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Cultura

Entrevistas históricas: William Burroughs entrevista David Bowie. E vice-versa

(Em homenagem aos 100 anos de William Burroughs, completados hoje, 5 de fevereiro, republico este post de maio do ano passado.) Há quase 40 anos, em novembro de 1973, o repórter grego Craig Copetas conseguiria um feito histórico: reunir em uma só entrevista personagens tão aparentemente díspares quanto o cantor David Bowie e o poeta […]

Cynara Menezes
05 de fevereiro de 2014, 12h00

(Bowie e Bill na Rolling Stone, em foto de Terry O’Neill)

(Em homenagem aos 100 anos de William Burroughs, completados hoje, 5 de fevereiro, republico este post de maio do ano passado.)

Há quase 40 anos, em novembro de 1973, o repórter grego Craig Copetas conseguiria um feito histórico: reunir em uma só entrevista personagens tão aparentemente díspares quanto o cantor David Bowie e o poeta beat William Burroughs (1914-1997). Aparentemente, porque Bowie, então com 26 anos e às voltas com seu alterego futurístico Ziggy Stardust, e Bill, aos 59, envolvido em pesquisas sensoriais, encontraram mais pontos em comum do que a nossa imaginação poderia crer. Claro, é uma entrevista maluquíssima. O texto, hilário, provocativo e também visionário, seria publicado pela revista Rolling Stone em fevereiro de 1974.

Bowie e Bill falam de rock, poesia, sexualidade, seres extraterrestres, ficção científica, o futuro dos meios de comunicação… Tem de tudo um pouco. Particularmente divertido é o relato de ambos sobre o artista plástico Andy Warhol –não conto mais para não estragar a surpresa. Surpreendente ainda o desprezo que eles sentiam por toda a coisa flower power dos anos 1960… Em tempos caretas como os que vivemos, nada como ver dois homens adiante de seu tempo baterem um papo absolutamente inspirador.

Será que, se fosse hoje em dia, o youtube também censuraria o andrógino Ziggy, como fez com o novo clipe de Bowie, só voltando atrás após a repercussão negativa? Eu não duvido.

(Passei as últimas quatro semanas trabalhando na tradução desta longa entrevista em meu escasso tempo livre. Qualquer reparo, me falem. Aqui tem o original em inglês.)

***

O chefão beat encontra o senhor do glitter

Por Craig Copetas

William Seward Burroughs não é um homem falante. Uma vez, em um jantar, ele olhou fixamente para um par de microfones estéreos treinados para captar cada sussurro seu e disse: “Não gosto de falar e não gosto de gente tagarela. Como Ma Barker (lendária criminosa norte-americana). Lembram de Ma Barker? Bem, ela sempre disse: ‘Ma Barker não gosta de falar e não gosta de gente tagarela.’ Ela só ficava sentada lá com sua arma”.

Isto ocupava minha cabeça tanto quanto a misteriosa personalidade de David Bowie, enquanto um taxista irlandês conduzia Burroughs e eu até a casa de Bowie em Londres no dia 17 de novembro (“Estranhos edifícios nesta parte de Londres, colega”). Eu havia passado as últimas semanas preparando essa entrevista de mão dupla. Entreguei a Bowie todos os romances de Burroughs: Naked Lunch, Nova Express, The Ticket that Exploded  e os demais. Ele teve tempo apenas de ler Nova Express. Burroughs, por seu lado, tinha escutado apenas duas canções de Bowie, Five Years e Starman, embora tenha lido todas as letras dele. Mesmo assim eles tinham expressado interesse em conhecer um ao outro.

A casa de Bowie é decorada ao estilo ficção científica: uma pintura gigante, de um artista cujo estilo se situa entre Salvador Dalí e Norman Rockwell, está pendurada em cima de um sofá de plástico. Um contraste enorme com o humilde flat de dois quartos de Burroughs em Piccadilly, decorado com fotos de Brion Gysin –aposentos modestos para um escritor de tanto sucesso, mais parecido ao Beat Hotel em Paris do que a qualquer outra coisa.

Logo veio Bowie, usando uma calça legging tricolor da NASA. Ele pulou direto para uma detalhada descrição da pintura e suas qualidades surrealistas. Burroughs balançou a cabeça, e a entrevista/bate-papo começou. Nós três sentamos na sala por duas horas, falando e comendo: um prato de peixe jamaicano, preparado por um jamaicano da entourage de Bowie, com abacate recheado de camarão e beaujolais nouveau, servido por duas Bowettes interestelares.

