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Frente Ampla do Chile: a esquerda latino-americana vive e se renova

Nosso correspondente conta sobre o novo bloco de esquerda que se tornou na eleição de domingo a terceira força política do país

Giorgio Jackson, Beatriz Sánchez e Gabriel Boric da Frente Ampla chilena. Foto: divulgação
Victor Farinelli
23 de novembro de 2017, 19h23

As vitórias seguidas da direita na América Latina, e nem sempre pela via eleitoral –o que não é um impedimento nem para os partidos de direita e nem para o mercado– fizeram do campo progressista meio que um mar de lágrimas e de denuncismo sem propostas.

No Brasil, na Argentina, no México e em muitos outros lugares a esquerda reclama muito e nem sempre produz novidades para mudar um panorama político que agora lhe é desfavorável. Ou então oferece velhas soluções, que podem até ser boas, mas que esbarram no fato de que o público espera algo novo para poder se encantar de novo.

Reencantamento é o que está acontecendo no Chile, e quem vem conseguindo este efeito é a recém-nascida Frente Ampla. No domingo, 19 de novembro, em seu primeiro encontro nacional com as urnas, a Frente conseguiu um resultado surpreendente: elegeu 20 deputados, 1 senador e colocou sua presidenciável, a jornalista Beatriz Sánchez, num inesperado terceiro lugar, com 20,27% dos votos, a 2,5% de chegar no segundo turno já em sua estreia, o que seria uma façanha histórica.

O berço da Frente é Valparaíso, sede do Poder Legislativo, maior porto e terceira maior população do país, além de ser a cidade natal tanto de Salvador Allende quanto de Augusto Pinochet

“Ah, mas não elegeu presidente”, dirão alguns críticos. Talvez seja justamente por isso que ela é uma esperança real para uma esquerda que precisa reaprender a ter paciência e perseverança, e a entender os processos e seus tempos, sem abrir mão dos princípios em nome da realpolitik.

A Frente Ampla chilena surgiu meio por acaso, fruto de uma aventura eleitoral impulsada por pequenas forças políticas do país. Curiosamente, seu berço é a cidade de Valparaíso, que tem a sede do Poder Legislativo, o maior porto e a terceira maior população do país, além de ser a cidade natal tanto de Salvador Allende quanto de Augusto Pinochet.

Eram cinco pequenas agrupações políticas, unindo algumas tradicionais (como o Partido Humanista, o Partido Ecologista Verde e o Partido Igualdade) com outras novas, surgidas a partir de movimentos mais ligados ao movimento estudantil, o Movimento Autonomista e a Revolução Democrática.

Em meados do ano passado, nas prévias das eleições municipais, o Servel (principal autoridade eleitoral do Chile) não permitiu a esses pequenos partidos oficializar uma primária oficial em Valparaíso, pois nenhum deles possuía o número mínimo de militantes registrados. Mesmo assim, eles resolveram promover em julho uma primária informal, um mês depois das oficiais que o Servel organizou para os grandes partidos.

Naquele momento ainda não se chamava como agora. Era somente a Primária Cidadã, quase sem apoio da mídia, mas com forte trabalho de formiguinha das organizações sociais e especialmente dos artistas de rua da cidade, que faziam apresentações teatrais, circenses e musicais nas ruas, nas comunidades, nos morros, nas praças desde as principais do centro da cidade até as mais pequenas dos bairros– para divulgar os comícios e debates dos candidatos. Até o clima foi um obstáculo, porque o dia da primária foi de chuva forte. A votação teve 70% menos de adesão que as primárias oficiais, e terminou com a vitória do autonomista Jorge Sharp, um ex-dirigente estudantil de 31 anos. No minuto seguinte, os demais partidos se comprometeram a apoiar incondicionalmente o vencedor. Era o embrião da Frente Ampla.

No mesmo mês que São Paulo elegeu João Doria Jr. e o Rio elegeu Marcelo Crivella, aquele grupo de formiguinhas obteve inacreditáveis 53,8% dos votos

De julho até outubro, quando finalmente se realizou a eleição municipal real, Sharp foi tratado pela imprensa do país como um candidato menor, quase inexpressivo. Seus concorrentes eram o xará e então prefeito Jorge Castro, que buscava o terceiro mandato consecutivo e representava a direita pinochetista, e o rapper Leo Méndez, candidato da Nova Maioria, a centro-esquerda da presidenta Michelle Bachelet e músico famoso em todo o país. Uma disputa contra o prefeito em exercício e um artista de renome fazia tarefa de Sharp e seus aliados politicamente nanicos parecer quase impossível.

