. Foi justamente uma mulher, P.L.Travers (1899-1996), a autora de Mary Poppins, outro clássico, uma das primeiras a reconhecer o valor literário do livro, em uma resenha que escreveu em 1943 para o New York Herald Tribune. “O brilho de O Pequeno Príncipe irá incidir lateralmente sobre as crianças. Ele as tocará em algum lugar que não é a mente e brilhará até que chegue o tempo em que elas o compreenderão”, escreveu. Pois é, as misses compreenderam.

pequenop

Muitos literatos norte-americanos e franceses chamaram a atenção para o fato de, apesar das delicadas aquarelas feitas pelo próprio autor, o livro não ser realmente para crianças, porque, ora vejam só, “é complexo demais”. Houve quem enxergasse nele uma alegoria para a guerra que destroçava a Europa, um dos temas caros a Saint-Exupéry, ao lado da aviação. Ele escreveu a história quando estava exilado nos EUA. O amor incondicional do príncipe pela rosa seria inspirado na tortuosa relação entre o autor e sua esposa, Consuelo. Na edição alemã, de 1949, o filósofo Martin Heidegger (1889-1976) o avalizou como seu “livro favorito”. Alguns críticos encontraram paralelo entre O Pequeno Príncipe e o existencialismo, sobretudo O Estrangeiro, de Albert Camus (1913-1960).

Invenção masculina, o mito da beleza como sinônimo de falta de inteligência atinge diretamente a mulher –com o homem, o machismo costuma lançar suspeitas sobre a masculinidade do guapo, o que não é menos grave. Quem sabe a má fama de O Pequeno Príncipe no Brasil como “literatura menor” também não esteja relacionada ao preconceito, por ter sido catapultado por um homem bonito?

Com a mulher, no entanto, esta noção da “bonita e burra” é mais nocivo, porque questiona sua capacidade profissional e embute a ideia da mulher-objeto, sem pensamento ou personalidade e com inferioridade cognitiva. Concursos de beleza não ajudam muito a colocar em xeque estes estereótipos, é verdade, mas neste caso ficou patente que houve uma injustiça dupla. Julgar os outros pelas aparências não é bem um sinal de sagacidade. “Só se vê bem com o coração, o essencial é invisível aos olhos”, diria a loiríssima miss Santa Catarina, soltando um beijinho sobre o ombro.

Um efeito perverso desta implicância é que as misses –desastre!– já não leem mais O Pequeno Príncipe. Quando entrevistadas, preferem citar a Bíblia ou algum best-seller do momento. Ou seria esta outra lenda machista?

(A capa original do livro)

A capa original do livro


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(2) comentários Escrever comentário

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Osvaldo Aires Bade em 17/12/2017 - 08h44 comentou:

Mas ser Miss não é “exploração das mulheres”?

Responder

Renan II de Pinheiro e Pereira em 29/06/2020 - 19h03 comentou:

Tenho minhas dúvidas se a história de “livro de misses” começou com Ronnie Von, pois ele mesmo disse em entrevistas que ficava desconfortável em ser chamado de “O pequeno Príncipe” por ser fã dos outros livros de Exupéry, mais relacionados com a aviação (ele é piloto amador), enquanto O pequeno Príncipe era o “livro das misses”, sinal de que a fama já existia (com o passar do tempo ele reviu seu posicionamento e reconheceu que é o melhor livro do autor). O mais triste é que, aparentemente, essa – má – fama só existe no Brasil.

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