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Trabalho

Como a grande imprensa cresceu explorando o trabalho infantil

De famílias carentes, órfãos ou abandonados, descalços e maltrapilhos, os jornaleiros eram o lúmpen do jornalismo e parte importantíssima da indústria

Ferris, um pequeno jornaleiro descalço de 7 anos de idade no Alabama, EUA, em 1914. Fotos: Lewis Hine
Cynara Menezes
12 de agosto de 2015, 19h47

A figura de Joseph Pulitzer saiu perfeitamente alvejada ao passar pela grande lavanderia das biografias dos homens ricos e poderosos do mundo. Hoje conhecido como o homem que dá nome dá nome ao célebre prêmio de jornalismo, caiu no esquecimento o fato de que seu New York Times World praticava jornalismo marrom (nos Estados Unidos, “amarelo”), assim como a história de uma das greves mais famosas da história da imprensa norte-americana, em que Pulitzer foi um dos vilões: a greve dos meninos jornaleiros.

Em 1899, após venderem jornal como pão quente com a cobertura sensacionalista da guerra hispano-americana, Pulitzer e seu rival William Randolph Hearst, viviam uma fase de brusca queda na circulação. Todos os jornais de Nova York decidiram então abaixar o preço que cobravam aos jornaleiros por cada exemplar –menos os jornais vespertinos de Pulitzer e Hearst. O que os dois patrões da imprensa não esperavam é que aqueles garotos dessem uma resposta à altura e paralisassem as vendas de ambos os diários durante duas semanas.

Conhecidos como “newsboys” ou “newsies”, os jornaleiros eram o lúmpen do jornalismo, sua parte mais sofrida. Filhos de famílias carentes, órfãos ou abandonados, os meninos, a maioria descalços e maltrapilhos, eram, no entanto, parte importantíssima da indústria. Numa época em que a internet não era nem um delírio na imaginação de criadores de ficção científica, aqueles garotos tinham se tornado os principais propagandistas dos jornais, gritando as principais manchetes do dia nas esquinas das cidades: “Extra! Extra!” Tanto era assim que, durante a greve, a circulação dos jornais caiu de 360 mil para 125 mil exemplares. “Não comprem o World e o New York Journal, porque os jornaleiros estão em greve”, diziam. A população se sensibilizou e seguiu à risca.

Cronistas da época descreveram os newsboys como uma massa de pequenas criaturas aglomeradas nas escadas dos jornais para sobreviver ao frio. Vinte anos antes da paralisação, falava-se em até 10 mil crianças vivendo nas ruas de Nova York, muitos deles sujos, sem casacos, sapatos ou chapéu. “O que impressiona é que Hearst e Pulitzer não cedem por causa de centavos, sendo que Pulitzer foi, ele mesmo, um pobre menino de rua no passado”, disse o biógrafo de Pulitzer, James McGrath Morris, ao New York Times. Pulitzer chegou a tentar contratar homens mais velhos para substituir os meninos em greve, mas eles se negaram.

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Criança dormindo nas escadas de um jornal em New Jersey em 1914

Pulitzer e Hearst acabaram cedendo. Não passaram a cobrar menos por exemplar, mas se comprometeram a pelo menos comprar de volta os jornais que os meninos não conseguissem vender. A história da greve virou um filme musical da Disney em 1992, Newsies (no Brasil, “Extra! Extra!”), transformado em uma versão para a Broadway de grande sucesso em 2012. Walt Disney, aliás, foi um vendedor de jornais para o próprio pai na infância e também passou por maus bocados como trabalhador infantil.

A situação dos vendedores de jornais não mudaria muito nas décadas seguintes à greve de 1899. No começo do século 20, o fotógrafo e sociólogo Lewis Hine fez mais de 5 mil fotos de crianças trabalhadoras nos EUA e foi um dos responsáveis por causar as mudanças nas leis do país que baniram essa prática, até então permitida. Somente em 1938 foi estabelecida a idade mínima de 14 anos para o trabalho. Boa parte das imagens registradas por Hine trazem pequenos jornaleiros, alguns com até 5 anos de idade. As descrições dos personagens nas fotos chocam.

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Freddie Kafer, de 5 ou 6 anos de idade, carregando uma bolsa cheia de jornais que pesava metade do seu próprio peso

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Vivendo na rua, os newsboys aprendiam cedo a beber, fumar e contar piadas sujas

Explorar crianças de rua, pobres e órfãs para vender jornais não foi uma prática isolada da imprensa norte-americana. No Brasil, a distribuição de jornais seguiu trajetória similar. Primeiro foram os escravos que apregoavam as gazetas pelas ruas; depois, jovens imigrantes italianos que, crescidos, se tornaram distribuidores e passaram a utilizar os meninos como vendedores. Como nos EUA, os jornaleiros funcionavam como propagandistas, ajudando a vender os exemplares com sua cantilena, sempre chamando a atenção dos passantes para as principais notícias do dia. Uma cena comum de se ver nos filmes e novelas de época, de forma edulcorada.

