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Entrevistas históricas: Georges Simenon entrevista Leon Trótski em 1933

“O fascismo não é provocado por uma psicose ou ‘histeria’, mas por uma crise econômica e social profunda que devora o corpo da Europa sem piedade”. Pronunciadas em 1933, as palavras de Leon Trótski (1879-1940) soam mais atuais do que nunca diante do recrudescimento dos partidos neonazistas na Europa novamente em crise. O revolucionário russo […]

Cynara Menezes
12 de agosto de 2014, 15h59
trotskiprinkipo

(Leon Trótski em seu escritório em Prinkipo, Turquia, ao redor de 1930. Foto: David King Collection)

“O fascismo não é provocado por uma psicose ou ‘histeria’, mas por uma crise econômica e social profunda que devora o corpo da Europa sem piedade”. Pronunciadas em 1933, as palavras de Leon Trótski (1879-1940) soam mais atuais do que nunca diante do recrudescimento dos partidos neonazistas na Europa novamente em crise. O revolucionário russo estava em seu desterro de quatro anos na Turquia quando foi entrevistado pelo então jovem escritor belga Georges Simenon (1903-1989).

Simenon tinha acabado de criar seu mais célebre personagem, o inspetor Maigret, que marcaria presença em mais de 70 romances e 30 contos do escritor. Atuava como correspondente para o jornal Paris-Soir e corria o mundo escrevendo reportagens, uma hora na África, outra na União Soviética, ou nas ilhas Príncipe (Prinkipo), onde vai encontrar Trótski vivendo uma tranquila vida de aposentado que não duraria muito: em seguida partiria para a França e de lá para a Noruega, de onde seguiria para o México encontrar a morte, encomendada pelo rival Stalin.

As análises de Trótski, judeu, sobre raça, e a previsão, seis anos antes, de que a Alemanha de Hitler iria levar a Europa à guerra demonstram sua profunda visão estratégica e o desprezo dos comunistas pelos conceitos e “ideias” nazistas. O texto de Simenon, é claro, flui deliciosamente, como as águas azuis e tranquilas que cercam a ilha e que ele, amante do mar, faz questão de destacar. Quanto o jornalismo de hoje tem a aprender com o passado… Eu traduzi para vocês (original aqui). De bônus, um documentário feito na Turquia sobre a passagem de Trótski por lá, narrado pela atriz Vanessa Redgrave. Espero que desfrutem.

***

Com Trótski

Por Georges Simenon

(publicado pelo Paris-Soir nos dias 16 e 17 de junho de 1933)

Encontrei Hitler dez vezes no Kaiserhof quando, tenso e febril, já chanceler, fazia sua campanha eleitoral. Vi Mussolini contemplar incansavelmente um desfile de milhares de jovens. E uma tarde em Montparnasse reconheci Gandhi em uma silhueta branca que caminhava colada ao muro, seguido por jovenzinhas fanáticas.

Para entrevistar Trótski eu me vi na ponte que conecta a velha e a nova Constantinopla, Istambul e Gálata, uma ponte mais cheia de gente que a Pont-Neuf em Paris. Por que tenho a sensação de um bonito domingo no Sena perto de St. Cloud, Bougival ou Poissy? Não sei.

Todos os barcos ao redor dos piers emaranhados me lembram bateaux-mouches. Eles são maiores? Certamente. Há inclusive um ar marinho, e as hélices batem contra a água salgada. Mas é uma questão de proporção. O cenário inteiro é mais vasto, o próprio céu é mais distante.

Aqui uma margem é chamada Europa e a outra, Ásia. No lugar dos rebocadores e barcaças do Sena há muitos navios de carga e de passageiros com bandeiras de todos os países do mundo que saem para o Mar Negro ou navegam através do Dardanelos.

Qual a importância disso? Eu mantenho minha impressão de um domingo bonito, de subúrbios, de tabernas. Há amantes na ponte de embarque do navio, camponeses transportando galinhas e frangos em gaiolas, marinheiros de folga que sorriem adivinhando os prazeres que irão oferecer a si mesmos.

