Socialista Morena
Direitos Humanos

Déficit de empatia: a incapacidade da direita de se solidarizar com a dor alheia

Quem defende "direitos humanos para humanos direitos" na verdade há muito perdeu a humanidade, se é que algum dia a possuiu

Velório de Marielle no Rio. foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Cynara Menezes
19 de março de 2018, 17h34

Que país é este? Uma mulher negra, bonita, inteligente, uma política eleita, uma mãe, uma filha, o amor de alguém, recebe quatro tiros na cabeça numa emboscada. Pam, pam, pam, pam. Seu crânio ficou tão destroçado que não foi possível abrir o caixão no funeral para que seus entes queridos se despedissem do seu rostinho. Sua filha adolescente não pôde lhe dar o último beijo. Qualquer ser humano se sentiria tocado com uma brutalidade dessas. Menos a direita brasileira.

Qualquer ser humano com sensibilidade para sentir a dor do outro, para se colocar no lugar do outro, se sentiria indignado com a covardia de matar uma mulher não porque ela estivesse armada, ou cometendo algum crime, mas por pensar e por expor suas ideias. Os únicos “crimes” de Marielle Franco: ser contra o sistema e ser negra; defender os irmãos da favela da violência policial; denunciar o genocídio dos jovens negros. Qualquer ser humano se sentiria indignado com a tragédia da morte de uma inocente. Menos a direita brasileira.

Estudos feitos nos EUA mostram que existe um déficit de empatia por lá. Nas últimas três décadas, a capacidade de se sentir solidário à dor do outro vem caindo dramaticamente. Assistimos um fenômeno similar em relação à execução de Marielle

Percebe-se, pelas reações de direitistas nas redes sociais, que quem defende “direitos humanos para humanos direitos” na verdade há muito perdeu a humanidade, se é que algum dia a possuiu. É gente incapaz de sentir compaixão pelo próximo, a não ser que sejam pessoas de sua própria família. Que desconhece o significado da palavra “empatia” simplesmente porque não possui em si este sentimento. São aleijados de empatia. Não só são incapazes de se solidarizar com a dor e a tristeza alheias, como tripudiam delas, pisam em cima. Em vez de chorar a perda sofrida pelo outro, dizem que é “mimimi”.

Isso não é só impressão: estudos feitos nos Estados Unidos mostram que existe um “déficit de empatia” por lá. Nas últimas três décadas, a capacidade de se sentir solidário à dor do outro vem caindo dramaticamente entre os jovens. Um estudo de 2010 da Universidade de Michigan mostrou que os estudantes norte-americanos de hoje possuem 40% a menos de empatia do que os jovens de 1979. De acordo com o estudo, os estudantes em geral se descrevem cada vez menos como “sensíveis” ou “preocupados” com seu semelhante, e admitem que a “desgraça alheia” não os perturba.

É gente incapaz de sentir compaixão pelo próximo, a não ser que sejam pessoas de sua própria família. Não só são incapazes de se solidarizar com a dor e a tristeza alheias, como tripudiam delas, pisam em cima. Em vez de chorar a perda sofrida pelo outro, dizem que é mimimi

Assistimos no Brasil um fenômeno similar em relação à execução da vereadora do PSOL. Com a participação de um deputado, presidente do DEM do Distrito Federal, de uma desembargadora e de (de)formadores de opinião reacionários, estes seres humanos desumanizados dedicaram os últimos dias a achincalhar e vilipendiar a memória de Marielle Franco, a ponto de um portal de grande audiência passar o domingo com o desmentido no alto da homepage: “Marielle não foi casada com Marcinho VP nem eleita pelo Comando Vermelho”. Algo inútil, porque o mais grave não é que se espalhem boatos, é que os espalhadores de boatos sabem que os boatos são boatos. Espalham mentiras propositalmente.

Faz parte da estratégia de “melhorar” a execução de Marielle caluniá-la, transformando a vítima em culpada, costume manjado da extrema-direita. A mulher é culpada de seu próprio estupro porque “provocou” ao usar roupa curta e sexy; a mulher é culpada de seu próprio espancamento porque “provocou” o marido; a mulher é culpada de sua própria execução porque “provocou”. São raciocínios gêmeos de “é pobre porque não se esforçou”.

O racismo fica explícito nas calúnias. Ora, Marielle não pode ser uma mulher negra que estudou e se tornou uma vereadora campeã de votos no Rio. Tem que ser usuária de drogas, ter ligações com o tráfico e com o crime organizado. Assim eles podem dormir com a consciência tranquila

Todos os dias, desde a última quarta-feira, tenho recebido prints de postagens abomináveis sobre a vereadora executada. Da síndica de um prédio em Curitiba ao bolsominion do Pará, perfis de direita compartilham mentiras e enxovalham a biografia de uma pessoa barbaramente assassinada que tudo que fez na vida foi lutar contra a violência, apenas porque tinha uma ideologia diferente da sua.

O racismo fica explícito nas calúnias. Ora, Marielle não pode ser uma mulher negra que estudou e se tornou uma socióloga reconhecida, uma vereadora campeã de votos no Rio de Janeiro. A “meritocracia” que eles tanto elogiam não serve para ela. Marielle tem que ser “bandida”, usuária de drogas, ter ligações com o tráfico e com o crime organizado. Assim eles podem dormir com a consciência tranquila.

Eu não vou dar voz a estas aberrações, não vou fazer com que seu discurso de ódio reverbere ainda mais. Só vou lamentar a perda de sentimentos como solidariedade, amor ao próximo, respeito, tolerância. O pior é que muitas destas pessoas sem coração se dizem “cristãs”. Esta, no fundo, é a maior mentira de suas vidas.

