Socialista Morena
Cultura

A morte segundo os mexicanos, por Octavio Paz

"A indiferença do mexicano diante da morte se nutre de sua indiferença diante da vida. O mexicano não só pretende a intranscendência do morrer como também a do viver"

La Catrina, de José Guadalupe Posada, 1913
Da Redação
02 de novembro de 2015, 21h11

Todos os Santos, Dia dos Mortos

Por Octavio Paz (1914-1998)
Tradução Cynara Menezes

(…)

Para o habitante de Nova York, Paris ou Londres, a morte é a palavra que jamais se pronuncia porque queima os lábios. O mexicano, ao contrário, a frequenta, burla-se dela, a acaricia, dorme com ela, a festeja, é um de seus brinquedos favoritos e seu amor mais permanente. Claro, em sua atitude há quiçá tanto medo como na dos outros; mas pelo menos não se esconde nem a esconde; a contempla cara a cara com impaciência, desdém ou ironia: “se vão me matar amanhã, que me matem de uma vez”

A indiferença do mexicano diante da morte se nutre de sua indiferença diante da vida. O mexicano não só pretende a intranscendência* do morrer como também a do viver. Nossas canções, ditados, festas e reflexões populares manifestam de uma maneira inequívoca que a morte não nos assusta porque “a vida nos curou de espantos”. Morrer é natural e até desejável; o quanto antes, melhor. Nossa indiferença diante da morte é a outra cara de nossa indiferença diante da vida. Matamos porque a vida, a nossa e a alheia, carece de valor. E é natural que assim ocorra: vida e morte são inseparáveis e toda vez que a primeira perde o significado, a segunda se torna intranscendente*. A morte mexicana é o espelho da vida dos mexicanos. Diante de ambas o mexicano se fecha, as ignora.

(O escritor mexicano Octavio Paz aos 23 anos)

O escritor mexicano Octavio Paz, Nobel de Literatura de 1990, aos 23 anos

O desprezo à morte não se dissocia do culto que lhe professamos. Ela está presente em nossas festas, em nossos jogos, em nossos amores e em nossos pensamentos. Morrer e matar são ideias que poucas vezes nos abandonam. A morte nos seduz. A fascinação que exerce sobre nós talvez brote de nosso hermetismo e da fúria com que o rompemos. A pressão de nossa vitalidade, constrangida a expressar-se em formas que a traem, explica o caráter mortal, agressivo ou suicida, de nossas explosões. Quando explodimos, ademais, tocamos o ponto mais alto da tensão, roçamos o vértice vibrante da vida. E ali, na altura do frenesi, sentimos a vertigem: a morte nos atrai.

Por outro lado, a morte nos vinga da vida, a desnuda de todas as suas vaidades e pretensões e a converte no que é: meros ossos e uma careta assustadora. Em um mundo fechado e sem saída, onde tudo é morte, a única coisa valiosa é a morte. Mas afirmamos algo negativo. Caveiras de açúcar ou de papel de seda, esqueletos coloridos de fogos de artifício, nossas representações populares são sempre uma zombaria da vida, uma afirmação do nada e da insignificância da humana existência. Adornamos nossas casas com crânios, comemos, no dia dos defuntos, pães que fingem ser ossos e nos divertem canções e anedotas nos quais a morte careca dá risada, mas toda essa familiaridade fanfarrona não nos dispensa da pergunta que todos nos fazemos: o que é a morte? Não inventamos uma nova resposta. E cada vez que nos fazemos esta pergunta, encolhemos os ombros: que me importa a morte, se não me importa a vida?

(Trecho de Todos Santos, Día de Muertos, do livro El Laberinto de la Soledad. Fondo de Cultura Económica, México, 1994. Tradução minha para este post)

*A expressão “intranscendência” não está dicionarizada em português, a não ser na acepção jurídica. Como achei perfeitamente compreensível no texto (além de bela), a mantive, assim como “intranscendente”. 

 

 


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