Trótski? Escrevi para ele anteontem para pedir uma entrevista. Ontem pela manhã já acordei com o timbre do telefone.

“Monsieur Simenon? Aqui é o secretário de Monsieur Trótski. M. Trótski irá recebê-lo amanhã às 4 da tarde. Antes disso eu preciso lhe dizer que M. Trótski, cujas declarações têm sido frequentemente deturpadas, gostaria de receber suas perguntas por escrito antecipadamente. Ele irá respondê-las por escrito…”

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(O escritor Georges Simenon à época da entrevista)

Fiz três perguntas. O céu é azul, o ar tão límpido como as águas profundas onde se podem ver os movimentos das algas verde-escuras. Abaixo, no Mar de Mármara, a uma hora de Constantinopla, quatro ilhas emergem, as “Ilhas”, como elas são chamadas aqui, e já estamos tocando o ancoradouro da primeira delas.

Meudon ou St. Cloud, com as cores da Côte d’Azur. As encostas são suaves e verdes, sombreadas por pinheiros. Mas isto são os subúrbios. Lá estão as datilógrafas sonhadoras e as balconistas dentro dos barquinhos remados pelos namorados. Vende-se chocolate e sorvete, e fotógrafos param os passantes enquanto uma mulher plácida cuida de uma tenda de tiro-ao-alvo.

A distância entre as ilhas é pouco maior do que entre as margens do Sena. O verde é polvilhado de vilas brancas erguidas nas encostas. Uma outra parada. Mais uma. Quase todos os casais já deixaram o barco.

E eis Prinkipo (Príncipe), a ilha onde, em algum lugar, está a casa de Trótski.

Falou-se de um retiro suntuoso, uma vila de luxo, uma propriedade paradisíaca.

Também ao longo do Sena, à medida que saímos de Paris, o nível social sobe, mansões substituem os cafés e barcos a motor substituem os barquinhos a remo alugados.

O ancoradouro em Prinkipo é mais elegante e rodeado por restaurantes cujas toalhas de mesa brancas reluzem ao sol. Carroças com dois cavalos estão à espera, cobertas com um toldo de lona, que enfrentam a concorrência de burros selados que aguardam sem impaciência. Há 50, talvez uma centena na pequena praça.

Sexta-feira, dia de descanso na Turquia, eles estarão sobrecarregados. E em qualquer lugar onde houver sombra e grama, no pequenino riacho, atrás dos arbustos, nos morros, a multidão irá se reunir, espalhar seus alimentos, e se embriagar em risadas, música e amor.

Trótski? Uma carroça me leva por um caminho ladeado de casas. Muitas estão à venda ou para alugar, porque a crise está brava na Turquia, também. As cortinas estão fechadas, mas os jardins estão cheios de rosas tão gordas que parecem obesas. Do outro lado, se vê o tranquilo mar azul. O cocheiro estende seu braço. Tudo que tenho a fazer é descer por um beco. Tudo é tão calmo, tão imóvel, o ar, a água, as folhas, o céu, que ao passar se tem a impressão de romper os raios do sol.

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(A casa de Trótski em Prinkipo. Foto: James Hughes)

Há um homem detrás da grade. Sua túnica de policial turco está aberta sobre uma camiseta branca e, como um pacífico aposentado em seu jardim, ele está usando pantufas.

Outro policial se aproxima, este à paisana, ou melhor, em mangas de camisa, pois acaba de se lavar e está secando suas orelhas com a ponta da toalha.

“Monsieur Simenon?”

Estou em um jardim de luxo que tem somente 100 metros por 50. Um cãozinho rola na poeira. Um jovem desgrenhado, em uma rede, lê um panfleto inglês sem nem mesmo levantar o olhar em minha direção.

E lá, na varanda, há um outro jovem. Ele também está de chinelos e em mangas de camisa. E dois outros tomam café na primeira sala, que está mobiliada apenas com uma mesa e algumas cadeiras.

