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As garotas Walita órfãs

Pouco mais de um ano atrás publiquei este texto sobre o fim iminente das empregadas domésticas. Hoje o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) confirmou que 200 mil pessoas deixaram o trabalho doméstico entre 2001 e 2011. Ótima notícia. *** As garotas Walita órfãs Parodiando Bertolt Brecht: quem fez o bolo Sousa Leão? Nos […]

(Louise Beaver e Claudette Colbert em Imitação da Vida)
Cynara Menezes
28 de novembro de 2012, 13h11

(Louise Beavers e Claudette Colbert em Imitação da Vida, de 1934)

Pouco mais de um ano atrás publiquei este texto sobre o fim iminente das empregadas domésticas. Hoje o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) confirmou que 200 mil pessoas deixaram o trabalho doméstico entre 2001 e 2011. Ótima notícia.

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As garotas Walita órfãs

Parodiando Bertolt Brecht: quem fez o bolo Sousa Leão? Nos livros constam os nomes das rainhas (do lar). Bentas, Palmiras, Ofélias, Anas Marias e Ninas levariam a fama de criadoras dos acepipes que trazem ainda hoje o sobrenome das famílias poderosas que os serviam às visitas e cujas receitas eram guardadas a sete chaves. Na cozinha, ao lado da dona-de-casa de forno e fogão, Nastácias, Zefas, Severinas, Franciscas e Aparecidas virariam, quando muito, meras notas de rodapé na história da gastronomia no Brasil.

Falo isso e me vem à memória um filme das madrugadas da infância, Imitação da Vida, um clássico em preto e branco de 1934, que assistimos algumas vezes em família na sessão Coruja. Nele, uma dona-de-casa (Claudette Colbert) fica rica ao industrializar a receita de panquecas que lhe foi trazida por uma empregada negra (Louise Beavers). A patroa, generosa, oferece sociedade à criada e esta recusa por conhecer seu “lugar”: prefere continuar sendo empregada. Mas as panquecas são batizadas com seu nome e não no da patroa, coisa rara –”Tia Delilah”. Vem-me à lembrança também a canção de Dorival Caymmi, Vatapá: “com qualquer dez mil-réis e uma negra, ô, se faz um vatapá”.

Décadas depois do que ocorreu na Europa e nos Estados Unidos, finalmente a era das empregadas domésticas está chegando ao fim no Brasil. As moças pobres querem estudar para seguir outra profissão, já não têm como horizonte apenas dedicarem suas vidas às vidas de outras gentes. Não querem ser mais “praticamente da família”, como se dizia, querem ter suas próprias famílias. Tampouco almejam que suas filhas herdem o serviço, trabalhando para os filhos dos patrões, como acontecia antigamente. “A família dela está na nossa família há anos”: quantas vezes ouvi isso? Acabou.

Mas vejam o que se dá. Em vez de dizermos “adeus, queridas, obrigada por tudo”, e tentarmos descobrir outra maneira de cuidar da casa e criar nossos filhos, o que se vê são narizes torcidos. Fala-se das moças que não querem mais dormir no emprego porque estudam à noite como “esnobes sem causa”. Ironiza-se a empregada que “se acha melhor que a patroa”, a que sente saudade de sua terra e quer ir embora, a “estudante-de-direito”. Acusa-se toda uma categoria de estar fazendo guerra de classes dentro de casa, roubando as patroas. Por último: como antes se importava do Nordeste, agora importam-se criadas do Paraguai.

Em termos familiares, construímos nossas vidas com a ilusão de que teríamos empregadas domésticas para sempre. No Brasil, ao contrário de outros países, as crianças passam um tempo mínimo na escola. Em casa, ensinamos nossos filhos –e eu mesma me penitencio por isso– a não fazerem qualquer tarefa doméstica. Há quem se gabe de, na cozinha, ser incapaz de fritar um ovo. Mas, sem as empregadas, já não somos como a garota do anúncio antigo da batedeira Walita, toda sorridente porque, depois, vai ter quem limpe a bagunça. Órfãs, não sabemos o que fazer daqui para a frente.