Rolou imediatamente afeição e respeito entre os dois. De fato, poucos dias após a conversa, Bowie pediu um favor a Burroughs: uma produção de As Criadas estrelada por Lindsay Kemp, o velho professor de mímica de Bowie, tinha sido cancelada pelo editor de Jean Genet em Londres. Bowie queria levar o caso a Genet pessoalmente. Burroughs se impressionara com a descrição da produção feita por Bowie e tinha prometido ajudar. Algumas semanas depois, Bowie foi a Paris à procura de Genet seguindo as indicações de Burrroughs. Quem sabe? Talvez uma colaboração tenha iniciado; talvez, como Bowie diz, eles possam se tornar os Rodgers e Hammerstein (dupla de criadores de musicais da Broadway) dos anos 1970.

(outra foto da série, colorizada a mão por Bowie)

Burroughs: você faz todo o design de seu trabalho?

Bowie: Sim, tenho total controle. Não deixo ninguém fazer nada porque acho que posso fazer coisas melhores para mim. Não quero deixar outras pessoas brincarem com o que eles acham que estou tentando fazer. Não gosto de ler coisas que as pessoas escrevem a meu respeito. Prefiro ler o que os jovens dizem sobre mim, porque não é a profissão deles fazer isto.

As pessoas olham para mim para ver o que é o espírito dos 1970, ou pelo menos 50% disso. Não entendo os críticos. Eles são intelectualizados demais. Não são muito versados na linguagem da rua; têm que se esforçar para fazer isso. Têm que recorrer a dicionários para falar assim.

Frequentei escola de classe média, mas minha origem é de classe trabalhadora. Tenho o melhor de ambos os mundos, conheci ambas as classes, então tenho uma ideia bastante justa de como as pessoas vivem e por que fazem isso. Não posso colocar isso muito bem em palavras, mas tenho o feeling. Não sobre as classes altas. Quero encontrar a rainha e então veremos. Como você vê a maneira como as pessoas o retratam?

Burroughs: Eles tentam classificar você. Querem ver o retrato deles de você e se não o vêem ficam muito preocupados. Escrever é ver o quão próximo se pode chegar do que irá acontecer, este é o tema de toda a arte. O que mais eles acham que o homem realmente quer, um pastor em uma missão em que não acredita? Acho que a coisa mais importante do mundo seria que os artistas pudessem tomar conta deste planeta, porque são os únicos capazes de fazer alguma coisa acontecer. Por que devemos deixar estes políticos fodidos das notícias nos governarem?

Bowie: Eu mudo muito de opinião. Normalmente não concordo muito com o que digo. Sou um grande mentiroso.

Burroughs: Eu também.

Bowie: Não sei se é porque eu mudei de opinião ou se minto muito mesmo. Um pouco dos dois. Não é exatamente mentir, mudo de opinião o tempo todo. As pessoas estão sempre jogando na minha cara coisas que eu disse e eu digo que não significam nada. Você não pode pensar do mesmo jeito a vida toda.

Burroughs: Somente políticos fazem isso. Pegue um cara como Hitler, ele nunca mudou de idéia.

Bowie: Nova Express realmente me lembrou Ziggy Stardust, que vou transformar em uma performance teatral. Há quarenta cenas e seria legal se os atores decorassem as falas e nós as embaralhássemos em um chapéu na tarde da performance e eles atuassem na ordem em que as cenas fossem tiradas do chapéu. Aprendi isso com você, Bill. Assim seria diferente toda noite.

Burroughs: É uma ideia muito boa, cut-up visual em uma sequência diferente.

Bowie: Eu me entedio facilmente e isso poderia renovar a energia. Sou meio old school, acho que quando artistas fazem seu trabalho já não pertence a eles… Eu vejo o que as pessoas fazem dele. Daí por que a produção de Ziggy Stardust para a TV terá que exceder as expectativas do público sobre o que eles pensam que Ziggy era.

Burroughs: Você poderia explicar sua imagem de Ziggy Stardust? Pelo que eu vejo tem a ver com o mundo às vésperas da destruição.

Bowie: O tempo é cinco anos antes do fim do mundo. Tem sido dito que o mundo acabará por causa da escassez de recursos naturais. Ziggy está numa posição em que todos os garotos têm acesso a coisas que pensavam que queriam. As pessoas mais velhas perderam todo o senso de realidade e os garotos foram deixados por conta própria para pilhar qualquer coisa. Ziggy estava numa banda de rock e os garotos não querem mais rock and roll. Não há eletricidade para tocar. O assistente de Ziggy diz a ele para coletar notícias e cantá-las, porque não há notícias. All the young dudes é uma canção sobre estas notícias. Não é um hino à juventude como as pessoas pensaram, é o exato oposto.