Tudo isso acontece em slow-motion. Acho que é por causa do ar. Estou em slow-motion também, sem nenhuma pressa; ia dizer sem curiosidade.

“Monsieur Simenon?”

Um dos jovens se aproxima, sua mão estendida, e logo estamos ambos sentados no terraço enquanto na outra ponta do jardim o policial termina sua toalete.

Pode-se estar ali por horas fazendo nada, dizendo nada, talvez pensando nada.

“Se você não se importa, primeiro nós dois falamos. E então você verá M. Trótski.”

O secretário não é russo. Ele é um jovem do norte, cheio de saúde, as bochechas rosadas, com olhos claros. Ele fala francês como se tivesse nascido em Paris.

“Estou bastante surpreso que M. Trótski tenha aceitado recebê-lo. Normalmente ele evita jornalistas.”

“Você sabe por que recebi esta distinção?”

“Não faço ideia.”

Nem eu. E continuarei sem saber. Talvez minhas questões coincidam com o desejo de Trótski de fazer uma declaração sobre determinado assunto?

Conversamos, e ao redor de nós tudo está quieto na imobilidade do ar. Os dois jovens no jardim são convidados; um inglês e um sueco. Eles irão embora após uma semana ou um mês e então outros virão, de outras partes do globo, amigos ou discípulos, que irão viver durante um tempo na intimidade da casa em Prinkipo. Uma verdadeira intimidade, quase a intimidade total de uma caserna.

Lá em cima, na estrada, carroças passam.

“Nunca houve um ataque?”

“Nunca. Como você vê, a vida é simples. Os dois policiais vivem neste barraco, ao fundo do jardim. M. Trótski raramente vai a Constantinopla, somente para ver seu médico ou dentista. Ele toma o barco que trouxe você aqui e o policial o acompanha.”

Esta é mais ou menos a inteira vida externa da casa. Trótski e Mme. Trótski vão ao médico.

No demais eles nem mesmo descem para o vilarejo. Que bem isto iria fazer? As pessoas precisam estar lá para entender, naquele terraço com vista para o jardim e para o mar, com, como horizonte próximo, a Ásia de um lado e a Europa do outro.

“Quer vê-lo agora?”

As paredes estão nuas nos quartos, brancas, e há apenas estantes de livros para quebrar a monotonia. Há livros em todos os idiomas, e eu distingo um Viagem ao Fim da Noite (de Céline) com a capa desgastada.

“M. Trótski acaba de lê-lo e ficou profundamente emocionado. A propósito, quando se trata de literatura é a francesa que ele conhece melhor…”

Trótski se levanta para me dar a mão, então se senta em sua escrivaninha, pesando docemente seu olhar sobre minha pessoa.

Ele foi descrito um milhão de vezes, e eu não gostaria de tentar fazer o mesmo. O que eu gostaria de fazer é transmitir a mesma impressão de calma e serenidade que tive, a mesma calma, a mesma serenidade que há no jardim, na casa, no cenário.

Trótski, simples e cordial, me estende as páginas datilografadas que contêm as respostas às minhas questões.

“Eu as ditei em russo e meu secretário as traduziu esta manhã. Eu gostaria apenas de perguntar se você assinaria uma segunda cópia que ficará comigo.”

Há jornais de todo o mundo sobre sua mesa, e o Paris-Soir está no topo da pilha. Será que Trótski o folheou antes da minha chegada?

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Através da janela aberta para a baía vejo um minúsculo cais no final do jardim onde dois barcos flutuam: um pequeno caiaque turco e um bote a motor.

“Veja”, Trótski sorriu, “estive pescando desde as seis horas da manhã”.

Ele não me diz que é forçado a levar um dos policiais, mas eu sei disso.

Com um gesto ele aponta as montanhas da Ásia Menor, que estão a pouco mais de 5 quilômetros dali.

“Lá há caça no inverno…”

Sobre a mesa, perto dos jornais, há um artigo que ele começou a escrever.

Esta é toda a vida da casa. Uma, às vezes duas vezes ao dia, Trótski joga a sua linha nas águas calmas do Mar de Mármara.

