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Direitos Humanos

João Bosco repudia uso de O Bêbado e a Equilibrista em ação autoritária

“Não autorizo o uso dessa canção por quem trai seu desejo fundamental”, disse o compositor sobre a desfaçatez de nomear operação como "Esperança Equilibrista"

Policiais federais tratam professores como marginais na UFMG. Foto: Jornalistas Livres
Katia Guimarães
07 de dezembro de 2017, 20h13

Em 1968, o campus da Universidade de Brasília foi invadido por tropas do Exército que consideravam os universitários subversivos e revolucionários. Todos os fatos envolvendo a invasão do campus da UFMG e a condução coercitiva de reitores, professores e dirigentes pela Polícia Federal, nesta quarta-feira, dia 6 de dezembro de 2017, remetem àquele episódio que marcou o endurecimento da ditadura no país.

A ação arbitrária provocou perplexidade no meio acadêmico e político, mas um detalhe sórdido chamou a atenção: a operação foi batizada de Esperança Equilibrista, em alusão à canção que se tornou um hino da redemocratização e da anistia, O Bêbado e a Equilibrista, composta por João Bosco e Aldir Blanc em homenagem a Charles Chaplin. Invadir uma universidade utilizando a música, imortalizada na voz de Elis Regina em uma época em que a repressão militar caminhava para o fim e muitos exilados sonhavam com a volta ao país com a chegada da Anistia, foi considerado uma desfaçatez da PF.

Em nota divulgada, nesta quinta-feira, 7 de dezembro, o compositor João Bosco demonstrou todo seu rechaço não só com a “coerção desnecessária”, mas com a escolha do nome da operação em alusão ao hino. “A operação da PF me toca de modo mais direto, pois foi batizada de Esperança Equilibrista, em alusão à canção que Aldir Blanc e eu fizemos em honra a todos os que lutaram contra a ditadura brasileira. Essa canção foi e permanece sendo, na memória coletiva do país, um hino à liberdade e à luta pela retomada do processo democrático. Não autorizo, politicamente, o uso dessa canção por quem trai seu desejo fundamental”, reagiu.

Para Bosco, está em curso um ato de ataque à universidade pública brasileira. “Isso, num momento em que a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, estado onde moro, definha por conta de crimes cometidos por gestores públicos, e o ensino superior gratuito sofre ataques de grandes instituições (alinhadas a uma visão mais plutocrata do que democrática). Fica aqui portanto também a minha defesa veemente da universidade pública, espaço fundamental para a promoção de igualdades na sociedade brasileira. É essa a esperança equilibrista que tem que continuar”, ressaltou.

Essa canção foi e permanece sendo, na memória coletiva do país, um hino à liberdade e à luta pela retomada do processo democrático

A presidenta eleita Dilma Rousseff também classificou como “perverso” o batismo da operação pela PF utilizando a canção. “É uma bofetada nos anistiados e um desrespeito à memória dos torturados e dos que tombaram na luta contra a ditadura”, protestou. “Novamente, de maneira injustificada, extrapola-se o limite do bom-senso e monta-se uma operação policial que joga para a plateia, ao envolver mais de 80 policiais para fazer conduções coercitivas. É lamentável que a sombra do Estado de Exceção continue a se projetar sobre as instituições brasileiras”, condenou.

Dilma fez questão de lembrar da operação semelhante que acabou levando ao suicídio o reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier, preso pela PF de forma arbitrária e ilegal em outubro. “Novamente, de maneira injustificada, extrapola-se o limite do bom-senso e monta-se uma operação policial que joga para a plateia, ao envolver mais de 80 policiais para fazer conduções coercitivas. É lamentável que a sombra do Estado de Exceção continue a se projetar sobre as instituições brasileiras.”

Pelo menos 84 policiais federais vestidos com trajes camuflados e fortemente armados realizaram 8 mandados de condução coercitiva e 11 de busca e apreensão na UFMG. O alvo foi justamente a construção do Memorial da Anistia Política do Brasil, financiado pelo Ministério da Justiça e executado pela Universidade. Curiosamente, o ataque ocorreu uma semana antes de ser divulgado o relatório final da Comissão da Verdade na UFMG. O documento, fruto de uma enorme pesquisa, tenta explicitar os abusos autoritários perpetrados durante o período militar.

É lamentável que a sombra do Estado de Exceção continue a se projetar sobre as instituições brasileiras

A alegação para a operação digna dos anos mais sombrios da ditadura foram as suspeitas de desvio de recursos –em nota, a Polícia Federal disse ser de quase 4 milhões de reais, de um total de 19 milhões já gastos. O delegado Lacerda, que conduz o caso, admitiu que a investigação ainda é “incipiente”, conforme matéria Circo na UFMG, do site O Beltrano.