Burroughs: De onde veio essa idéia de Ziggy, e dos cinco anos? Claro, a exaustão dos recursos naturais não irá dar no fim do mundo. Isso resultará no colapso da civilização e irá reduzir a população em três quartos.

Bowie: Exatamente. Isto não causa o fim do mundo para Ziggy. O fim vem quando os infinitos chegam. Eles são de fato um buraco negro, mas eu os transformei em gente porque seria muito difícil explicar um buraco negro no palco.

Burroughs: Sim, um buraco negro no palco teria um custo inacreditável. E seria uma performance contínua, primeiro comendo toda a Shaftesbury Avenue.

Bowie: Ziggy é avisado em um sonho, pelos infinitos, sobre a chegada de um homem espacial, então ele escreve Starman, que é a primeira notícia esperançosa que as pessoas ouvem. Eles vibram com isso. Os homens espaciais de que ele fala são chamados infinitos, e eles são saltadores de buracos negros. Ziggy vem falando sobre esse incrível homem das estrelas que virá para salvar a Terra. Os infinitos chegam em algum lugar em Greenwich Village. Não se preocupam com o mundo e são inúteis para nós. Simplesmente chegaram até nosso universo saltando buracos negros. Na encenação, um deles se parece com Brando, outro é um negro novaiorquino. Tem inclusive um que eu chamei de Queenie, a Raposa Infinita.

Agora Ziggy começa a acreditar em tudo isto e pensa em si mesmo como um profeta do futuro homem das estrelas. Ele se eleva a incríveis alturas espirituais e é mantido vivo por seus discípulos. Quando os infinitos chegam, pegam pedaços de Ziggy para se fazerem reais, porque em seu estado original eles são antimatéria e não podem existir em nosso mundo. E eles o despedaçam no palco durante a canção Rock’n’roll suicide. Tão logo Ziggy morre, os infinitos pegam seus elementos e ficam visíveis. É uma ficcão científica da atualidade e isso foi o que literalmente explodiu minha mente quando li Nova Express, que foi escrito em 1961. Talvez nós sejamos os Rodgers e Hammerstein dos 1970, Bill!

Burroughs: Sim, eu acredito. Os paralelos estão definitivamente lá, e isso soa bem.

Bowie: Tenho que ter a imagem total da encenação. Comigo tem que ser total. Não fico contente somente escrevendo música, quero fazer isso tridimensionalmente. Compor é algo um pouco arcaico agora. Só escrever uma canção não é bom o suficiente.

Burroughs: A performance completa, não como alguém sentado no piano e tocando uma música.

Bowie: Uma canção tem que ter um caráter, forma, corpo e influenciar pessoas em um grau que eles possam usá-la por conta própria. Isto deve afetá-lo não só como uma música, mas como um estilo de vida. As estrelas do rock assimilaram todo tipo de filosofias, estilos, histórias, escritas e jogam fora o que colheram disto.

Burroughs: A revolução virá de ignorar a existência dos demais.

Bowie: Realmente. Agora temos pessoas que estão fazendo isso acontecer em um nível mais rápido que nunca. Pessoas em grupos como Alice Cooper, The New York Dolls e Iggy Pop, que estão negando total e irrevogavelmente a existência das pessoas que estão nos Stones e nos Beatles. O salto geracional diminuiu de 20 anos para 10.

Burroughs: O crescente grau de mudança. A mídia é realmente responsável por muito disto, o que produz um efeito incalculável.

Bowie: Quando eu tinha 13 ou 14, para mim era entre os 14 e os 40 que você era velho. Basicamente. Mas agora é entre os 18 e os 26 –podem haver incríveis discrepâncias, o que é bastante alarmante. Não estamos tentando manter as pessoas juntas, mas adivinhar quanto tempo temos. Poderia ser positivamente entediante se as mentes estivessem em sintonia. Estou mais interessado se o planeta irá sobreviver.

Burroughs: Na verdade é o contrário que está acontecendo; as pessoas estão mais e mais afastadas.

Bowie: A idéia de conectar as mentes, para mim, ficou no período flower power. Isto de juntar as pessoas me parece obsceno como princípio. Não é humano. Não é natural como alguns querem que nós acreditemos.

Copetas: E o amor?

Burroughs: Ugh.

Bowie: Não sou muito da palavra “amor”.

Burroughs: Nem eu.