O resto do tempo ele fica no escritório, ao mesmo tempo tão longe e tão perto do mundo.

“Infelizmente, eu recebo os jornais somente muitos dias depois.”

Ele sorri. Seu rosto está relaxado, o olhar tranquilo. Mas não é graças a um esforço? Ele não é forçado a guardar suas forças? Para continuar sua obra, ele não se força a levar esta vida prudente, que lembra os gestos hesitantes de um convalescente?

Mas talvez não seja nada além de sabedoria.

“Você pode me fazer perguntas.”

É verdade. Mas o que será dito agora eu prometi não publicar. Trótski comenta sobre as declarações que me deu. Sua voz, seus gestos, em uníssono com a paz ambiente.

Conversamos longamente sobre Hitler. O assunto o preocupa. Pode-se sentir quanto. Repito para ele as opiniões contraditórias que ouvi ao redor da Europa, não sobre a atuação de Hitler, mas sobre sua personalidade, seu valor próprio.

Não acho que esteja traindo minha promessa ao repetir algumas das frases que me impressionaram na casa em Prinkipo, tão longe de Berlim.

“Pouco a pouco Hitler construiu a si mesmo ao mesmo tempo que fazia seu trabalho. Ele aprendeu passo a passo, etapa por etapa, ao longo da luta.”

As respostas às minhas perguntas? Nós as leremos juntos.

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(Simenon, ao centro com a cantora Josephine Baker, em 1927)

II

Perguntei a Trótski:

“O senhor acha que a questão racial irá predominar na evolução que virá da turbulência atual? Ou será a questão social? Ou a econômica? Ou a militar?”

Trótski responde:

“Não, eu não acho que a raça será um fator decisivo na evolução da próxima era. Raça é um assunto estritamente antropológico – heterogêneo, impuro, misturado (mixtum compositum) –, um assunto a partir do qual o desenvolvimento histórico criou produtos semi-acabados que são as nações… Classes e agrupamentos sociais e as correntes políticas que nascerão desta base decidirão o destino da nova era. Não nego, obviamente, o significado e as qualidades distintivas e características das raças; mas, no processo evolutivo, elas estão em segundo plano, atrás das técnicas do trabalho e do pensamento. Raça é um elemento estático e passivo, e a historia é dinâmica. Como um elemento imóvel em si mesmo pode determinar movimento e desenvolvimento? Todos os traços distintivos entre as raças se desvanecem diante do motor de combustão interna, para não mencionar a metralhadora.

“Quando Hitler se preparou para estabelecer um regime de Estado adequado à pura raça germano-nórdica ele não fez nada mais que plagiar a raça latina do Sul. Em seu tempo, durante a luta pelo poder, Mussolini utilizou claro, virando de ponta-cabeçaa doutrina social de um alemão, ou melhor, um judeu alemão, Marx, a quem, um ou dois anos antes, chamou de “o professor imortal de todos nós’. Se hoje, no século 20, os nazistas propõem virar as costas para a história, para a dinâmica social, para a civilização, para retornar à ‘raça’, por que não ir mais atrás? Antropologia não é verdade? é só uma parte da zoologia. Quem sabe talvez no reino dos anthropopithecus os racistas irão achar a maior e mais incontestável inspiração para sua atividade criativa?”

Ditaduras e democracias

Pergunta:

“O agrupamento de ditaduras pode ser considerado um embrião do reagrupamento de povos ou isso é só uma fase passageira?”

Resposta de Trotsky:

“Não acho que o agrupamento de países acontecerá, por um lado, sob o signo da ditadura e por outro, da democracia.

“Com a exceção de uma pequena parte de políticos profissionais, nações, povos e classes não vivem da política. Formas de estado são só um meio diante de determinadas tarefas, especialmente as econômicas. Obviamente uma certa similitude entre regimes de Estado predispõe à aproximação e torna isso mais fácil. Mas em última instância são as considerações materiais que decidem: interesses econômicos e cálculos militares.