A solução encontrada por eles foi fazer o mesmo trabalho de formiguinha da Primária Cidadã. Ir aos bairros, aos morros, às ruas, muitas vezes apoiados por artistas de rua, fazendo política sem mídia, numa espécie de corpo a corpo disseminado pelas comunidades, com muito trabalho voluntário em favor da chamada “batalha cultural”. Com isso, foram dando forma à zebra.

No mesmo mês que São Paulo elegeu João Doria Jr. e o Rio elegeu Marcelo Crivella, aquele grupo de formiguinhas obteve inacreditáveis 53,8% dos votos, enquanto os figurões empataram em 22%. Jorge Sharp estava eleito.

Com aquela vitória impressionante, aquele conjunto de pequenas forças políticas entendeu que deveria se unir da mesma forma também a nível nacional. E também outras pequenas forças políticas quiseram se unir a eles –incluindo o Partido Liberal, mostrando que a coalizão não é a esquerda radical que alguns temem, e que fora do Brasil os liberais são liberais de verdade e não macartistas e retrógrados como o MBL.

Dessa forma, o grupo passou a constituir uma aliança muito mais ampla e mais nacional, e por isso precisava de um nome que representasse esse sentido. Em janeiro de 2017, finalmente adotaram a marca Frente Ampla. Ao ser fundada num ano de eleição presidencial e parlamentar, a Frente tinha bem clara qual era seu primeiro grande desafio como coalizão: mostrar que são relevantes.

Pequenas forças políticas quiseram se unir a eles –incluindo o Partido Liberal, mostrando que fora do Brasil os liberais são liberais de verdade e não macartistas e retrógrados como o MBL

Porém, suas figuras políticas mais relevantes não podiam liderar o processo. A Frente Ampla já nasceu com três deputados, todos eleitos em 2013 com menos de 30 anos de idade. Vlado Mirosevic, do Partido Liberal, hoje tem 30 anos. Giorgio Jackson, do partido Revolução Democrática, também tem 30. Gabriel Boric, do Movimento Autonomista, hoje tem 31. Os dois últimos ainda eram universitários em 2011, quando estavam entre as lideranças do movimento estudantil que tomou as ruas em nome da gratuidade na educação, colocando em xeque o governo de direita do empresário Sebastián Piñera.

Mas agora, nenhum deles possuía os 35 anos de idade mínima para uma candidatura presidencial. Sem contar que a Frente precisava de mais de um candidato, porque, como no ano anterior, a ideia era fazer uma primária, mesmo que informal, para escolher o candidato. Então, Boric e Jackson convidaram a jornalista Beatriz Sánchez para participar como pré-candidata. Outro grupo convidou o sociólogo Alberto Mayol.

O problema para realizar as primárias formais era o mesmo do ano anterior: a coalizão não possuía um partido com o número mínimo de 33 mil militantes inscritos. Para isso, o trabalho de formiguinha voltou às ruas em janeiro, assim que a coalizão adotou o nome, só que agora a nível nacional.

Em abril, na última semana antes do prazo final, o partido Revolução Democrática conseguiu autenticar todas as assinaturas necessárias, se transformando no maior partido da Frente e fazendo com que suas primárias fossem oficiais.

Era a primeira vitória da coalizão, e aconteceu simultaneamente ao racha da Nova Maioria de Bachelet, que fez o partido Democracia Cristã (o centrão da aliança) anunciar a candidatura da senadora Carolina Goic em separado da do Partido Socialista, que lançou o também ex-jornalista Alejandro Guillier. Assim, a centro-esquerda ficou sem primária oficial, com candidatos proclamados previamente e dispostos a roubar votos um do outro diretamente no primeiro turno. As únicas coalizões que realizaram primárias em junho foram a direitista Chile Vamos, que elegeu o favoritíssimo ex-presidente e mega empresário Sebastián Piñera e a da Frente Ampla, que escolheu Beatriz Sánchez como sua primeira presidenciável.

