Socialista Morena
Cultura

Aos 70 anos, Caio Fernando Abreu segue gritando nos cantos

Escritor gaúcho, morto em 1996 vítima da aids, ganhou doodle do google, relançamentos e exposição no Museu Nacional, em Brasília

Detalhe da exposição "Doces Memórias", sobre Caio F., no Museu Nacional de Brasília. Fotos: Felipe Delangelo/Divulgação
Vilmar Ledesma
13 de setembro de 2018, 18h29

Os 70 anos de Caio Fernando de Abreu, dia 12 de setembro, ganharam o doodle, honraria do google a quem marcou o tempo em que viveu, posts e mais posts no facebook e o nome dele ficou quase o dia todo nos trending topics do twitter. O escritor que morreu vítima da aids há 22 anos, em fevereiro de 1996, longe das benesses do reconhecimento, é cada vez mais lembrado. E por sua obra, como ele queria.

A Companhia das Letras acabou de lançar Contos Completos e anuncia trazer de volta outros seis livros. Textos de Caio F., como ele é carinhosamente chamado, adaptados para o teatro estão sempre em cartaz, geralmente montado por jovens. E sua trajetória está na exposição Caio Fernando Abreu – Doces Memórias, aberta no Museu Nacional da República, em Brasília, nesta quinta-feira, onde permanece em cartaz até 29 de outubro.

Com cartas, fotos, manuscritos, objetos e documentos da vida pessoal do escritor, a exposição tem em destaque sua máquina de escrever, batizada de Virginia Woolf, e o laptop, apelidado de Robocop. Dar nomes às coisas era uma das manias do homem. Uma coleção de galinhas que tinha em cima da geladeira, por exemplo, gerou o livro infanto-juvenil As Frangas. Alguns nomes do galinheiro do cara: Ulla, Gabi, as três irmãs Maria Rosa, Maria Rita e Maria Ruth, Otília, Juçara, Blondie.

Caio foi preso em Londres, numa livraria, roubando a biografia de Virginia Woolf, escrita por Quentin Bell. Ficou três dias na prisão. “Desde então, ela me protege – Virginia”, disse, em entrevista

De volta à exposição Doces Memórias e duas curiosidades sobre a máquina e o computador. Caio foi preso em Londres, numa livraria, roubando a biografia de Virginia Woolf, escrita por Quentin Bell. Ficou três dias na prisão. “Desde então, ela me protege – Virginia”, disse, em entrevista a Geneton Moraes Neto, publicada em O Globo, em 30 de setembro de 1990. E daí a escritora inglesa virou nome da máquina? Pode ser, ele até escreveu uma frase assim: “Como a vida é tecelã imprevisível, e ponto dado aqui vezenquando só vai ser arrematado lá na frente.”

A máquina Virginia Woolf e o notebook Robocop

E o laptop Robocop, que veio após Virginia? Bom, quando soube que estava com o vírus HIV, depois de um período hospitalizado (revelado ao público em três crônicas, as célebres Cartas para além do muro), Caio deixou São Paulo e abrigou-se na casa dos pais, um sobrado espanhol no bairro Menino Deus, em Porto Alegre. Amigos paulistas o presentearam com um microcomputador, em setembro de 1994.

Melhor que o próprio Caio conte: “Robocop, baixou de frente no meu terreiro particular, por artes de duas das fadas que graças a Deus sempre tenho por perto: Vania Toledo e Regina Valladares. Certa tarde de agosto, hospitalizado e lamuriento, me queixando da dificuldade e dor para escrever deitado, as duas tiveram a ideia: organizar uma ‘vaquinha’ entre amigos para me dar um computador de presente. Fiquei na minha, encabulado e expectante. Bom, as duas moveram céus e terras, dólares e cruzados, faxes e secretarias eletrônicas, agendas e seduções –até que outra tarde, esta de setembro, já em Porto Alegre, recebi um telefonema de Celsinho Cúri. Estava na cidade e trouxera este AST (a semelhança com AZT será mera coincidência, suponho, ou haverá micros positivos?) 486SX/33, mais uma impressora Cannon BJ-200, siglas e números misteriosíssimos até hoje. Medo: adiei a instalação, viajei, voltei, fugi, neguei. Até que relaxei et voilá, eis-me aqui tatibitateando nas teclas”, escreveu na crônica Até que nem tão eletrônico assim, publicada no Caderno 2 do Estadão.