“Se eu considero o grupo de ditaduras fascistas (Itália, Alemanha) e as quase-bonapartistas (Polônia, Iugoslávia, Áustria) episódicas e temporárias? Por desgraça, eu não posso fazer uma previsão tão otimista. O fascismo não é provocado por uma psicose ou “histeria” (é assim que se consolam os teóricos de salão como o conde Sforza), mas por uma crise econômica e social profunda que devora o corpo da Europa sem piedade. A atual crise cíclica só fez mais agudos os processos orgânicos mórbidos. A crise cíclica irá inevitavelmente ceder seu lugar a uma reanimação conjuntural, apesar de que será em um grau menor do que o esperado. Mas a situação geral da Europa não ficará muito melhor. Após cada crise, as empresas pequenas e fracas ficarão ainda mais fracas ou irão morrer completamente. As empresas fortes irão ficar ainda mais fortes. Perto do gigante econômico dos Estados Unidos, a Europa rota em pedaços representa uma combinação de pequenas empresas hostis umas às outras. A situação atual da América é muito difícil: o próprio dólar está de joelhos. No entanto, após a crise atual as relações de forças irão mudar a favor da América e em detrimento da Europa.

“O fato que o velho continente como um todo está perdendo a situação privilegiada que teve no passado leva a uma excessiva exacerbação de antagonismos entre os Estados europeus e entre as classes dentro dos Estados. Naturalmente, nos diferentes países estes processos levam a um diferente nível de tensão. Mas eu falo de uma tendência histórica geral. O crescimento de contradições sociais e nacionais explica, no meu ponto de vista, a origem e a relativa estabilidade das ditaduras.

“Para explicar meu pensamento permita que me refira ao que tive ocasião de dizer anos atrás sobre esta questão: por que democracias dão lugar a ditaduras e isso dura tanto? Vou lhe dar uma citação literal do artigo escrito em 25 de fevereiro de 1929:

“Costuma-se dizer neste caso que estamos lidando com nações retrógradas ou imaturas. Esta explicação se aplica apenas à Itália. Mas mesmo nos casos em que esta explicação é correta, isto não esclarece nada. No século 19 era quase uma lei que países atrasados alcançassem a democracia. Por que então o século 20 os empurra no caminho da ditadura? As instituições democráticas mostram que não suportam a pressão das contradições contemporâneas, ora externas, ora internas, mas mais frequentemente ambas ao mesmo tempo. Isto é bom? Isto é ruim? Em todo caso, é um fato.

“Por analogia com a eletricidade, a democracia pode ser definida como um sistema de interruptores e isolantes contra correntes muito fortes da luta nacional ou social. Nenhuma era na história humana foi tão saturada de antagonismos como a nossa. Um excesso de corrente é crescentemente sentido em diferentes pontos da rede européia. Sob uma grande pressão de contradições de classe e internacionais os interruptores da democracia vão derreter ou explodir. São os curto-circuitos das ditaduras. Os interruptores mais fracos são obviamente os primeiros a falhar.

“Quando escrevi estas linhas, a Alemanha ainda tinha um social-democrata no comando do governo. Está claro que a subsequente marcha de acontecimentos na Alemanha – um país que ninguém pode considerar atrasado – não foi capaz de modificar minha apreciação da situação.

“É verdade que durante este tempo o movimento revolucionário na Espanha varreu não só a ditadura de Primo de Rivera, mas também a monarquia. Correntes contrárias deste tipo são inevitáveis no processo histórico. Mas o equilíbrio interno está longe de acontecer na Península mais além dos Pirineus. O novo regime espanhol ainda não demonstrou sua estabilidade.”

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(Trotski indo para o exílio na Turquia em 1928)

Guerra ou paz?

Pergunta:

“O senhor acredita em uma possível evolução gradual ou considera um choque violento necessário? Por quanto tempo a indecisão atual pode ser prolongada?”