Bowie: Me disseram que era bacana se apaixonar, mas não foi nada disso que eu senti. Dei muito do meu tempo e energia para outra pessoa e eles fizeram o mesmo comigo e nós começamos a  destruir um ao outro. E isto é o que chamam amor… Decidir colocar nossos valores sobre outra pessoa. É como dois pedestais, cada um querendo estar no pedestal do outro.

Burroughs: Não acho que “amor” seja uma palavra útil. É predicado que há uma coisa chamada sexo e uma coisa chamada amor e que elas devem estar separadas. Como as primitivas expressões no velho Sul, quando a mulher está num pedestal e o marido reverencia sua mulher e então vai e trepa com uma prostituta. É um conceito ocidental e então se estende a toda aquela coisa do flower power de amar todo mundo. Bem, você não pode fazer isto porque os interesses não são os mesmos.

Bowie: A palavra está errada, tenho certeza. É a maneira como se entende o amor. O amor que você vê, entre as pessoas que dizem “estamos apaixonados”, é legal olhar… Mas querer não estar só, querer ter uma pessoa do lado, não é, normalmente, o amor que conduz as vidas destas pessoas. É uma outra palavra, não sei qual. Amor é todo tipo de relacionamento que você acha que… Tenho certeza que isso significa relacionamento, todo tipo de relacionamento que você possa pensar.

(Ziggy de frente. Foto: Masayoshi Sukita)

Copetas: E a sexualidade, para onde está indo?

Bowie: Essa é uma extraordinária questão, porque não vejo que esteja indo para lugar algum. Minha opinião é essa. Não está surgindo tipo a nova campanha publicitária para a próxima estação. Está lá apenas. Qualquer coisa que você pensar sobre sexualidade está apenas lá. Talvez existam diferentes tipos de sexualidade, talvez eles sejam trazidos à tona. Como na época em que era impossível ser homossexual, e agora é aceito. A sexualidade nunca mudará, porque as pessoas vêm trepando de seu próprio jeito desde o princípio dos tempos e irão continuar fazendo isto. Só que mais alguns destes jeitos virão à luz. Inclusive em lugares puritanos.

Burroughs: Há algumas indicações de que isto poderia ocorrer no futuro, uma reação real.

Bowie: Oh, sim, olhe para este negócio do rock. O pobre velho Clive Davis (produtor musical). Ele foi flagrado escondendo dinheiro e também drogas e isto fez começar uma inteira campanha de limpeza nas gravadoras; eles começaram a se livrar de alguns de seus artistas.

Sou tratado bastante assexuadamente por um monte de gente. E as pessoas que me entendem melhor são as que estão mais próximas do que eu entendo sobre mim. O que não é muito, ainda estou buscando. Não sei, as pessoas que chegam de alguma forma perto de onde acho que estou, me consideram mais como algo erógeno. Mas as pessoas que não sabem muito sobre mim me consideram mais sexualmente.

Mas, de novo, talvez haja desinteresse pelo sexo após uma certa idade, porque as pessoas que de fato chegam perto de mim geralmente são mais velhas. E as pessoas que me consideram mais como uma coisa sexual são geralmente mais jovens. As pessoas mais jovens sentem as letras de forma diferente, muito mais de um jeito tátil, que é o jeito que prefiro, porque é o jeito que eu sinto sobre escrever, especialmente o de William. Não posso dizer que analiso isto tudo e que é exatamente do jeito que você diz, mas de alguma forma eu sinto o que você quer dizer. Está tudo lá, uma casa inteira de maravilhas, estranhas formas e cores, sabores, sentimentos.

Devo confessar que até agora eu não tinha sido um leitor ávido de William. Para ser honesto, não ultrapassei Kerouac. Mas quando comecei a ver seu trabalho não podia acreditar. Especialmente após ler Nova Express, realmente me senti próximo. Meu ego obviamente me colocou no capítulo Pay Colour e então comecei a degustar cada linha do resto do livro.

(Ziggy de costas. Foto: Mick Rock)

Burroughs: Suas letras são bastante perspicazes.

Bowie: Elas são meio classe média, mas ok, porque eu sou classe média.

Burroughs: É bastante surpreendente como letras tão complicadas podem alcançar audiências massivas. O conteúdo da maioria das letras pop é praticamente zero, como Power to the people (de John Lennon).

Bowie: Tenho quase certeza que o público que consegui ouve as letras.

Burroughs: É o que estou interessado em saber… As pessoas as compreendem?

