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Cultura

Andy Singer: o humor contra a estupidez do automóvel

Publicado pela primeira vez no Brasil, cartunista e cicloativista estadunidense dá entrevista exclusiva a nosso colunista de mobilidade urbana

Dionizio Bueno
08 de março de 2018, 16h50

Se você costuma ler blogs ou livros que tratam de mobilidade urbana e cultura da bicicleta, você provavelmente já viu por aí algumas de suas charges. São mensagens claras e diretas, que mostram sem eufemismos a completa estupidez do automóvel.

Primeiro livro de Andy Singer publicado no Brasil, CARtoons – atropelando a ditadura do automóvel está sendo lançado neste mês pelas editoras Autonomia Literária e Avocado Edições. Com mais de uma centena de charges, o livro é recheado de breves textos do autor, nos quais ele fala dos impactos econômicos, sociais, ambientais e urbanísticos de um projeto de sociedade centrado no automóvel. Os textos são fartos em dados com suas respectivas referências, sendo uma ótima entrada para a pesquisa sobre mobilidade.

Mas o mais interessante é que o livro não fica apenas nos efeitos desastrosos desse verdadeiro “CARmagedom”. Especialmente em seus capítulos finais, Singer aponta caminhos para uma libertação perfeitamente factível, ainda que em pequena escala, da ditadura exercida por essa máquina que afasta as pessoas de seus locais de trabalho, destrói o convívio social, rouba o nosso tempo, entope nossos pulmões e nos enlouquece por meio da raiva, do barulho e do encarceramento. E lembremos que a mudança em pequena escala é o primeiro passo para a mudança generalizada e radical, que não sabemos se vamos ver em nosso tempo de vida mas, nem por isso, podemos deixar de trabalhar por ela.

Singer aponta caminhos para uma libertação factível da ditadura exercida por essa máquina que afasta as pessoas dos locais de trabalho, destrói o convívio social, rouba tempo, entope pulmões e nos enlouquece de raiva, barulho e encarceramento

Andy Singer estará no Brasil por alguns dias, participando de eventos em São Paulo e do Fórum Social Mundial em Salvador, entre os dias 13 e 17 de março. A programação completa está disponível na página da Fundação Rosa Luxemburgo, que apoiou a publicação e trouxe o autor para cá.

A seguir, a entrevista exclusiva que Andy Singer concedeu a esta coluna, por e-mail.

DB – Como você vê o fenômeno SUV que acontece atualmente? Como podemos explicar esses tanques de guerra urbanos? Onde foi que a civilização errou?

AS – Somos obcecados com nossa própria segurança em detrimento de qualquer outra coisa. Como os veículos maiores são percebidos como mais seguros, o tamanho dos carros continua aumentando ou “escalando”. De fato, Ford Escalade é o nome de um SUV gigantesco. É um exemplo perfeito da cobiça humana. Queremos segurança para nós, mas não nos importamos com as outras pessoas. Então compramos carros enormes e não estamos nem aí se eles são mais perigosos ou poluentes para as pessoas ao redor. Como mostram minhas charges, se fizéssemos carros menores e mais perigosos para os motoristas, talvez eles dirigissem mais devagar e com mais cuidado.

DB – Eu fico imaginando o dia em que atingiremos o ponto da virada, no qual finalmente poderemos dizer que a cultura do automóvel está em declínio. Como você vê esse cenário? Quão longe estamos disso?

AS – Penso que veremos esse cenário quando o preço da gasolina ultrapassar os quatro ou cinco dólares por galão. Isso aconteceu nos Estados Unidos entre 2007 e 2012. Pela primeira vez na história, a Quilometragem Total Acumulada no país realmente diminuiu. Como a população aumentou, a Quilometragem Total Acumulada Per Capita caiu drasticamente. A economia foi um dos fatores, mas o alto preço da gasolina e a execução hipotecária nos subúrbios foram a principal causa. Dois dólares a mais por galão foram suficientes para mandar para execução aqueles que já estavam atrasados com a hipoteca. Muitos se mudaram para os centros, aumentando o crescimento das cidades. Então eu penso que o custo do petróleo e de se manter um carro será o fator decisivo. Se o aumento dos custos acontecer lentamente, teremos tempo para reagir, reduzindo o espalhamento dos subúrbios e investindo mais nas cidades e no transporte público. Se o preço do petróleo aumentar de uma vez, um inferno vai explodir e veremos o colapso social em muitos lugares. Creio que isso vai acontecer nos próximos 10 ou 15 anos, por causa do esgotamento causado pelo fraturamento hidráulico e do pico do petróleo.

DB – Imagino que você teve contato com muitas coisas interessantes feitas por grupos ativistas. Na sua opinião, que tipo de ação ou intervenção pode ser mais efetiva para sabotar a cultura do automóvel, especialmente nas cidades grandes?

AS – Penso que é um conjunto de ações –pessoas fazendo muitas coisas diferentes ao mesmo tempo. Você precisa de ações culturais como a Massa Crítica ou a Pedalada Pelada, como parte de uma cultura da bicicleta mais geral, que inclui passeios urbanos de bicicleta, grupos de pedal, corridas urbanas tipo Alley Cat e outros eventos formadores de comunidades. Você precisa de arte, música, filmes e mídia social para promover essa cultura e tornar as pessoas cientes dos problemas dos automóveis. Mas você também precisa de pessoas indo a reuniões públicas e fazendo conversas com representantes políticos. E você precisa desses políticos atuando de diferentes maneiras para mudar as coisas.

