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Feminismo

Mais de 40 anos após Ângela Diniz, Minas continua campeã em feminicídios

Feminicídio é a causa de 87% dos assassinatos de mulheres na terra da "pantera de Minas", que inspirou a campanha Quem Ama Não Mata em 1980

A socialite mineira Ângela Diniz. Foto: reprodução
Katia Guimarães
12 de dezembro de 2017, 16h52

Mais de 40 anos se passaram desde que a socialite mineira Ângela Diniz, a “Pantera de Minas”, foi assassinada às vésperas do revéillon de 1976 na praia dos Ossos, em Búzios, balneário do Rio de Janeiro, pelo companheiro, Doca Street, com três tiros de pistola Beretta no rosto e um na nuca. Julgado em 1979, Doca foi condenado a apenas dois anos com direito a sursis, ou seja, sem prisão. O advogado do assassino, Evandro Lins e Silva, conseguira provar ao júri que Ângela, aos 32 anos, era uma “Vênus lasciva” que convidava outros e outras para a cama do casal, enquanto o playboy era pintado como “mancebo bonito e trabalhador”. Valeu para Doca a machista tese da “legítima defesa da honra” e ele saiu, por incrível que pareça, aclamado do julgamento.

O crime abalou o país, mas a linda e sexy Ângela foi apenas a mais famosa das muitas mineiras vitimadas pelo machismo. No início dos anos 1980, o Estado de Tancredo Neves e Guimarães Rosa era um lugar perigoso para uma mulher livre como ela viver. Entre 1979 e 1980, dos 45 casos de homicídio noticiados pelos principais jornais do país, as vítimas masculinas foram menos de dez. Em julho de 1980, duas mulheres da sociedade mineira foram assassinadas em um espaço de menos de 15 dias pelos maridos de forma torpe, covarde.

Maria Regina dos Santos Souza Rocha foi morta pelo paisagista Eduardo Souza Rocha porque queria fumar, “usar roupa indecente, inclusive biquíni” e assistir ao programa de TV “devasso” Malu Mulher, com Regina Duarte, sucesso na época. Ele disparou seis tiros nela quando saía da ginástica. A outra vítima, Eloísa Ballesteros, foi assassinada pelo marido, Márcio Stancioli, enquanto dormia, simplesmente por querer o divórcio. Stancioli foi condenado a apenas dois anos porque conseguiu “provar” que Eloísa estaria mais interessada na carreira do que nos filhos. Ambos conseguiram a guarda das crianças.

No início dos anos 1980, o Estado era um lugar perigoso para uma mulher livre viver. Entre 1979 e 1980, dos 45 casos noticiados pelos principais jornais do país, as vítimas masculinas foram menos de dez

As duas mortes comoveram o Estado e o país e, junto com a de Ângela, inspiraram a campanha Quem Ama Não Mata, frase estampada nos muros de Belo Horizonte que desencadeou uma série de atos públicos Brasil afora, marcando o 10 de Outubro como Dia Nacional de Luta contra a Violência à Mulher. O pixo acabou virando título de uma minissérie homônima da TV Globo, com Claudio Marzo e Marília Pera, em 1982. Um ano antes, sob o clamor popular, Doca Street havia sido finalmente condenado em um novo julgamento: 15 anos de prisão, dos quais cumpriu 7. Parecia que a sociedade havia mudado. Será?

Mais de 40 anos depois do assassinato de Ângela Diniz, porém, Minas Gerais continua campeã em crimes contra a mulher: em 2016, nada menos que 458 mulheres foram assassinadas no Estado, sendo que 86,68% dos casos (397 mortes) foram considerados feminicídios. Os números estão no Diagnóstico de Violência Doméstica e Familiar, divulgado pela Secretaria de Segurança Pública de Minas, que revela o número de vítimas de violência doméstica e familiar nos anos de 2015 e de 2016 e no primeiro semestre de 2017.