Bowie: Bem, isto é mais efeito da mídia. Só depois eles se sentam e se preocupam em prestar atenção. Quando chegam no ponto de lê-las, eles as entendem, sim, porque me mandam cartas sobre o que acham que estou falando, o que é ótimo porque algumas vezes eu não sei. Houve vezes em que escrevi coisas e que, numa carta, algum garoto fala sobre o que ele pensa sobre isto e a sua análise me toca tanto que eu assumo a impressão dele. Escrever o que meu público está me dizendo que escreva.

Lou Reed é o mais importante compositor do rock moderno. Não somente pelas coisas que produz, mas o rumo que está dando a isto. Metade das novas bandas não existiriam se não houvesse Lou. O movimento que Lou criou é incrível. New York City é Lou Reed. Lou escreve em um nível visceral das ruas e os ingleses tendem a intelectualizar mais.

Burroughs: Qual sua inspiração para escrever, literatura?

Bowie: Não.

Burroughs: Bem, eu li este seu Eight Line Poem e me lembra T.S. Eliot.

Bowie: Nunca o li.

Burroughs: (risadas) Lembra muito The Waste Land. Você tira idéias de seus sonhos?

Bowie: Frequentemente.

Burroughs: Eu tiro 70 por cento das minhas de meus sonhos.

Bowie: Tem uma coisa. Se você, ao dormir, mantiver os cotovelos elevados nunca irá ultrapassar o estágio do sonho. Fiz isto muito e me mantém sonhando muito mais tempo do que se eu só relaxasse.

Burroughs: Eu sonho muito e, como tenho um sono leve, acordo e anoto só algumas palavras. Elas me trarão a idéia toda de volta para mim.

Bowie: Tenho um gravador do lado da cama e, se alguma coisa vem, eu simplesmente gravo. Em termos de inspiração, não mudei muito minha visão desde que tinha 12 anos, eu tenho uma mentalidade de 12 anos de idade. Quando eu estava na escola tinha um irmão que estava lendo Kerouac e ele me deu On the Road para ler aos 12 anos. E continua sendo uma grande influência.

(Jack Kerouac. Foto: Jerry Yulsman)

Copetas: As imagens que transpiram são muito gráficas, quase como quadrinhos.

Bowie: Bem, sim, eu acho mais fácil escrever nestas pequenas vinhetas; se eu tentar complicar as coisas, fico fora do meu alcance. Não poderia me conter no que digo. Além disso, se você é de fato mais difícil não haverá tempo suficiente para ler muito ou ouvir muito. Não faz muito sentido em ficar pesado… Há muitas coisas para ler e ver. Se as pessoas lêem três horas do que você fez, irão analisar isto por sete horas e sair com sete horas do seu própio pensamento… Ao passo que se você der a eles 30 segundos de seu próprio material eles normalmente ainda sairão com sete horas de seu próprio pensamento. Eles captam uma síntese do que você faz. E então pontificam sobre esta síntese. O senso de imediatismo da imagem: as coisas têm que captar o momento. Esta é uma das razões pelas quais estou nessa de vídeo; as imagens tem que ser divulgadas imediatamente. Adoro vídeo e toda a coisa de edição.

Quais são seus projetos agora?

Burroughs: No momento estou tentando montar um instituto de estudos avançados em algum lugar na Escócia. O objetivo é ampliar a percepção e alterar a consciência no sentido de uma maior variedade, flexibilidade e eficácia, no momento em que as disciplinas tradicionais não conseguiram chegar a soluções viáveis. Você sabe, o advento da era espacial e a possibilidade de explorar galáxias e contactar formas de vida alienígena trazem uma necessidade urgente por soluções radicalmente novas. Vamos considerar apenas métodos não-químicos, com a ênfase colocada na combinação, síntese, interação e alternância de métodos utilizados agora no Oriente e no Ocidente, junto com métodos que não estão ainda sendo utilizados para estender a consciência ou aumentar o potencial humano.

Nós sabemos exatamente o que pretendemos fazer e como fazer. Como eu disse, nenhuma experiência com drogas está planejada e nenhuma substância além de álcool, tabaco e remédios pessoais será permitido no centro. Basicamente os experimentos que propomos são baratos e fáceis de concretizar. Coisas como meditação no estilo yoga e exercícios, comunicação, som, luz e experiências cinematográficas, experiências com câmaras de privação sensorial, pirâmides, geradores psicotrônicos e acumuladores orgônicos de Reich, experimentos com infrassom, com sonho e com sono.

Bowie: Parece fascinante. Você está interessado basicamente em forças energéticas?