“Na maior parte das vezes, os meninos jornaleiros dormiam na porta das oficinas esperando os jornais saírem. Com o tempo, eles começam a se tornar um problema urbano. Como lidar com meninos abandonados dormindo nas portas de jornais?”, diz o professor do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da UFF (Universidade Federal Fluminense) Viktor Chagas, autor de uma tese sobre as bancas de revista no Brasil. “Mas estes meninos sem dúvida ajudaram a ampliar a circulação dos jornais. O próprio grito de guerra do jornaleiro, ‘extra! extra!’, é uma estratégia de marketing que nós propagamos como se fosse dos jornais, mas é deles”.

Uma canção de 1933 do sambista carioca Heitor dos Prazeres (1898-1966) chamou a atenção para a triste vida daquelas crianças, que enfrentavam uma rotina de trabalho que começava de madrugada e podia durar até 12 horas por dia.

Olha a noite,
Olha a noite,
Eu sou um pobre jornaleiro,
Que não tenho paradeiro,
Ai, ninguém tem vida assim. 
Digo adeus a toda gente,
Às vezes fico contente,
Ninguém tem pena de mim.

Consternada, a primeira-dama brasileira Darcy Vargas criou, em 1940, a Casa do Pequeno Jornaleiro, no Rio de Janeiro, para abrigar e dar instrução aos meninos. Em 1942, um decreto de Getúlio Vargas obrigou os donos de jornais e os distribuidores a contribuir financeiramente para a manutenção da instituição, que existe até hoje. O surgimento das bancas de revista fez diminuir a utilização de crianças como vendedoras de jornal, mas só com o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) a prática foi abolida. “O ECA foi o golpe definitivo para acabar com o uso de crianças para vender jornais”, diz Viktor Chagas.

Aparentemente, Pulitzer se arrependeu da forma como praticava jornalismo, daí a famosa frase atribuída a ele, tão atual: “com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária, demagógica e corrupta formará um público tão vil como ela mesma”. Em seu testamento, o publisher deixou uma polpuda contribuição de 2 milhões de dólares à Universidade de Columbia para a criação da primeira escola de jornalismo de que se tem notícia e do prêmio. As más práticas trabalhistas nos jornais brasileiros, porém, não acabaram junto com a exploração do trabalho infantil dos jornaleiros.

O programa Observatório da Imprensa, da TV Brasil, fez um ótimo programa sobre os pequenos jornaleiros do Brasil em 2013. Assista.

 


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(3) comentários Escrever comentário

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Milton Augusto de Medeiros em 22/01/2020 - 11h46 comentou:

Sou jornaleiro desde de 1973,comecei vendendo jornais no trem do ramal de Duque de Caxias e hoje depois de uma trajetória dedicada à esse ofício de vender e levar informação ao público trabalho em uma banca de jornal em Jacarepaguá,nestes 47 anos sofremos muito com a concorrência desleal por parte dos editores e distribuidores que concorrem conosco sendo donos do produto. Agora com as assinaturas on-line foi a pá de cal em nosso sustento,vivemos uma decadência.

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RobinRudy em 15/12/2020 - 11h10 comentou:

Fui jornaleiro nos anos 90 dos 16 anos até os 19, vida que não desejo para nenhum trabalhador. Polícia, bandidos, toda sorte de gente perversa pelas madrugadas das grandes cidades e nós estávamos lá para levar a hipocrisia a todos, por um pão com margarina, um copo de café e 64 URV´s por mês.
Parabéns a toda a Hipócrita imprensa que vende e se alimenta da mesma hipocrisia.
A sociedade criou e continua criando criminosos e delinquentes com sua política capitalista bestial. Sem nenhum controle irá acabar comendo sua própria cabeça.
Não tive uma boa educação formal, confesso mas, por três anos num barraco de favela, sem tv, tinha 4 a 5 jornais diferentes para lêr e conhecer muito mais do que gostaria sobre nós mesmos. Como disse uma vez Raul Seixas… “Eu preferia ser burro! Assim não sofria tanto.

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Rogério em 22/12/2022 - 20h42 comentou:

Fui jornaleiro vida muito difícil acordar de madrugada e ficar na ruas pra vender o jornal do classificados comendo restos de restaurante e um pão com mortadela dados pelo jornal.

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