Resposta:

“O fascismo, particularmente o nacional-socialismo alemão, coloca a Europa em um indiscutível perigo de um choque bélico. E, talvez eu esteja errado, mas parece que não estamos suficientemente conscientes do perigo. Como temos à vista uma perspectiva não de um mês, mas de anos e certamente não dezenas de anos, considero absolutamente inevitável uma explosão bélica da Alemanha fascista. É precisamente esta questão que poderá se tornar decisiva para o destino da Europa. Espero muito em breve escrever mais sobre isso na imprensa.

“Talvez você ache minha apreciação da situação muito sombria. Estou só tentando desenhar conclusões a partir de fatos, tomando como guia não a lógica de simpatias e antipatias, mas a lógica do processo objetivo. Espero que não seja necessário provar que nossa era não é uma era de prosperidade calma e pacífica e de conforto político. Mas minha apreciação da situação só pode parecer pessimista para quem mede a marcha da história com uma régua curta. De perto, todas as grandes eras pareciam sombrias. O mecanismo do progresso, deve-se reconhecer, é bastante imperfeito. Mas não há razão para pensar que Hitler, ou uma combinação de Hitlers, irão ter sucesso sempre ou talvez por alguns anos fazendo este mecanismo ir para trás. Eles irão quebrar muitos dentes da engrenagem, vão torcer muitas alavancas, irão fazer a Europa ir para trás por alguns anos. Mas não tenho dúvida que no final, a humanidade irá achar seu caminho. Todo o passado é uma garantia disto.”

“Você tem outras questões a fazer?” Trótski pergunta pacientemente.

“Só uma, mas temo que possa parecer indiscreta.”

Ele sorri e, com um gesto, me encoraja a prosseguir.

“Os jornais dizem que o senhor recebeu recentemente emissários de Moscou com a missão de chamá-lo para retornar à Rússia.”

O sorriso se acentua.

“Não é verdade, mas eu sei a fonte desta história. Um artigo de minha autoria que apareceu dois meses atrás na imprensa norte-americana. Eu disse, entre outras coisas, que dadas as políticas atuais na Rússia eu estaria pronto a servir de novo se algum perigo ameaçasse o país.”

Ele está calmo e tranquilo.

“O senhor poderia voltar à ativa?”

Ele diz sim com a cabeça, enquanto um dos jovens, sem dúvida para a pesca da tarde, instala redes no barco.

De volta a Saint-Cloud, quer dizer, Prinkipo, e bateau-mouche.

Naquela noite eu jantei no Régence. O prospecto dizia: “O elegante restaurante onde você será bem recebido por damas da aristocracia russa…”

Há ainda um milhar de emigrantes russos em Constantinopla e como em Paris, Berlim e outras partes, a noite tem a nostalgia das balalaikas, piroyoks, vodca e chachliks.

Naquela hora, em sua ilha que as balconistas e os ambulantes desertaram, Trótski dorme.

Assista também ao documentário sobre o exílio de Trótski na Turquia narrado por Vanessa Redgrave


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(20) comentários Escrever comentário

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Claudionor Damasceno em 12/08/2014 - 18h06 comentou:

Georges Simenon é aquele que viveu traquila e opulentamente na França ocupada pelos nazistas, escrevendo para os jornais de Hitler. Era muito amigo de André Gide, aquele outro que era financiado pela CIA na Guerra Fria Cultural para produzir "relatos" tenebrosos sobre a União Soviética. Não é de grátis que Simenon foi parar nos EUA depois da guerra, ele e uma cambada de portadores do persilscheines…

Responder

    Anderson Botelho em 13/08/2014 - 14h07 comentou:

    E o que Você quer dizer com isso?

    marquesmaria em 13/08/2014 - 19h46 comentou:

    Algo muito obscuro, pela certa!!!!

    Claudionor Damasceno em 14/08/2014 - 18h49 comentou:

    Caro Botelho, o que eu quero dizer, esta dito, sem delongas. Entende quem quer.

    Horridus Bendegó em 13/08/2014 - 19h15 comentou:

    Não invalida a entrevista e, principalmente, as previsões formuladas por Trostky sobre o fascismo ma europa dos anos 30, não?

