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Feminismo, Politik

Feminismo e… faquirismo

Um dos livros que mais me surpreenderam e divertiram este ano: Cravo na Carne – Fama e Fome. É um recorrido pela história de 11 mulheres que se aventuraram a trabalhar como faquires, jejuando e convivendo com serpentes, fechadas em urnas de vidro, nas principais capitais do País, principalmente em São Paulo, entre os anos […]

Cynara Menezes
07 de novembro de 2015, 10h33
faquiresa

(A faquiresa Suzy King)

Um dos livros que mais me surpreenderam e divertiram este ano: Cravo na Carne – Fama e Fome. É um recorrido pela história de 11 mulheres que se aventuraram a trabalhar como faquires, jejuando e convivendo com serpentes, fechadas em urnas de vidro, nas principais capitais do País, principalmente em São Paulo, entre os anos 1920 e os anos 1950. A pesquisa foi feita pelos autores Alberto de Oliveira e Alberto Camarero a partir dos arquivos dos jornais.

Me impressionou particularmente o cruzamento que os repórteres de então faziam entre o desafio de passar fome durante dias e o feminismo. A coragem daquelas mulheres de se arriscar numa atividade que já era dificílima para os homens faz com que eles as comparem às pioneiras que lutaram pela emancipação feminina, não sem um fundo de gozação. “O sexo fraco caminha”, dizia o jornal O Paiz de dezembro de 1922 em relação à primeira faquiresa de que se tem notícia, a francesa radicada no Rio Rose Rogé. A Noite ecoava: “Com a sua primeira jejuadora, o feminismo marcará mais um tento aos seus ideais de liberdade”.

Engraçado é que, cada vez que aparecia uma nova mulher a se dedicar ao trabalho de passar fome para ganhar o que comer, voltava a ser anunciada pela imprensa como “a primeira faquiresa de todos os tempos”… Com ênfase na “conquista” para o sexo feminino que a empreitada traria – se fosse bem sucedida, claro, o que raramente acontecia. Naquele tempo, as provas de jejum eram um misto de espetáculo e “ciência”. Só que os faquires, como o célebre gaúcho Silki (1922-1998), estabeleciam uns prazos malucos para ficar sem se alimentar, bebendo apenas água: no fim da carreira, ele chegou a prometer 120 dias em jejum! Até por isso pouca gente os levava a sério, o que faz da história deles uma tragicomédia constante e os “recordes” batidos, questionáveis.

As histórias pessoais das faquiresas são sempre mirabolantes, cheias de paixões, tragédias e desilusões, reais ou criadas pelos cronistas da época. Para completar a mística, elas sempre são lindas, pálidas, e obviamente magérrimas. Quando eram libertadas das urnas, após mais de 30 dias sem comer, saíam desfalecidas, carregadas nos braços de algum fortão do pedaço. João Lua chegou a comparar a faquiresa Zaida com “a mulher ideal” em abril de 1951 no Jornal de Notícias. Melhor que Amélia, a do samba, porque além de tudo comia pouco.

“Recordo-me de que há muitos anos, nos Estados Unidos, um cidadão requereu divórcio alegando que a esposa comia demais. Logo pela manhã, para quebrar o jejum, absorvia uma dúzia de ovos e dois litros de leite. O marido, para manter uma esposa assim, precisava trabalhar em dobro”, escreveu o repórter. “Pois a mulher ideal acaba de aparecer em São Paulo – é a jejuadora que ali está no largo do Paissandu. Há setecentas e quarenta e quatro horas que não ingere coisa alguma, nem um pastel de brisa.”

A pilhéria da imprensa em torno dos faquires e faquiresas era de fato hilariante, mas tinha um efeito perverso sobre as mulheres que se lançavam à aventura: homens ficavam rodeando a urna de vidro, faziam gestos obscenos ou simplesmente comiam acepipes para perturbar a paz da moça. Sim, porque ao mesmo tempo em que eram alvo de troça, muitas faquiresas levavam o trabalho com profunda seriedade. Se consideravam “iogues”. Teriam que permanecer em estado de hibernação para suportar a fome. Mas o público não respeitava.

Em 1955, precisou outra mulher, a jornalista comunista Eneida (1904-1971), sair em defesa da faquiresa Rossana. “Mais respeito é o que todas nós, mulheres desta cidade e quiçá deste país, devemos exigir ao público masculino para a moça que está se exibindo como faquir no Cineac Trianon e que ontem, segundo conta um matutino, necessitando atender certa necessidade fisiológica, pediu aos cavalheiros presentes que deixassem a sala por alguns minutos e eles apenas riram, brincaram e ficaram”, critica Eneida. “Por que a mulher neste país continua até hoje tropeçando com toda a sorte de obstáculos mesmo quando está disposta a exercer uma profissão honesta, se bem que muito difícil, como a de faquir?” E pensar que escreveu isto 60 anos atrás…

Saborosíssimo.

(Visite também o blog dos autores com mais curiosidades sobre as faquiresas.)

cravo

LIVRO: Cravo na Carne – O Faquirismo Feminino no Brasil
AUTORES: Alberto de Oliveira e Alberto Camarero
EDITORA: Veneta (296 págs., R$49,90)

 

 


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