O estudo da Polícia Civil mostrou ainda que a região de Belo Horizonte é onde houve o maior número de vítimas de violência doméstica contra a mulher, com 12% das vítimas nos dois primeiros anos analisados e 13% no 1° semestre de 2017. Em seguida estão a região de Juiz de Fora e de Contagem. Em 2016, a região de Contagem (na Grande BH) foi a que mais teve esse tipo de assassinato: 41. A maior parte das vítimas tem a pele parda (46%), seguida da cor branca, em 32% dos casos. 70% das mulheres vítimas desse tipo de violência tinham entre 18 e 44 anos de idade.

Fonte: Secretaria de Segurança Pública/MG

Segundo a Secretaria de Segurança, o banco de dados utilizado classifica esse tipo de delito em duas hipóteses: a primeira, quando a vítima morre por causa da violência doméstica, e, na segunda hipótese, por menosprezo ou discriminação à condição de mulher, que é o significado do termo feminicídio (art. 121, §2-A do Código Penal). Sancionada pela presidenta eleita Dilma Rousseff, a lei do Feminicídio tornou o assassinato de mulheres crime hediondo.

O estudo ressalta que, ao qualificar o homicídio contra a mulher, a lei do Feminicídio sugere um tratamento mais severo da Justiça, indicando que a ocorrência de violência doméstica e familiar e menosprezo ou discriminação à condição de mulher já são qualificadoras para o crime. A pena pode ser aumentada em 1/3 até a metade em casos de o crime ser praticado durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto, contra pessoa menor de 14 anos, maiores de 60 anos ou com deficiência e se ocorrer na presença de descendente ou de ascendente da vítima.

A frase do poeta Carlos Drummond de Andrade em uma crônica sobre Ângela Diniz tornou-se uma profecia: “Aquela moça continua sendo assassinada todos os dias e de diferentes maneiras”

Ao dar enfoque à tipificação do crime de gênero, o trabalho da SSP de Minas é elucidativo para as estatísticas. Dois anos depois de a lei entrar em vigor, os dados sobre o feminicídio no Brasil ainda são incipientes e o próprio trabalho da Polícia mineira reconhece a dificuldade em classificar o crime. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2017 demonstrou, por exemplo, que dos 4.657 casos de mulheres assassinadas em 2016 no país (uma a cada 2 horas) apenas 533 casos foram classicados como feminicídios. Número que revela uma subnotificação se olharmos para os dados de Minas ou mesmo quando se compara com os inquéritos do Conselho Nacional do Ministério Público, levantados entre março de 2016 e março de 2017: foram abertos 2.925 inquéritos de feminicídio no Brasil, resultando em 1.474 denúncias; outros 1.262 casos estão sendo investigados.

A frase do poeta Carlos Drummond de Andrade em uma crônica sobre Ângela Diniz tornou-se uma profecia: “Aquela moça continua sendo assassinada todos os dias e de diferentes maneiras”. Só no último mês uma busca rápida no Google soma à lista de mineiras mortas a jovem Kelly Cadamuro, estuprada e assassinada em Frutal por um homem a quem deu carona; Bruna Gomes de Freitas, baleada na cabeça a caminho do trabalho em Santana do Paraíso pelo ex-companheiro; uma mulher assassinada a facadas pelo marido em Belo Horizonte três dias atrás; e Jordânia Rodrigues dos Santos, morta pelo ex-companheiro no sábado passado em Diamantina.

Até quando?

 


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(2) comentários Escrever comentário

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Danielle Soares em 08/01/2018 - 14h15 comentou:

Boa tarde. Excelente artigo. Parabéns!
Sou fascinada com essa epoca e contexto, acho que seria um ótimo documentário.
Feminicidio é um assunto inesgotável.
No caso da Eloisa Ballesteros, o que me intriga, como que a justiça permite que o assassino fique com a guarda das crianças. Como cresceram esses filhos?

Abraços!

Responder

Paula Magalhaes em 07/06/2019 - 21h51 comentou:

ninguem tem o direito de matar ninguem,agora vamos a vdd,ambos eram farinha do mesmo saco,veja o perfil de mmulher que era,e ele de homem,so poderia acabar dessa maneira,pra mim na época não foi surpresa,pq o nome dela vivia nos jornais,foi presa,por portede drogas,entao nao surprendeu atodos,quem quer levar vida bandida tem seu direito,mas…veja bem o que plantas,pq vais colher!!!

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