Burroughs: Expansão da consciência, algumas vezes levando a mutações. Você leu Jornada Para Fora do Corpo (de Robert Monroe)? Não é o livro comum sobre projeção astral. Este homem de negócios americano descobriu que estava tendo estas experiências de sair do corpo –sem nunca usar nenhuma droga alucinógena. Agora ele está fazendo uma força aérea astral. Esta coisa psíquica está realmente na onda nos States agora. Você viu algo do gênero quando esteve lá?

Bowie: Não, eu realmente me escondi disto propositalmente. Estive estudando budismo tibetano quando jovem, mais uma vez influenciado por Kerouac. O instituto tibetano de budismo era acessível, então fui lá para dar uma olhada. Havia um cara no porão que era o cérebro por trás da criação de um lugar na Escócia para refugiados e eu me envolvi num nível puramente sociológico –porque queria levar os refugiados para fora da Índia, porque estavam tendo uma vida realmente de merda por lá, caindo como moscas devido à mudança de clima do Himalaia.

A Escócia parecia um lugar legal para levá-los e então fui mais e mais atraído por seu modo de pensar, ou não-pensar, e por um momento fiquei bastante envolvido nisso. Fui até o ponto em que quis me tornar um monge noviço, e duas semanas antes de dar este passo, saí para a rua, fiquei bêbado e nunca mais voltei.

Burroughs: Como Kerouac.

(Bill Burroughs & Jack Kerouac)

Bowie: Você vai muito aos States?

Burroughs: Não desde 1971.

Bowie: Mudou, posso te dizer, desde então.

Burroughs: Quando você esteve lá?

Bowie: Um ano atrás, mais ou menos.

Burroughs: Você viu algum dos filmes pornôs em Nova York?

Bowie: Sim, alguns.

Burroughs: Da última vez que estive lá, vi uns trinta. Fui ser jurado de um festival de cinema erótico.

Bowie: Os melhores são os alemães; são realmente incríveis.

Burroughs: Acho que os americanos continuam sendo os melhores. Eu realmente gosto de cinema… Soube que você vai fazer o papel de Valentine Michael Smith na versão cinematográfica de Um Estranho Numa Terra Estranha (de Robert A. Heinlein; o filme nunca aconteceu).

Bowie: Não, não gosto muito do livro. Na verdade, acho horrível. Me sugeriram o papel e eu fui ler o livro. Me pareceu muito flower power e isso me deixou um pouco ressabiado.

Burroughs: Também não fiquei satisfeito com o livro. Você sabe, ficção científica não tem sido algo muito bem-sucedido. Se supunha que começaria toda uma nova onda e nada aconteceu. Para efeitos especiais no cinema, como em 2001, foi incrível. Mas acabou aí.

Bowie: Sinto o mesmo. Agora estou fazendo 1984 de Orwell na televisão (Bowie compôs a canção 1984 para um musical nunca concretizado); é uma tese política e uma impressão sobre a vida em outro país. Algo do gênero terá mais impacto na televisão. As pessoas terem que ir ao cinema é realmente arcaico. Prefiro asssistir em casa.

Burroughs: Você quer dizer todo o conceito de audiência?

Bowie: Sim, isso é antiquado. Nada a ver com o momento que vivemos. Nenhum senso de imediatismo.

Burroughs: Exatamente, isto remete à imagem e a maneira que é utilizada.

Bowie: Isso. Eu gostaria de fundar uma emissora de TV.

Burroughs: Dificilmente você acha alguma coisa que valha a pena. A TV britânica é um pouco melhor que a americana. A melhor coisa que os britânicos fazem é história natural. Tinha um na semana passada com leões marinhos comendo pinguins, incrível. Não há razão para programas tolos, as pessoas ficam entediadas com reformas de casas e greves de carvoeiros.

Bowie: Todos possuem um nível de interesse ao redor de três segundos. Tempo suficiente para captar a próxima frase do comentarista. Esta é a premissa em que funciona. Eu vou colocar todas as bandas que acho que tem valor nos States e na Inglaterra, e então fazer um programa de uma hora sobre elas. Provavelmente a maioria das pessoas nunca ouviu falar de nenhuma. Eles estão fazendo e dizendo coisas que outras bandas não estão, como a música porto-riquenha e o Cheetah Club de Nova York. Quero que as pessoas ouçam músicos como Joe Cuba. Ele fez coisas incríveis para multidões em Porto Rico. A música é fantástica e importante. Também quero começar a colocar os filmes de Andy Warhol na TV.

(Andy Warhol dirigindo…)

(…e Bowie interpretando Warhol no filme Basquiat)

Burroughs: Você já encontrou Warhol?