Certa tarde de agosto, hospitalizado e lamuriento, me queixando da dificuldade e dor para escrever deitado, duas fadas que tenho por perto tiveram a ideia: organizar uma 'vaquinha' entre amigos para me dar um computador de presente

Era Setembro de 1994 e, até então, Caio não possuía computador. Ele escrevia como? Na mesma crônica, ele conta esse passado: “sou um homem anos 90, embora tenha sido sempre artesanal, do tempo da caneta Parker 51 melando dedos e papéis, manchas indeléveis nas camisas brancas do uniforme. Mais tarde, a esferográfica viria revolucionar minha vida (ao contrário de Nélida Piñon, que orgulha-se de jamais ter empunhado uma BIC), passei por máquinas comuns, elétricas, eletrônicas, pelo PC tipo fusca de Pedrinho Tornaghi, traduzindo o Tao Te King –e tudo sem renunciar jamais ao sagrado ato da escrita manual, cada letra desenhada, pensada, sofrida. Agora tudo mudou”.

Biscates culturais: era assim que Caio Fernando Abreu costumava chamar seus trabalhos fora da literatura. Jornalista, esteve na equipe que fundou a Veja, em 1968 e, depois, passou por várias redações da editora Abril, revista Pop (para jovens) e Nova (para mulheres), entre elas. Na entrevista a Geneton Moraes Neto, ele lembrou esses tempos: “Por mês, escrevia cinco matérias sobre sexo anal, sexo oral… Quando me dei conta, tinha ido parar na Divisão de Fascículos, onde estava escrevendo receita de cozinha. Juro! Tive uma indignação total. Pedi demissão. Disse: ‘Se eu continuar, amanhã de manhã vou me olhar no espelho e cuspir na minha cara!’. Fiquei duro. Mas saí. Não admiti”.

E doideira das doideiras, Caio Fernando Abreu, que teve o primeiro computador um ano e meio antes de morrer, foi popularizado pelas redes sociais. Há quem as acuse de “falsificarem” Caio F. por frases adocicadas que ele jamais escreveu e que são atribuídas a ele. Virou até piada escrever uma besteira qualquer e assinar Caio Fernando Abreu. Pode ser um problema sim, mas para quem acredita em tudo que lê.

Há quem acuse as redes sociais de “falsificarem” Caio F. por frases adocicadas que ele jamais escreveu. Virou até piada. Mas sem as redes e o apoio de leitores apaixonados, Caio F. talvez não tivesse virado doodle no dia dos seus 70 anos

O que transformou Caio F. em ídolo pop foram seus escritos, como as crônicas para o Caderno 2 em dois períodos – 1986-1988 e 1993-1996 –, reunidas nos livros Pequenas Epifanias e A Vida Gritando nos Cantos. São eles que municiam dezenas de sites e blogs mantidos por apaixonados pelo que ele escreveu e ali não tem falsidade, tudo é escrito por Ele mesmo. E sem as redes e o apoio de leitores apaixonados, Caio F. talvez não tivesse virado doodle no dia dos seus 70 anos, nem teria seus livros reeditados e exposição em sua homenagem.

O que Caio Fernando Abreu deixou ficou em seus escritos e na bravura com que levou a vida. O resto é a vida, tecelã imprevisível, gritando nos cantos.

P.S.: Abaixo, cinco textos de Caio Fernando Abreu que nunca saíram em livro. São de caiofcaio, blog dedicado a Caio F. e lá, tudo é escrito por ele mesmo. Eu garanto. Sou eu quem o municio, desde agosto de 2010:

1. Alguém escreve ao caudilho (Brizola), Jornal do Brasil/Caderno
Ideias, 1989

2. O Homem e o Futuro, revista Pop (Editora Abril), setembro de 1978

3. James Cain bate à sua Porta, Primeiro Toque (Informativo da
Editora Brasiliense), 1984

4. Pedra Rolante, revista Capricho (Editora Abril), 1987

5. Cor e Destino, revista HV, agosto/setembro 1987

Vilmar Ledesma é jornalista e escreve o blog caiofcaio desde 2010

 


Nenhum comentário Escrever comentário

Os comentários aqui postados são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião da Socialista Morena. Todos as mensagens são moderadas. Não serão aceitos comentários com ofensas, com links externos ao site, e em letras maiúsculas. Em casos de ofensas pessoais, preconceituosas, ou que incitem o ódio e a violência, denuncie.

Deixe uma resposta

 


Mais publicações

Feminismo, Politik

Feminismo e… faquirismo


Um dos livros que mais me surpreenderam e divertiram este ano: Cravo na Carne – Fama e Fome. É um recorrido pela história de 11 mulheres que se aventuraram a trabalhar como faquires, jejuando e…

Cultura

Bukowski previu em um poema o isolamento que a internet traria ao ser humano


Morto em 1994, o escritor norte-americano viu apenas o comecinho da era da informação, mas enxergou longe seu lado obscuro