O reitor Jaime Arturo Ramírez, a vice-reitora Sandra Regina Almeida e as ex-vices-reitoras Heloísa Murgel Starling e Rocksane de Carvalho Norton, todos ligados diretamente ao projeto, foram levados coercitivamente a depor. Em relato no Facebook, o jornalista Mario Marona contou que a PF invadiu a casa de Ramirez às 6h da manhã. Como ele estava saindo do banho, pediu alguns minutos para se trocar, e ouviu de um dos policiais:  “Você não tem mais direito à privacidade, não, rapaz!”. Recebido por estudantes e professores após ser liberado, Ramirez afirmou que “a UFMG nunca se curvou e nunca se curvará ao arbítrio. Vamos resistir sempre”.

Assim como aconteceu com o reitor Cancellier e agora com Ramirez, outras universidades públicas também sofreram com a truculência e o abuso de autoridade desde o golpe contra Dilma. Ricardo Fonseca, reitor da Universidade Federal do Paraná, lembrou os casos ocorridos no último ano também na UFPR e na UFRGS.

“Há quase um ano, no dia 9 de dezembro de 2016, a polícia federal irrompeu na UFRGS, em vista de uma suspeita de fraude em um programa de extensão. A polícia federal batizou todo o movimento de Operação PhD. Pouco tempo depois, em 13 de fevereiro de 2017, algo similar aconteceu na nossa universidade: numa operação (batizada de Research), foram envolvidos mais de 180 agentes federais, cumprindo vários mandados de prisão e oito conduções coercitivas”, relatou. Fonseca destacou o estranhamento com o fato de as universidades públicas se tornarem os principais focos de atenção da polícia e órgãos reguladores que promovem o mesmo escarcéu repressivo e midiático.

O silêncio do Supremo Tribunal Federal, que tem como função primordial guardar a Constituição, é ensurdecedor

“As universidades, seus professores, servidores técnicos e pesquisadores teriam se pervertido tanto assim em um ano? Teriam se transformado de repente em ninhos de bandidos? As universidades não são perfeitas, como nenhuma instituição pública ou privada o é, mas seguramente não são esse antro de corrupção, descontrole e ineficiência que as ações policiais sugerem e que a mídia propaga”, afirma. “O momento é de fato grave: enquanto deputados ou senadores filmados em flagrante delito por graves desvios são soltos pelos seus pares, reitores têm sua liberdade cassada. A sociedade deve, com muita premência, pensar que tipo de mundo pretende construir quando instituições como as universidades públicas (responsáveis por cerca de 90% da ciência e tecnologia do Brasil) são demonizadas, expostas, desrespeitadas e quando seus dirigentes são imolados publicamente”, ressalta.

Ex-reitora da UFMG, a deputada Margarida Salomão (PT-MG), condenou a brutalidade do episódio. “Não vamos permitir que se repita”, disse, referindo-se às práticas abusivas do regime militar. Mesma revolta demonstrou o senador Roberto Requião (PMDB-PR), relator do projeto de lei contra o abuso de autoridade, chamado por ele de Lei Cancellier. Para Requião, também há uma provocação com o propósito de “desmoralizar as universidades públicas, fazer o povo crer que são espaços de corrupção, com a intenção de privatizá-las”. “É preciso enquadrar a PF”, ressaltou.

Enquanto deputados ou senadores filmados em flagrante delito por graves desvios são soltos pelos seus pares, reitores têm sua liberdade cassada

Professores e intelectuais da USP e UFMG afirmaram em carta pública que o alvo da operação da PF mais uma vez não foi a corrupção e sim a liberdade democrática. “Está se constituindo uma máquina repressiva insidiosa, visando não só coagir, mas intimidar e calar as vozes divergentes sob o pretexto de combater a corrupção. Seu verdadeiro alvo, porém, não é corrupção, mas o amordaçamento da sociedade, especialmente das instituições que, pela própria natureza de seu fazer, sempre se destacaram por examinar criticamente a vida nacional”.

O modus operandi para atacar universidades têm sido o mesmo. Conta com a truculência policial e a insolência do judiciário, ferindo a garantia do Estado de Direito prevista na Constituição Brasileira, que diz que toda pessoa é considerada inocente até o trânsito em julgado de sua sentença. O Código Penal prevê a condução coercitiva em casos extremos, apenas quando há negativa em depor. O que espanta é a forma como vêm sendo conduzidas essas investigações: todos são tratados de antemão como criminosos. Qual foi a base legal para uma ação com tamanha arbitrariedade?

O silêncio do Supremo Tribunal Federal, que tem como função primordial guardar a Constituição, é ensurdecedor. As togas parecem tapar os olhos e ouvidos dos ministros da Suprema Corte para episódios que têm sido recorrentes, e não só no meio acadêmico.

 

 


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