Bowie: Sim, cerca de dois anos atrás fui convidado para ir a The Factory. Entramos no elevador e quando ele se abriu havia uma parede à nossa frente. Nós batemos na parede e eles não acreditavam em quem éramos. Então descemos de novo e voltamos a subir até que afinal eles abriram a parede e todo mundo ficou se olhando detidamente. Isto foi um pouco depois do incidente com a arma. Encontrei com o homem que estava entre a vida e a morte. Amarelo em compleição, uma peruca sobre aquela cor errada, pequenos óculos. Estendi minha mão e o cara retirou, então eu pensei: “O cara não gosta de carne, obviamente é um reptiliano” (mito da ficção científica). Ele pegou a câmera e tirou uma foto minha. Tentei entabular uma conversa com ele, mas não chegamos a lugar algum.

Mas aí ele viu meus sapatos. Eu estava usando um par de sapatos amarelos e dourados, e ele disse: “eu adoro esses sapatos, me diga onde você os conseguiu”. Então começou uma rápida conversa sobre design de sapatos e isto quebrou o gelo. Meus sapatos amarelos quebraram o gelo com Andy Warhol.

Adoro o que ele está fazendo. Acho que a importância dele é enorme, está se tornando algo fabuloso a apreciação dele atualmente. Mas Warhol queria ser conhecido, queria estar disponível em Woolworth’s (rede de lojas), e ser falado de uma maneira mais descomplicada. Soube que ele quer fazer filmes de verdade agora, o que é muito triste porque os filmes que ele estava fazendo eram o que devia estar acontecendo. Saí de lá sabendo tão pouco dele como pessoa quanto sabia ao entrar.

Burroughs: Não acho que exista alguma pessoa ali. É algo muito alienígena, completa e totalmente sem emoções. Ele é de fato um personagem de ficção científica. Tem uma cor verde estranha.

Bowie: Foi o que me espantou. Ele é da cor errada, este homem tem a cor errada para um ser humano. Especialmente sob a fria luz neon em The Factory. Deve ser uma experiência única encontrá-lo à luz do dia.

Burroughs: Eu o vi com toda luz e ainda não tenho nenhuma idéia do que acontece, exceto que é algo bastante proposital. Não possui energia, mas é bastante insidioso, completamente assexual. Seus filmes passarão com frequência na TV no futuro.

Bowie: Exatamente. Lembra-se de Pork (peça de Warhol)? Quero passá-la na TV. A TV devorou tudo, e os filmes de Warhol são o que sobrou, o que é fabuloso. Pork poderia se tornar o próximo I Love Lucy, a grande comédia doméstica americana. É sobre como as pessoas realmente vivem, não como Lucy, que nunca tocou água suja. É sobre pessoas vivendo e fazendo trapaças para sobreviver.

É disso que fala Pork. Um espetáculo impressionante. Também gostaria de fazer minha própria versão de Simbad o Marujo. Acho que é um clássico. Mas teria que ser feito num nível extraordinário. Seria incrivelmente permissivo e caro. Teria que utlizar lasers e tudo que tem de existir numa fantasia verdadeira.

Inclusive hologramas. Hologramas são importantes. Videotape é a próxima onda, e então virão os hologramas. Os hologramas serão usados em cerca de sete anos. Bibliotecas de video-cassetes serão desenvolvidas ao máximo neste ínterim. Você não pode gravar bom material suficiente em sua própria TV. Quero ter minha própria escolha de programas. Tem que existir o software necessário à disposição.

Burroughs: Eu gravo em áudio tudo que posso.

Bowie: Os meios de comunicação são ao mesmo tempo nossa salvação ou nossa morte. Gosto de pensar que são nossa salvação. Me interesso em descobrir o que pode ser feito com os meios de comunicação e como eles podem ser usados. Você não pode colocar as pessoas todas juntas como se fossem uma enorme família, as pessoas não querem isso. Eles querem isolamento ou um lance tribal. Um grupo de 18 garotos preferiria ficar juntos e odiar os outros 18 garotos do quarteirão. Não é possível ter dois ou três quarteirões de pessoas se curtindo e se amando uns aos outros. Há gente demais.

Burroughs: Gente demais. Nós estamos em uma situação de superpopulação, mas até mesmo com menos pessoas isto não os faria menos heterogêneos. Eles simplesmente não são iguais. Todo esse papo de uma família mundial é um monte de bobagem. Isto funcionou com os chineses porque eles são muito similares.

Bowie: E agora um homem em quatro na China tem uma bicicleta, e isso é bastante, considerando o que eles não tiveram antes. Pelo que eles conhecem, é um milagre. É como se todos nós, aqui, tivéssemos um avião a jato.