É preciso que eles gradualmente tirem espaço dos carros e deem esse espaço às bicicletas, pedestres e espaços públicos. É preciso que eles comecem a aumentar o custo de dirigir e de estacionar. E é preciso que se use os recursos gerados por esses impostos e tarifas para promover melhorias no transporte público e criar moradia de baixo custo em antigas vias expressas, estacionamentos e áreas industriais em desuso. São formas de transformar as cidades em lugares melhores para viver, reduzindo ruídos, oferecendo melhor moradia e transporte público e fazendo com que as pessoas que atravessam o seu bairro de carro paguem uma parte maior dessa conta. Precisamos reduzir exigências de vagas para as novas construções e fazer mudanças nas leis de zoneamento e uso do solo que incentivem o desenvolvimento sem automóvel e desencorajem o desenvolvimento centrado no automóvel.

Se fizéssemos carros menores e mais perigosos para os motoristas, talvez eles dirigissem mais devagar e com mais cuidado

E além dos aspectos culturais e políticos, tem também o poder do exemplo. Quando as pessoas veem que tem gente pedalando, caminhando e criando os filhos sem carros, elas percebem que isso é possível e é realmente divertido, desenvolve a saúde, as famílias e as comunidades. Quando as pessoas conhecem partes da cidade fechadas aos carros, elas começam a questionar a respeito. E quando chega a 5% o número de pessoas indo trabalhar de bicicleta, as coisas começam a mudar. Coisas que pareciam impossíveis politicamente ficam mais fáceis. Estamos começando a ver isso nas cidades gêmeas de Minneapolis e Saint Paul, onde moro atualmente.

DB – Você já esteve em alguma cidade (exceto as mecas da bicicleta como Copenhague, Amsterdam, Portland e semelhantes) na qual a cultura do automóvel não prevalece? Na sua opinião, o que esse lugar tem, especialmente no que se refere a aspectos culturais, que torna possível um lugar assim existir?

AS – Já visitei ou morei em muitas cidades dos Estados Unidos onde isso é possível, e é até mesmo preferível viver sem carro. Em diferentes graus, esses lugares focaram em pedestres, bicicletas, transporte público e no chamado adensamento urbano –aumentar as moradias para criar comunidades mais densas e caminháveis. Algumas cidades que me vêm à mente: São Francisco, Berkeley, Nova York, Boston, Madison, Ithaca, Indianapolis, Minneapolis (onde moro) e vários outros lugares.

Quando as pessoas veem gente pedalando, caminhando e criando filhos sem carros, percebem que é possível. Quando conhecem partes da cidade fechadas a carros, começam a questionar. E quando 5% das pessoas vão ao trabalho de bike, as coisas começam a mudar

São cidades que não permitiram que uma rodovia passasse através delas, ou destruíram antigas vias expressas. Elas também fizeram esforços para preservar os prédios históricos e sistemas de transportes anteriores à era do carro, ou implantaram estrutura cicloviária e áreas somente para pedestres. Boston tem uma área livre de carros no coração do centro, chamada “Downtown Crossing”. Ela tem muitos quarteirões de comprimento por dois quarteirões de largura. Entregas são permitidas em certos horários, mas fora isso ela é restrita aos pedestres.

Muitas cidades europeias têm antigos bairros medievais que são também restritos a pedestres, como Bruxelas, Lyon, Ponferrada e Santiago de Compostela. A cidade de Nova York fez grandes avanços com o prefeito Michael Bloomberg e a comissária de transportes Janette Sadik-Khan. Eles criaram centenas de quilômetros de ciclofaixas e ciclovias segregadas, muitos espaços livres (pocket parks) e mais áreas públicas. Agora Nova York está a ponto de implantar pedágio urbano para os veículos que entrarem no centro durante o horário comercial. Isso vai criar uma nova fonte de recursos para o transporte público e outras melhorias. Minneapolis e Indianapolis investiram mais de 30 milhões de dólares cada uma em infraestrutura para bicicletas, têm sistemas grandes e bem consolidados de compartilhamento de bicicletas e promovem o adensamento urbano.

Todos esses lugares têm uma forte cultura ciclística e de deslocamentos a pé. Têm um grande envolvimento político comunitário, que fez com que essas mudanças acontecessem. Há provavelmente outras cidades também, recentemente eu visitei Boulder, no Colorado, e achei bem interessante.

CARtoons – Atropelando a ditadura do Automóvel
Autor: Andy Singer
Tradução: Daniel Corral
Autonomia Literária & Avocado Edições, págs., R$30.

Visite também o blogue do autor: ventonacara.org

 

 

 


(4) comentários Escrever comentário

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Daniel Corral em 08/03/2018 - 19h18 comentou:

Ola!

O nome do tradutor esta incorreto… eh Daniel Corral. Eu sei disso porque sou… eu.

Kkkk! Agradeceria se pudesse corrigir.

Grande abraco,

D/

Responder

    Cynara Menezes em 09/03/2018 - 16h54 comentou:

    oi, daniel. corrigido! com nossas desculpas

Rodrigo Dias em 10/03/2018 - 22h53 comentou:

Ditadura do automóvel, também chamada carrocracia.

Responder

Luciano em 25/10/2018 - 20h46 comentou:

Lembrando que a bicicleta usa combustível “Poliflex” ou seja arroz, feijão, leite, carne e etc, sou apaixonado bor Bicicletas desde criança, atualmente gosto muito da Monark Barra Circular e da Nirve Switchblade.

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