    Claudionor Damasceno em 14/08/2014 - 20h25 comentou:

    Caro Bendegó, àquela época, a trama da guerra estava mais do que evidente, tendo sido, inclusive, uma das razões para que o poder soviético desse cabo do trotskismo já no início de 1929. Este fazia papel de quinta-coluna, na esperança (delírio) de que a URSS sairia derrotada e Trotsky retornaria vitorioso. Em TODAS as suas publicações, Trotsky afirmava ser inevitável uma derrota da União Soviética pq o “imperialismo é incomparavelmente mais forte”. Stalingrado que o diga… O que esse pequeno trecho de entrevista evidencia são, além do deleite de um notório jornalista nazista para com Trotsky, as nulidades afirmadas por este, seja sobre a situação da Europa ou sobre as questões de raça, democracia e ditadura.

Ricardo G. Ramos em 12/08/2014 - 18h15 comentou:

Acabei assistindo a todo o seriado narrado pela Divina Vanessa Redgrave pelo You Tube. Valeu a pena.

Responder

eu_ em 14/08/2014 - 03h00 comentou:

Infeliz daquele que precisa de ídolos, passará seus dias trafegando sobre bitolas imaginárias

Responder

Bacellar em 15/08/2014 - 20h25 comentou:

Valeu SM! Excelente.

Responder

Neide Solimões em 16/08/2014 - 17h46 comentou:

Muito bom! Basta ver tudo que tem acontecido na Europa e no mundo para ver, com necessidade de algumas atualizações, que Trotski tinha uma visão ampla e analisava a conjuntura com sabedoria.

Responder

Rogério Zanuto em 17/08/2014 - 13h46 comentou:

Entrevista que parece um romance. Cheia de detalhes da chegada e do encontro. Me parece que Trótski acertou tudo o que previu ali.
Cynara, você é linda mulher. Beijão e que bom que voltou das férias.

Responder

Fabio Ramos em 20/08/2014 - 01h54 comentou:

Belissimo post sobre Trotski.
Sem dúvidas um dos melhores materiais que já vi na na internet.

Responder

karlos em 24/08/2014 - 14h58 comentou:

http://www.minutodigital.com/2014/08/19/en-un-mer

Responder

Nelo de Carvalho em 27/12/2014 - 16h39 comentou:

Até hoje não se sabe na verdade quem matou Tolski. Mas os anticomunistas que se fazem passar de esquerdista, e até muita dessa esquerda burra engolida pela propaganda burguesa e de direita, insistem em dizer que foi Stalin que mandou matar Tolski. Este último poderia ter mais inimigos na época do que a quantidade de formiga que compõem um formigueiro, nem por isso oferecia tanto perigo assim a Revolução Russa. O sujeito já tinha sido neutralizado dentro da própria Russa, acreditar que ele oferecia algum perigo para a Revolução Rússia ou o próprio Stalin é ignorância dessa esquerda burra que ajudou na derrubada da antiga União Soviética ( proposital ou despropositalmente) e má fé da direita fascista que tem pela mania de ver no comunismo o que ela é em maldade.

Por outro lado, este blog impressiona pelo seu título, "Morena Socialista", só lamento em dizer que socialismo além de ser um inúmero benefícios em prol da humanidade em que todos nós queremos participar na mesma-construindo-, desde que não exista má intenção, também, é a capacidade de não poder se deixar enganar. Infelizmente, esse blog, ou sua autora, nem sempre consegue isso.

Lamento em dizer que chega a ser uma decepção.

Responder

Luiz Souto em 27/12/2014 - 17h16 comentou:

Em Prinkipo Trotsky escreveu diversos artigos sobre a evolução política da Alemanha até a chegada de Hitler ao poder. Eles posteriormente foram publicados em livro ( titulo em português: Revolução e Contra Revolução na Alemanha) e constituem um fantástico conjunto de análises que mostram a responsabilidade da Internacional Comunista , submetida ás diretrizes estalinistas , na chegada dos nazistas ao poder por terem imposto aos comunistas alemães a suicida estratégia do "social-fascismo". Por estas diretrizes o inimigo principal era a social-democracia e não o nazismo; os comunistas alemães não só se abstiveram de fazer ações conjuntas com os social-democratas contra os nazistas como continuamente os atacaram , ainda que isto favorecesse os nazistas. Além do seu interesse teórico pelas penetrantes análises de Trotsky , é um livro angustiante pelo fato do exilado ver-se impotente para influenciar o curso dos eventos que ele claramente vê levando á catástrofe.