Burroughs: É porque eles são a personificação de um caráter que podem viver juntos sem nenhum atrito. Nós evidentemente não somos.

Bowie: Por isso eles não necessitam rock and roll. Roqueiros britânicos tocaram na China, e foram tratados como algo sem importância. Velhinhas, crianças, adolescentes, passaram por eles e não tinha nenhum significado. Certos países não necessitam de rock and roll porque estão unidos como uma família. A China tem essa figura materno-paterna –nunca tinha me dado conta disso antes–, que flutua entre os dois. Para os ocidentais, Jagger é certamente uma figura materna e ele é uma mãe galinha para esta coisa toda. Ele não é um galo; é mais como uma dona de bordel ou uma cafetina.

Burroughs: Oh, com certeza.

Bowie: Ele é incrivelmente sexy e muito viril. Mas também o acho incrivelmente maternal agarrado a seu seio de blues étnico. Ele é um garoto branco de Dagenham tentando seu melhor para ser étnico. Veja, tentar incrementar o rock um pouco seria chegar perto do que estes garotos são, porque o que eu acho, se você quer falar em termos de rock, é que depende muito de sensacionalismo e os garotos são muito mais sensacionais do que as próprias estrelas. O rock é uma pálida sombra do que a vida dos garotos normalmente é. A admiração vem do outro lado. É o contrário, principalmente nos anos recentes. Ande pela Christopher Street e você saberá exatamente o que deu errado. As pessoas não são como James Taylor; elas podem até parecer, vistas de fora, mas dentro de suas cabeças é algo completamente diferente.

Burroughs: Política do som.

Bowie: Sim. Temos isso hoje em dia. O fato de poder subdividir o rock em diferentes categorias era algo que não era possível dez anos atrás. Mas agora eu posso identificar no mínimo dez tipos de som que representam um tipo de pessoa mais do que um tipo de música. Os críticos gostam de ser críticos e a maioria deles desejaria ser rock-stars. Mas quando eles classificam estão falando de pessoas, não de música. É algo político.

Burroughs: Como o infrassom, o som abaixo do nível de ser ouvido.  Abaixo de 16 MHz. Aumentando o volume a toda capacidade isto poderia derrubar paredes em 30 milhas. Você pode ir até o escritório de registro de patentes na França e comprar a patente por 40 pounds. A máquina pode ser feita de forma barata, com coisas que você poderia encontrar em um ferro-velho.

Bowie: Como black noise (o som do silêncio). Fico pensando: será que existe um som capaz de reagregar as coisas? Tem uma banda experimentando coisas assim; eles acham que poderiam chacoalhar uma platéia inteira.

Burroughs: Existe um ruído para conter multidões baseado nestas ondas sonoras agora. Mas você poderia fazer música com infrassom e não necessariamente teria que matar os espectadores.

Bowie: Apenas mutilá-los.

Burroughs: A arma dos Wild Boys (livro de Burroughs), uma faca Bowie de 18 polegadas, sabia? (Bowie é uma marca de facas)

Bowie: Uma faca Bowie de 18 polegadas… Você não faz nada pela metade, hein? Não, eu não sabia que era esta arma. O nome Bowie apenas me chamou a atenção quando eu era mais jovem. Estava numa onda de filosofia pesada quando tinha 16 anos, e queria um truísmo sobre cortar as mentiras e coisas do tipo.

Burroughs: Bem, ela corta de ambos os lados, sabe, dupla lâmina no final.

Bowie: Não sabia que cortava de ambos os lados até agora.

(O novo clipe de David Bowie)


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Johnny Souza em 10/10/2013 - 15h26 comentou:

Um pérola!

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Marcos em 08/02/2014 - 16h36 comentou:

Obrigado pelo trabalho de traduzir o texto. Única reparação: Lindsay Kemp é homem.

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    morenasol em 08/02/2014 - 21h10 comentou:

    muito obrigada pelo toque. corrigido! ; )

Ulisses Borges em 08/02/2014 - 18h20 comentou:

Muito, muito boa esta postagem, Cynara! Já tinha lido no ano passado, e agora reli com prazer!

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Cláudia em 08/05/2014 - 18h01 comentou:

Thanks, Cynara!

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karla em 12/07/2014 - 03h33 comentou:

A maior delícia que poderia ter lido nos últimos tempos até sempre. Obrigada pela tradução. Indescritível. Obrigada pelo acesso a esta entrevista tão especial entre dois caras imprescindíveis na arte e no mundo.

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