 

 


Apoie o site

Se você não tem uma conta no PayPal, não há necessidade de se inscrever para assinar, você pode usar apenas qualquer cartão de crédito ou débito

Ou você pode ser um patrocinador com uma única contribuição:

Para quem prefere fazer depósito em conta:

Cynara Moreira Menezes
Caixa Econômica Federal
Agência: 3310
Conta: 000591852026-7
PIX: [email protected]
(10) comentários Escrever comentário

Os comentários aqui postados são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião da Socialista Morena. Todos as mensagens são moderadas. Não serão aceitos comentários com ofensas, com links externos ao site, e em letras maiúsculas. Em casos de ofensas pessoais, preconceituosas, ou que incitem o ódio e a violência, denuncie.

José Cláuver em 19/03/2018 - 18h08 comentou:

Sensacional e verdadeiro, Cynara!

Ainda temos esperança no futuro porque sabemos que há uma maioria decente entre os seres humanos, mas estas bestas-feras não se cansam de nos escandalizar.

Vamos em frente.
Por Marielle, pela paz e pela solidariedade.

Socialismo ou barbárie!

Responder

Rafael Rego BH em 19/03/2018 - 19h14 comentou:

Hoje quando cheguei no serviço a primeira frase que escutei foi: “era uma bandida, eu conheço ela de videos do youtube, voce não tem ideia do que essa mulher defendia”.

Esse pessoal podia voltar pra jaula…

Responder

Gil Teixeira em 19/03/2018 - 19h26 comentou:

“Somos como soca de cana: me cortem e nasço sempre”
Grito de Guerra do Teatro Popular União e Olho Vivo!

Responder

João Junior em 19/03/2018 - 21h00 comentou:

Quando leio livros de paleontologia, embora minha formação me leve às exatas, fico comovido pelo que os primeiros da nossa espécie passaram para que estivéssemos aqui. É algo realmente fascinante que tenhamos sobrevivido a tigres, leões e hienas na África. Como também é fascinante o fato de sermos descendentes de pessoas com extraordinária capacidade de cooperação. Autores como Richard Leakey, Robert Sapolsky e Frans de Waal mudaram meu ponto de vista sobre a humanidade. Me deixaram um pouco mais esperançoso, embora duvide exatamente da capacidade de ter empatia de muitas pessoas.

Quando li Simone de Beauvoir e Hannah Arendt, um novo universo se abriu para mim. Enxerguei aí uma nova forma de olhar para a humanidade. Mas mais especificamente a mim mesmo como homem. De repente, entendi como sou machista, sexista. Sou, e não “era”. O machismo é invisível para quem o tem naturalizado, entranhado na cultura. A falta de empatia é reflexo de uma educação que leva ao individualismo. Pior, ao isolacionismo que leva a encarar o outro como um degrau para um projeto egoísta.

Nesse sentido é que parece que se naturaliza algo trágico como a morte de Marielle. A partir do desligamento da sociedade, da individualização do social e da mais completa falta de utopia e de acreditação de valores como política, civilidade e ética. Todas essas coisas precisam ser discutidas na escola e em casa, no trabalho e na rua, senão, quem sabe o que ainda virá?

Responder

    Tuani em 20/03/2018 - 09h42 comentou:

    Perfeita sua colocação!

    Carmen Tolentino em 20/03/2018 - 17h41 comentou:

    Perfeito!

Marcelo em 20/03/2018 - 00h12 comentou:

Acabei de assistir no “Cafézinho da Noite” seu bate papo…
Confesso que pelo horário não vou ver a integra (amanhã vejo), tenho de dormir mesmo….
Mas como perdi a transmissão ao vivo venho aqui deixar meu abraço e meus mais sinceros elogios.
– “Tú é o cara, meu !!!” (como dizemos aqui…)
– Cynara é top, é inteligente, é um luxo de ser humano, de verdade,,,

No trecho que parei você estava justamente falando da falta de empatia da direita e ao vir para cá esta matéria me atraiu.

É triste o que anda acontecendo e como as pessoas estão se revelando, (pois ninguém muda, apenas se assume).

Enfim ,,, meus parabéns e ótima noite pra ti e pra mim.

Responder

cidy barnar em 21/03/2018 - 15h36 comentou:

Belo texto, mas não ví até agora a esquerda repreendendo Maduro.

Responder

Ana carla em 21/03/2018 - 16h52 comentou:

Perfeita a sua colocação Cynara! e ótimo comentário do João. Não conhecia esse espaço e adorei!

Responder

Luciano em 06/04/2018 - 20h18 comentou:

A morte da Marielle mostra que o bandido pouco se importa com a dor dos entes queridos de suas vítimas, quantas pessoas neste Brasil independente de cor, gênero,orientação sexual, classe social etc vão ter que ter suas vidas ceifadas para que o fantasma da impunidade seja de uma vez por todas exorcizado de nosso pais?

Responder

Deixe uma resposta

 


Mais publicações

Direitos Humanos

“Sacos da morte”: a bolsonarização da oposição argentina


Com a pandemia, as fake news aumentaram e a direita, apoiada pela mídia comercial, assumiu seu fascismo

Direitos Humanos

Dilma, olhe para os presídios


Para manter ao lado os formadores de opinião de esquerda que ajudaram a tornar possível sua reeleição, a primeira coisa que a presidenta Dilma Rousseff deve fazer, em minha opinião, é soltar com urgência um…