Responder

Rafael M em 28/12/2014 - 23h50 comentou:

Uma excelente entrevista, obrigado por compartilhar.

Responder

Heber de Oliveira Pelagio em 11/06/2019 - 09h21 comentou:

Trótski era o típico “democrata” de ocasião: ele somente passou a defender a “democracia” quando se viu excluído e perseguido pela ditadura do regime de partido único que ele mesmo ajudou a implantar na Rússia. Mesmo assim, ele enxergava a democracia apenas como um método para se chegar ao poder, não como um princípio a ser defendido incondicionalmente.

Certa vez, em meados de 1919, quando o país estava mergulhado numa crise de desnutrição chamada de Povolzhye pelos russos e decorrente da queda abruta da produção causada pelo caos econômico implantado pela Revolução Bolchevique, um professor da cidade de Moscou reclamou que os habitantes da Rússia estavam morrendo de fome, ao que Trótski respondeu: “Isso não é fome. Quando Tito tomou Jerusalém, as mães judias comeram seus filhos. Quando eu fizer as mães comerem os filhos, aí você pode me dizer: ‘Estamos morrendo de fome’.”

Por uma triste ironia do destino, houve mesmo casos de canibalismo na Rússia, de tão desesperadora que foi a fome sofrida pela população. Aliás, é justamente daí que vem aquela velha história sobre o comunista “comedor de criancinhas”, que muita gente não sabe.

A quem quiser saber mais sobre o fato, recomendo que veja a seguinte pesquisa, disponível a qualquer um na rede mundial de computadores, com fotografias da época: https://tinyurl.com/yxgloffe. Atenção: NÃO recomendo que as pessoas mais sensíveis vejam isso!

A quem desejar saber mais sobre o gênio psicótico de Trótski, recomenda que assista uma EXCELENTE série produzida na Rússia a respeito de sua vida que está sendo veiculada pelo Netflix. Abraços!

Responder

    Cynara Menezes em 11/06/2019 - 12h42 comentou:

    a série que você está louvando foi criticada por historiadores por sua falta de acuidade histórica

Heber de Oliveira Pelagio em 12/06/2019 - 00h22 comentou:

Cinara, a série de TV pode até conter imprecisões históricas, o que é bastante comum em se tratando de uma obra ficcional, ainda que baseada em fatos reais – Ou você acha realmente que William Wallace gritou “liberdade” enquanto era estripado vivo, como na cena final do filme Coração Valente, vencedor do Oscar e dirigido por Mel Gibson, que nem por isso deixa de ser uma obra-prima?! Entretanto, isso não significa que nada do que este filme e aquela série apresentam sobre os fatos esteja em desacordo ou desarmonia com a realidade.
A resposta de Leon Trotsky sobre o problema da Povolzhye (“grande fome”) na Rússia – por exemplo – é verdadeira e foi proferida por ele durante um diálogo com N. G. Kuznetsov, que na época (ainda muito jovem) atuava como tradutor, professor de idiomas e representante dos agricultores e depois seguiu carreira na marinha russa. Esse episódio veio a conhecimento público durante a Perestroika de Gorbachev e é também retratado pela vencedora do Nobel de Literatura Svetlana Aleksiévich em sua obra sobre “O Fim do Homem Soviético” (Editora Companhia das Letras, pág. 7).

Responder

    Cynara Menezes em 12/06/2019 - 15h17 comentou:

    pode ficcionalizar, o que não pode é falsear. a série opta, ao mesmo tempo, por uma visão stalinista de trotsky e por uma visão extremista de direita da revolução russa, ao adotar a tese de que foram os judeus que a financiaram

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