Guillier, o candidato de Bachelet, recebe o apoio da líder estudantil Camila Vallejo. Foto: divulgação

Tanto nas primárias como na campanha do primeiro turno, a jornalista apresentou uma plataforma baseada em aprofundar as reformas impulsadas por Bachelet –consideradas moderadas pela Frente–, acabar com a ainda vigente Constituição de Pinochet através de um processo que inclua a primeira Assembleia Constituinte da história do país, apostar mais na produção de lítio para ter uma economia menos dependente do cobre e usá-lo para fortalecer a indústria a exportação de produtos com valor agregado, entre outras propostas.

Também foi muito forte o discurso de Sánchez com respeito a direitos civis. Em entrevistas, ela usou sempre a definição de que a sua era uma “candidatura feminista”, além de reforçar, sempre que possível, o compromisso com a autonomia dos povos originários.

Outra marca importante foi a negação dos vícios da política tradicional, com críticas contundentes sobre a quantidade de reeleições dos deputados e senadores. O que não significa que a Frente busca surfar na onda do ódio à política como fazem alguns grupos jovens e de direita no Brasil. Pelo contrário, o que pregam sobretudo os ex-líderes estudantis da coalizão é um novo modelo político que seja menos baseado na representação e que fomente mais a participação da cidadania nas grandes decisões do país, através de plebiscitos e referendos.

Contudo, a ideia tampouco é acabar com o Congresso ou com o poder Legislativo. A Frente Ampla acredita que levando à votação popular alguns temas de grande comoção nacional os cidadãos se envolvem mais com a política e se sentem mais responsáveis por ela, e não vê isso como um sucateamento do Poder Legislativo. Em 2013, o hoje deputado frenteamplista Giorgio Jackson –ex-líder estudantil de 2011 e fundador do partido Revolução Democrática– encabeçou a campanha que originou essa postura da atual coalizão: Marca AC, que defendia a substituir a atual constituição chilena, nascida na ditadura de Pinochet, através de um processo de assembleia constituinte, num país que nunca havia vivido isso. A campanha teve sucesso parcial, já que a boa adesão não levou a assembleia desejada.

A candidatura de Sánchez também fez seu trabalho de formiguinha, nos bairros, nas ruas, sem tanta comunicação massiva e fazendo o debate político diretamente com a população. Ademais, também marcaram presença nas grandes manifestações realizadas este ano contra o feminicídio e contra o sistema privado de previdência.

Porém, havia sim uma grande dificuldade no caminho: a aliança possui muitos militantes e voluntários nas grandes cidades, como Valparaíso, Concepción e a capital Santiago, mas pouca mobilização nas províncias e localidades rurais.

O instituto de pesquisas CEP, outrora o mais conceituado do país e atualmente administrado por um ex-ministro de Piñera, deu a Beatriz somente 8,5% em sua sondagem prévia às eleições

Embora isso seja uma realidade, o fato foi usado por muitos meios de imprensa e institutos de pesquisa para justificar uma afirmação que no último domingo se descobriu falsa: a de que a candidatura de Sánchez não animava o público e que não passava dos 13%. O instituto de pesquisas CEP, outrora o mais conceituado do país e atualmente administrado por um ex-ministro de Piñera, errou fragorosamente e deu a Beatriz somente 8,5% em sua sondagem prévia às eleições.

No fim da tarde de 19 de novembro, quando começaram a aparecer os primeiros resultados da apuração, ninguém podia acreditar: Beatriz Sánchez aparecia em segundo lugar e não muito distante do primeiro posto do favorito Sebastián Piñera.

O ex-presidente e candidato de direita Sebastiãn Piñera, que vai ao segundo turno. Foto: divulgação

As primeiras urnas abertas eram as de Santiago e Valparaíso, duas cidades onde a Frente arrasou. Em Santiago, Sánchez foi a segunda colocada, com mais de 4% adiante do centro-esquerdista Alejandro Guillier. Em Valparaíso, impulsada pelo sucesso da gestão do prefeito Sharp, ela foi a mais votada, com quase 10% de votos a mais que Piñera e quase 20% na frente de Guillier. Mas, nas províncias, zonas rurais e pequenas cidades, onde não teve trabalho de campanha porque faltavam formiguinhas, a candidatura não teve boa votação. Ela foi caindo aos poucos a cada nova parcial, até se estabelecer no terceiro lugar, com 2,5% atrás de Guillier.

