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Direitos Humanos

Argentina condena à prisão perpétua responsáveis pelos “voos da morte”

Ao contrário do Brasil, onde um defensor da ditadura tem 20% de intenções de voto, nossos vizinhos continuam fazendo Justiça aos desaparecidos

Um dos aviões Short Skyvan usado nos vuelos de la muerte. Foto: Giancarlo Ceraudo/Destino Final
Rogério Tomaz Jr.
30 de novembro de 2017, 22h56

Nesta quarta-feira, 29 de novembro, a Justiça argentina condenou à prisão perpétua 29 agentes do aparelho repressivo responsáveis pelos “voos da morte”, dos quais foram vítimas pelo menos 789 opositores do regime, a maioria deles jovens. Via de regra, os prisioneiros eram lançados de aviões algemados e acorrentados a um bloco de concreto.

O julgamento, que já durava cinco anos, é chamado no país de “megacausa da ESMA” (Escola Superior de Mecânica da Armada), órgão da marinha cuja sede abrigou o maior centro clandestino de detenção e tortura da ditadura iniciada pelo general Jorge Rafael Videla, que governou com mão de ferro a Argentina entre 1976 e 1981 e também condenado à pena perpétua. Morreu em 2013 no banheiro de sua cela.

Os prisioneiros, a maioria jovens, eram lançados de aviões algemados e acorrentados a um bloco de concreto. Alguns vivos, outros já mortos

A punição aos responsáveis pelos vuelos de la muerte foi possível a partir da investigação de um fotógrafo italiano, Giancarlo Ceraudo, que em 2007 ficou curioso com o destino das aeronaves utilizadas pela ditadura para jogar jovens opositores pelos ares. Os modelos eram Short Skyvan, de fabricação irlandesa, e Electra Lockeed 188, norte-americanos. Em Buenos Aires, Ceraudo questionou a repórter Miriam Lewin sobre os aviões, ela perguntou a razão do seu interesse e ele respondeu: “Porque assim podemos chegar aos pilotos”.

Os dois não só encontraram os aviões como, dentro de um deles (o Skyvan que ilustra esta reportagem), em Fort Lauderdale, nos Estados Unidos, acharam documentos com a ficha técnica dos vôos, que levou à identificação e detenção dos que estavam no manche. Estava tudo lá: os destino, os dias e horários e o nome dos pilotos. A incrível história foi revelada por Lewin em 2010, no noticiário televisivo Telenoche Investiga. No ano seguinte, nova descoberta: 130 fotos de corpos encontrados entre 1976 e 1979 em praias do Uruguai guardados pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos havia 32 anos.

Nas fotos, mãos e pernas atadas e sinais inegáveis de tortura.

Em um dos informes escritos pelos agentes de inteligência uruguaia sobre os corpos, se descrevia o achado de um corpo feminino, pele branca, 1m60, de 30 anos, com “sinais externos de violência, indícios de estupro, provavelmente com objetos perfurantes; fraturas múltiplas e o cotovelo esquerdo destroçado; múltiplas fraturas em ambas as pernas com marcas de haver sido amarradas; enorme quantidade de hematomas espalhados pelo corpo; destruição total do crânio e da face”. Em outro: “fratura dos punhos, como se estivesse estado pendurada por eles; queimadura em ambas as mãos” e “região pubiana, anal e perianal destroçada com objetos perfurantes”.

Em 2013, a BBC publicou uma excelente reportagem sobre outro local onde “choveram corpos”, o delta do Paraná, a pouco mais de 200 quilômetros ao norte de Buenos Aires. “Um lugar onde centenas de pessoas, detidas e torturadas durante a ‘guerra suja’, foram lançados de aviões e helicópteros. Alguns vivos, outros já mortos”, diz o texto. Em alguns lugares, a água do rio chega a 60 metros de profundidade e por isso era considerado “o lugar perfeito”.

No julgamento concluído concluído ontem, 48 ex-funcionários do regime militar argentino foram condenados como responsáveis pelos voos da morte, entre militares e civis: 29 pelo resto da vida, dez a penas de 8 a 10 anos e nove receberam sentenças que variam entre 10 e 25 anos. Seis acusados foram absolvidos.

Foto: Leandro Teysseire/Página12

A Argentina tem um histórico profícuo de punição aos acólitos da última ditadura e já soma mais de uma centena de condenados. Mas a sentença tem um ingrediente a mais: é a primeira após a tentativa de anistia velada –apoiada pelo grupo político do presidente Maurício Macri– a alguns criminosos do terrorismo de Estado, episódio conhecido como “Lei 2×1”, de maio passado, que só não vingou graças à forte reação das organizações de direitos humanos e à péssima repercussão no exterior (aqui, aqui e aqui).

A sentença tem um ingrediente a mais: é a primeira após a tentativa de anistia velada –apoiada pelo grupo político do presidente Macri– a alguns criminosos do terrorismo de Estado

Os voos da morte também aconteceram no Brasil, no Chile e no Uruguai, mas foi na Argentina que esse tipo de ação ocorreu em maior profusão. Em 2016 foi feito um ótimo filme, estrelado por Ricardo Darín, sobre esses crimes macabros: “Kóblic”, que narra a história de um dos pilotos.

A luta contra a impunidade na Argentina não se resume à condenação de militares. Meios de comunicação e empresas, inclusive multinacionais, respondem a processos judiciais, como a Ford e o jornal La Nueva Provincia, da cidade de Bahía Blanca. Um livro organizado pelo jornalista Horacio Verbitisky –Cuentas pendientes: Los cómplices económicos de la dictadura– aborda em profundidade o tema.

Enquanto isso, no Brasil, um defensor da ditadura tem quase 20% de intenção de votos para presidente.

Rogério Tomaz Jr. é jornalista, residente em Montevidéu, onde escreve o livro Conversando com Eduardo, viajando com Galeano

 

 


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(2) comentários Escrever comentário

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Cleusa em 01/12/2017 - 12h07 comentou:

Excelente matéria! É muito triste a impunidade reinante no Brasil para a classe dominante, que é a mais atrasada do mundo. Não é elite de nada! É escravagista e perversa. Algum dia essa turma terá que ser punida – cedo ou tarde!

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Anonimo em 04/12/2017 - 19h02 comentou:

Aqui no Brasil torturador e militar genocida viraram heróis da classe média que vai votar no Bolsonaro. Os mesmos que possuem aversão por livros de histórias.

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