Para começo de conversa, não há maneira mais digna de se lidar com esta realidade do que aceitar que nossas empregadas estão subindo na vida. Sem chororô, com orgulho: é mais uma etapa que superamos do subdesenvolvimento. O que temos de fazer é modificar a maneira como vivemos até agora –exigindo escolas integrais e semi-integrais para nossos filhos, por exemplo. Também é preciso, mais do que nunca, que homens e mulheres, adultos e crianças, ajudem nas tarefas do lar, lembrando que as divisões por gênero foram abolidas há muito. Não nos resta outra saída a não ser simplificar nosso modo de morar, de viver –e de comer. Chegou a hora de aprender a mexer o vatapá.

(originalmente publicado em 11/10/2011 no site de CartaCapital)


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Flavio Moreira em 28/11/2012 - 13h53 comentou:

Bárbaro! bem na mosca.
Apesar de ter uma pessoa que faz a limpeza grossa uma vez por semana, fui educado desde criança a fazer as coisas de casa. Minha avó cuidava de mim enquanto minha mãe trabalhava. Eu só estudava de manhã e tinha uma tarde inteira livre. Minha avó cozinhava muito bem e eu varria a casa, tirava o pó (eu odiava tirar o pó – rs), entre outras coisas. Nunca me senti menos homem por isso, ao contrário, foi uma das coisas que me fez querer ficar independente bem cedo – saí de casa aos 20 anos, embora trabalhasse desde os 15. Mas parece que hoje nem os pais sabem faze qualquer tarefa doméstica, como vão ensinar algo aos filhos?
Parabéns pelo texto e pelo site.

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Ricardo B. em 29/11/2012 - 16h33 comentou:

Baita texto!
Ontem mesmo, um amigo me disse que acaba de comprar um apartamento aqui em Florianópolis, prédio recente, século XXI, que conta com "três quartos e dependência de empregada (!)".
Além do fato em si de ter uma empregada, não são capazes nem de atribuir-lhe um quarto, mas sim uma "dependência". É o Brasil Colônia que permanece vivo.

Responder

    Paulo em 08/12/2012 - 10h43 comentou:

    "Além do fato em si de ter uma empregada" hahahaha. Eu ri. Que amigo/pessoal mais canalha, têm empregada.

Cristina em 26/03/2013 - 18h33 comentou:

Faltou uma opção, Cynara: continuar com a empregada e pagar todos os seus direitos. Acho que não mata ninguém. 🙂

Responder

Fabio em 26/03/2013 - 19h55 comentou:

Como filho de empregada doméstica, que vivenciou o outro lado dessa história, só tenho a agradecer o apoio. Só quem viveu sabe o que é trabalhar onde não há respeito real, onde ainda existe a relação de escravidão, onde o salário e alguns 'presentes', objetos já extremamente usados, em geral, fazem a patroa se sentir melhor com o fato de estar explorando a outra mulher, em geral negra ou nordestina, que 'é praticamente da família'. E no entanto, quando a família não quer mais aquela que 'é como se fosse', apenas a dispensa, por que de fato nunca foi da família. Quantas e quantas não vi, que são ou que foram empregadas, e aquilo fica tão arraigado nelas que acabam acreditando que 'aquilo nunca vai mudar' ou que 'aquele é o seu lugar'…

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Joana em 26/03/2013 - 20h46 comentou:

Cynara, escolarizar as crianças integralmente também não é saída! Escolas não são e não devem ser nunca um mero depósito de crianças!

Responder

    morenasol em 26/03/2013 - 22h20 comentou:

    não tem nada a ver com depósito de crianças, joana. escolas em turno integral existem nos países mais desenvolvidos do mundo para que as pessoas possam trabalhar e porque a educação integral é melhor para a criança, mais completa.

Myriam Labaki Pupo em 25/06/2013 - 19h12 comentou:

Desculpe-me, mas o filme " Imitação da Vida" passou na semana passada na TV, com Lana Turner. A menina negra, filha da empregada despreza a mãe, por ser negra. O ator é John Gavin e a cantora Mahalia Jackson canta no enterro da empregada. Filme da década de 60. Muito bonito.
À parte, gostei muito de seu texto e concordo com suas colocações.
Myriam Labaki Pupo

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