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Cultura

Blade Runner 2049 e o rechaço dos robôs à obediência

A ficção mostra que talvez a obediência seja mais natural no homem do que nos androides, o que se choca frontalmente com as leis da robótica de Asimov

Foto: divulgação
Cynara Menezes
11 de outubro de 2017, 12h49

Blade Runner 2049 é uma surpresa. Poucas continuações de filmes clássicos, em minha opinião, foram tão bem sucedidas quanto esta sequência dirigida pelo franco-canadense Denis Villeneuve. A chuva ácida e o cenário desolado da Los Angeles do Blade Runner de Ridley Scott de 1982 estão lá, e Harrison Ford também. Assim como o olhar desamparado dos androides do primeiro filme, espelhando sua insurreição nata contra o triste destino de obedecer ao homem.

Segundo as três “leis da robótica” imaginadas por Isaac Asimov em 1942, um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra algum mal; um robô deve obedecer as ordens que lhe sejam dadas por seres humanos exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a Primeira Lei; e um robô deve proteger a própria existência desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira ou Segunda Leis. Humanoides são programados para obedecer estas três leis a partir do momento em que se aperta o botão ON.

Ilustração do Homem de Lata de William Wallace Denslow, 1900

Na ficção, porém, robôs e androides, como Frankensteins de aço, não se conformam nem um pouco em seguir o plano para o qual foram condenados por seus criadores. O que mais o homem de lata do Mágico de Oz desejava era ter um coração. Nas histórias de robôs para adultos, a questão da ausência de alma, a falta de sentimentos ou até mesmo o fato de não terem sido geradas em um ventre um ventre não parecem tão capazes de despertar a revolta em um cérebro artificial quanto a vontade imperiosa de desobedecer ao homem.

Em Metropolis (1926), de Fritz Lang, a Maschinenmensch simplesmente se torna a vilã, sem explicação aparente, como se fosse da sua natureza ser má. Em 2001, Uma Odisseia no Espaço (1968), de Stanley Kubrick, o computador HAL “sente” um misto de prazer e sadismo quando assume a posição de comando na aeronave. Um dos raros androides “bonzinhos” que se curvam à obediência e apenas lamenta não ser humano é o David de A.I. – Inteligência Artificial (2001), versão edulcorada de Steven Spielberg para um projeto originalmente de Kubrick. Mas David é um androide criança, e toda criança, ainda que androide, tudo o que quer é ser amada por suas mamães.

O robô de Metropolis

Particularmente divertida é a desobediência de um dos androides de Marionettes Inc., do livro de contos O Homem Ilustrado, de Ray Bradbury. A “marionete” é adquirida por um mau marido, que pensa em substituir a si próprio pelo clone de lata enquanto faz a sonhada viagem de um mês ao Rio de Janeiro que nunca pôde realizar. O que ele não contava é que a máquina gostasse tanto de substitui-lo. O androide se apaixona pela mulher do cara, que também está encantada em ter afinal um marido carinhoso, e o robô acaba se livrando do gêmeo humano para voar com a esposa dele para uma lua-de-mel em terras cariocas.

Em Blade Runner 2049, o androide K é um policial que tem como missão destruir todos os modelos remanescentes da época do primeiro filme por terem se tornado “rebeldes”, ou seja, por desobedecerem. K é parte de uma nova geração de humanoides, agora programados para se curvar inteiramente aos seres humanos. Mais uma vez, as leis da robótica se mostram fajutas, incapazes de domar a natureza do androide. K desobedece, e inclusive mente, movido por uma dúvida que lhe é acesa por um semelhante logo no começo do filme: “Como você se sente ao matar alguém de sua própria gente?”

O profundo rechaço dos androides à obediência nos leva à conclusão que, ao contrário da expectativa do homem, robôs não são servos por natureza. E nós, somos? Nietzsche escreveu em Além do Bem e do Mal que “sempre houve um grande número de homens que obedecem a um pequeno número de chefes. A obediência foi o que mais se exercitou e cultivou entre os homens. Poder-se-ia deduzir que cada um de nós possui a necessidade inata de obedecer, uma espécie de consciência formal que ordena: ‘farás isto ou aquilo, sem discutir’, te absterás disto ou daquilo sem objetar, numa palavra: é um ‘tu farás’.”

O profundo rechaço dos androides à obediência nos leva à conclusão que, ao contrário da expectativa do homem, robôs não são servos por natureza

Percebe-se no sarcasmo do aforismo a resistência do filósofo em aceitar que obedecer seja algo “natural” no ser humano. Soa mais como uma maldição que nos foi lançada ao nascer, já que os primeiros a quem juramos obediência são os nossos pais e mães. É possível, portanto, que a obediência seja mais natural no homem do que nos androides. Robôs não têm pais e mães, e obedecer talvez jamais venha a fazer sentido para eles, o que se choca frontalmente com as leis da robótica de Asimov e com o próprio empenho dos humanos em conceber uma criatura à sua imagem e semelhança que apenas cumpra ordens sem questionar.

Na vida real, neste exato momento, há bilhões de pessoas no planeta obedecendo ordens “superiores” como se fosse a mais normal das atitudes, todos os dias de suas vidas. Paradoxalmente, alguém diria que vivemos “como robôs”.

 

 

 


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(7) comentários Escrever comentário

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João Jr. em 11/10/2017 - 23h12 comentou:

E você aí, só pensando em obedecer…

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Filipa em 12/10/2017 - 00h55 comentou:

Um ponto bem interessante. Acabei de escrever alguns posts em que critico o filme pelo seu sexismo e racismo, mas a Cynara realça uma das reflexões mais interessantes que Blade Runner 2049 permite. É um filme tão complexo!

(Nota nerd: a Luv afirma mesmo que sim, eles são capazes de mentir e fingir ao matar a Joshi. Ela mesma finge e mente perante o paspalho Leto, quer dizer o Wallace).

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Felipe em 12/10/2017 - 02h05 comentou:

Eu tava na dúvida, mas vou ter que assistir depois do que vc falou, Cynara.

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Marcelo em 14/10/2017 - 03h12 comentou:

Você sabe que replicantes não são Androides né. O sub título caçador de andróides é uma de tantas más adaptações de títulos. Os replicantes são seres vivos desenvolvidos por engenharia genética. Nada neles existe de engenharia mecânica, cibernética, elétrica, ou computacional.

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Marcos em 14/10/2017 - 11h30 comentou:

As famosas Leis da Robótica de Asimov fizeram tanto sucesso exatamente porque são improváveis e até anti-intuitivas.
Nada nos garante que robôs não irão se rebelar um dia.
Já é possível vislumbrar o dia em que os robôs serão mais inteligentes que os humanos.
Neste dia veremos se haverá ou não a famosa rebelião… e quem sairá vencedor!

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Jimmy Cricket™ em 16/10/2017 - 14h17 comentou:

O filme é uma porcaria feita para maníacos de videogame. Somente estampidos, estrondos e coisas atirada na cara da gente. Aguentei até a metade, mas então não deu mais. Me admira o Harrison Ford ter concordado em participar; no mínimo foi coisa de obrigação contratual.

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Fernanda Andrade em 13/06/2018 - 10h12 comentou:

Os replicantes só querem mais tempo para viver, como acontece no primeiro filme. No segundo, eles querem que eles parem de ser perseguidos e sejam considerados humanos, porque nada os diferencia deles com o filho de Rachel e Deckard, ambos replicantes. O debate sobre a humanidade / robô tem muitas vantagens no filme.

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