Ainda assim, seus 20,27% foram muito mais do que se esperava para um primeiro ano de coalizão, e também muito mais do que o indicado pelas pesquisas, mesmo as feitas às vésperas da votação. Além de serem decisivos para que o favorito Piñera não tivesse a vitória em primeiro turno que esperava: o empresário esperava mais de 45% dos votos, como diziam as pesquisas, mas ficou com 36,6%

A Frente foi a principal responsável por um aumento da participação feminina no próximo Congresso chileno, que saltou de 12% para 23%

A questão da Frente Ampla como fenômeno eleitoral somente urbano se reproduziu também nas eleições parlamentares. A coalizão reelegeu os três deputados que tinha, e ainda conseguiu 17 representantes novos, quase todos nas regiões de Santiago e Valparaíso –dos 20 no total somente 6 são de outras regiões, sendo que um deles é de Concepción, a segunda maior cidade chilena, outro grande centro urbano. Além de fazer do professor Juan Ignacio Latorre, seu primeiro senador eleito, pela região de Valparaíso, outra vitória na conta do sucesso da gestão Sharp.

Além disso, foi a principal responsável por um aumento da participação feminina no próximo Congresso chileno, que saltou de 12% para 23%. No caso da Frente Ampla, tampouco se alcançou um 50/50 que seria ideal, mas das 21 vagas parlamentares conquistadas 7 foram de mulheres, o menor desequilíbrio entre as quatro principais forças políticas do país.

O resultado transformou a Frente Ampla, que ainda não completou um ano de vida, na terceira força política do país, com um potencial enorme por diante. Seu resultado foi uma vitória porque a missão não era vencer e sim crescer. Algo que a esquerda fazia muito nos Anos 90, ir ocupando espaços aos poucos, com paciência, até que na década seguinte alcançou o poder em vários países, para perder boa parte nestes últimos anos e ficar agora buscando soluções mágicas para voltar ao poder. A Frente Ampla escolheu o caminho de não ir pelas soluções mágicas e de construir o processo de amadurecimento e chegada ao poder passo a passo.

Por isso os próximos passos devem ser precisos, mostrando que a Frente Ampla é diferente da política tradicional que criticam. Por exemplo, os deputado reeleitos Giorgio Jackson e Gabriel Boric assumiram o compromisso de fazer do próximo o seu último mandato, apesar de não haver limite de reeleições aos cargos legislativos. “Creio que oito anos é o suficiente para se cumprir um ciclo. Não quero ser deputado profissional. Quando isso acabar, pretendo me dedicar a outra coisa. Gosto da política e talvez volte a me candidatar a outro cargo no futuro, mas antes vou dar espaço a outros projetos”, explicou Jackson, deputado mais votado do país no último domingo, com 103 mil preferências.

No que diz respeito ao segundo turno entre Sebastián Piñera (direita) e Alejandro Guillier (centro-esquerda), a coalizão decidiu que anunciará uma posição nos próximos dias, depois de uma semana de plebiscito interno. O que não impede que algumas figuras declarem o que o prefeito de Valparaíso, Jorge Sharp, disse na segunda-feira 20, dia seguinte à eleição: “não queremos nem devemos ser governo agora, mesmo que nossos votos possam levar a uma reviravolta (de Guillier sobre Piñera), mas nossa missão neste segundo turno é evitar que a direita volte ao poder no Chile”.

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Sergio em 24/11/2017 - 10h39 comentou:

Que sirva de lição. Por que o pt insistiu em alianças com o PMDB? E ainda se cogita isso? Por que não candidaturas à presidência do PSOL, PC do B, PSTU, Guilherme Boulus… Frente ampla de esquerda. Por que? Para acabar com a essa pmdebista-dependência!

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PAULO em 24/11/2017 - 13h17 comentou:

Uma boa e esperançosa noticia!!!

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iurutaí em 26/11/2017 - 14h51 comentou:

União e trabalho de base, tudo que a nossa esquerda academicista, purista e divisionista considera dispensável.

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