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A inimiga número um (e a número dois) dos índios Guarani-Kaiowá

Por Chloé Pinheiro, de Campo Grande (MS), para o Socialista Morena A jazida do refugiado brasileiro não era uma praia, mas um córrego. Atingido com um tiro no rosto no sábado, 29 de agosto, Simeão Vilhalva tinha 24 anos, uma companheira e uma filha de 4 anos, e rolou inerte por alguns metros até descansar […]

Cynara Menezes
08 de setembro de 2015, 17h53
roseliluana

(Roseli Ruiz, presidente do sindicato rural de Antonio João-MS e sua filha, a advogada Luana)

Por Chloé Pinheiro, de Campo Grande (MS), para o Socialista Morena

A jazida do refugiado brasileiro não era uma praia, mas um córrego. Atingido com um tiro no rosto no sábado, 29 de agosto, Simeão Vilhalva tinha 24 anos, uma companheira e uma filha de 4 anos, e rolou inerte por alguns metros até descansar às margens do córrego Estrelinha. O indígena é mais uma vítima da luta pela demarcação da terra indígena Ñanderu Mangaratu, lar dos Guarani-Kaiowá. Desta vez, um grupo de fazendeiros e capangas tentou retomar na marra a fazenda Fronteira, que fica dentro dos limites de Antonio João, município do Mato Grosso do Sul próximo à fronteira com o Paraguai.

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(O velório de Simeão. Foto: Marcos Erminio/Campo Grande News)

A ação ocorreu após uma reunião no Sindicato Rural de Antônio João entre fazendeiros da região. Segundo relatos dos presentes e da imprensa local, a presidente da entidade, Roseli Maria Ruiz, fez um clamor emocionado pela retomada de sua propriedade, a fazenda Fronteira, alvo de disputa judicial há mais de dez anos e ocupada há uma semana pelos índios por estar dentro do Ñanderu. Na ocasião, estavam presentes ainda o senador Waldemir Moka (PMDB), os deputados federais Henrique Mandetta (DEM) e Tereza Cristina Correa (PSB) e a deputada estadual Mara Caseiro (PT do B), todos defensores das causas latifundiárias.

Roseli e sua filha, a advogada Luana Ruiz, são as duas faces mais visíveis da disputa de terras com os índios Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul. Há alguns anos, a mãe se formou em Antropologia apenas para fazer laudos contrários aos indígenas em vários Estados brasileiros onde há conflitos fundiários. A filha comemorou abertamente no Facebook a retomada da terra e disse que “o cadáver do índio é antigo”. Após o conflito, os fazendeiros retomaram grande parte da fazenda, incluindo a sede, mas os índios seguem ocupando alguns hectares de terra.

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Há alguns dias, Luana apareceu fazendo um discurso recheado de ameaças durante uma reunião com o ministro da Justiça José Eduardo Cardozo na sede do governo do MS, onde repetia as palavras de ordem dela e de sua mãe: “Só saio de lá algemada ou morta”.

Luana defende as ações truculentas de retomada de terras invadidas por indígenas como “legítima defesa da propriedade”, inclusive com uso de arma. Não por coincidência, um projeto de lei de autoria do deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), desarquivado em fevereiro, pretende incluir um inciso no Código Penal que tornaria a agressão contra invasores de domicílio (“urbano ou rural”) como “legítima defesa”.

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Em espantosa entrevista ao jornal El Pais, a fazendeira e antropóloga Roseli afirmou que todos os Guarani-Kaiowá são paraguaios. “Todos esses (que reivindicam a terra), desde quando a gente conhece a história, vieram de lá”, disse, negando que houvesse armas no grupo que se mobilizou, lotando 60 camionetes, para retomar a fazenda –pelo menos não pessoas da sua família. “Eu não estava armada. Ninguém da minha família estava armado.” Sobre a morte de Simeão, a fazendeira e antropóloga jurou não saber de nada. “Eu não sei, não estava lá.” Ela acusa o CIMI (Conselho Indigenista Missionário) de incitar os índios a invadirem terras e, por isso, tanto ela quanto a filha propõem “boicote” à igreja Católica. (leia a íntegra aqui)

Já o CIMI diz que a caravana reunida após a reunião presidida por Roseli era composta de mais de cem fazendeiros e homens armados. Segundo a fazendeira e antropóloga, não houve premeditação para a retomada; o CIMI afirma que, pelo contrário, o grupo seguiu em direção à fazenda Fronteira pronto para fazer Justiça com as próprias mãos. O que se seguiu a partir daí, como relatou o deputado Mandetta em vídeo publicado em seu Facebook, foi uma violenta disputa física entre os latifundiários e os indígenas que culminou, minutos depois, no corpo do jovem morto sendo levado pelos índios à sede da fazenda.

O Departamento de Operações da Fronteira (DOF), a Polícia Federal e a Polícia Militar ainda não se manifestaram sobre o crime, apenas confirmaram que Simeão foi morto com um tiro na cabeça. Em sua defesa, os produtores dizem que o indígena já estava morto havia cerca de oito horas, mas o próprio Mandetta, que também é médico, se contradiz nas versões do fato. No vídeo, o deputado diz que averiguou a rigidez post-mortem, mas, em entrevista ao jornal Campo Grande News no domingo, declararia que não conseguiu chegar perto do corpo, cercado por indígenas, e teria “verificado” a rigidez estando cerca de dez metros distante de Simeão.

A presença de políticos na cena do crime é alvo de questionamento dos movimentos sociais que acompanham a luta dos indígenas. Se eles não estavam em agenda oficial, o que faziam ali? Buscando a resposta a essa pergunta e também a investigação do assassinato, entidades de esquerda e defensores dos direitos humanos se reuniram com o Procurador do Ministério Público Federal de Campo Grande, capital do Estado. O MPF é a melhor chance de o caso não acabar, assim como tantos outros, sem que seja feita Justiça.

A Polícia Federal já está no local para fazer a perícia e a reconstituição do crime. Outro ponto que precisa ser esclarecido é a operação do DOF no local. “O Departamento de Operações da Fronteira foi criado originalmente para impedir roubo de gado na região. Ou seja, desde o começo agiu em favor do agronegócio”, critica Rogério Batalha, advogado e membro do Coletivo Terra Vermelha, que atua na região. Os servidores da FUNAI (Fundação Nacional do Índio) em Campo Grande divulgaram uma carta em que acusam o governo brasileiro de “omissão” e denunciam a situação de “extrema vulnerabilidade” dos índios do Estado diante do sucateamento do órgão.

Enquanto os defensores dos Direitos Humanos cobram do MPF e da PF de Ponta Porã, responsável pelo que ocorre em Antônio João, o resultado do inquérito, o clima na cidade palco da chacina e em seus arredores é tenso. De um lado, fazendeiros sitiados recebem comida e suprimentos dos colegas sindicalistas, tudo com escolta da polícia e do DOF. De outro, indígenas não contam com o mesmo privilégio, e dependem de ajuda do MST, CUT e outros movimentos para receber remédio, comida e atendimento médico. No domingo, as famílias Kaiowá foram vítimas de um novo ataque e tiveram que fugir no meio da noite.  Além de Simeão, um bebê de um ano foi atingido por uma bala de borracha nas costas.

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(A viúva de Simeão, Janaina, no velório. Foto: Marcos Erminio/Campo Grande News)

Guarani-Kaiowá: luto permanente

Acampadas nas beiras das estradas por não poderem ocupar seus lugares de direito, as famílias indígenas são aniquiladas desde o berço. Para se ter uma ideia, enquanto a mortalidade infantil no Mato Grosso do Sul é de 15,4 para cada mil nascidos, entre os pequenos índios do Estado o número salta para 27,58 – o índice considerado aceitável pela Organização Mundial da Saúde é 10. Se crescem e chegam à fase adulta, ainda assim morrem cedo, seja pelas mãos das milícias armadas, seja pelo suicídio. Segundo o CIMI, em relatório divulgado em 2014, 62% dos assassinatos indígenas do país ocorreram no estado do Centro-Oeste, que também encabeça o ranking de suicídios. Em 2013, 73 membros das aldeias tiraram a própria vida. Um pouco antes disso, em 2012, o viral do sobrenome dos Guarani-Kaiowá ganhava o Facebook, após um dos capítulos mais tristes da disputa que se arrasta há décadas.

A situação vivida pelas pessoas que habitavam o Brasil muito antes que o homem branco chegasse não é novidade, mas não pára de ganhar requintes de crueldade. Na quinta-feira, dia 03, mais uma tribo da etnia Guarani-Kaiowá foi atacada a bala nos arredores do município de Dourados-MS. Longe dali, em Brasília, deputados da bancada ruralista –a maior que a Câmara já viu, com 263 dos 513 representantes eleitos em 2014– tentam na marra aprovar a PEC 215, que dá ao Legislativo o poder de decidir sobre a demarcação das terras indígenas. Por enquanto, é o Executivo quem manda sobre o assunto, o que dificulta a ação direta dos ruralistas que hoje ocupam as Assembléias Legislativas, Câmaras e o Congresso. A votação da PEC na Comissão Especial da Câmara dos Deputados, inserida de última hora na pauta de quarta-feira, dia 02, foi adiada mais uma vez graças à pressão dos Deputados contrários à Emenda.

O Ñanderu Mangaratu, território com cerca 9 mil m², é alvo de disputas judiciais desde que teve sua legitimidade garantida pela primeira vez, em 2001. Por também abranger partes de cinco grandes fazendas, os indígenas precisam enfrentar uma difícil e injusta queda-de-braço com os latifundiários –eufemisticamente chamados de “produtores” pela velha mídia. Em 2005, anos depois de muitas indas e vindas, Lula assinou o Decreto que garantia a homologação da Terra indígena. Apenas três meses mais tarde, ainda em 2005, o então ministro da Justiça Nelson Jobim suspendeu o decreto, após um mandado de segurança impetrado pelos fazendeiros. Desde então, e há muito tempo antes disso, as famílias Guarani-Kaiowá aguardam, na beira da estrada e sob chuva de balas, uma solução para o problema.

 


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