Socialista Morena
Cultura, Direitos Humanos

Não se “assuma” gay: declare-se gay

Este texto foi originalmente publicado no site da revista Caros Amigos em março deste ano. Seu autor, Daniel Queiroz Galvão, me enviou esta semana e eu quis reproduzi-lo aqui porque achei sua proposta cheia de sentido: por que um homossexual deve dizer que se “assume” se este verbo está impregnado de culpa? Daniel propõe uma […]

Daniel Queiroz Galvão
27 de setembro de 2013, 19h45

Este texto foi originalmente publicado no site da revista Caros Amigos em março deste ano. Seu autor, Daniel Queiroz Galvão, me enviou esta semana e eu quis reproduzi-lo aqui porque achei sua proposta cheia de sentido: por que um homossexual deve dizer que se “assume” se este verbo está impregnado de culpa? Daniel propõe uma mudança. Em vez de se ASSUMIR, DECLARE-SE gay! Eu achei muito bacana.

***

Por Daniel Queiroz Galvão

Desde a pré-adolescência, nunca consegui compreender o motivo pelo qual uma pessoa, em suas palavras, se auto-proclamava melhor que outra pelo simples fato de ser heterossexual. Isso sempre me assombrava e confesso que ainda hoje assusta.

Das maneiras mais diversas, a fala oficial heteronormativa adotada pelos grandes veículos de comunicação incomodava por se tratar de simulacro da realidade. Nas novelas, programas dominicais, dupla de ancoras em telejornais e, principalmente, nos chamados entretenimentos humorísticos, com suas piadas preguiçosas e mantenedoras de padrões dominantes, a presença tipificada do “papai e mamãe perfeitos”, todos constituindo enredos onde não se reconhecia o amor entre iguais, o amor amplo, para além dos limites da anatomia.

Ficava patente nas apresentações padronizadas um tipo de formato onde não havia espaço para a diversidade, para a homoafetividade – linguagem adquirida em meio ao processo de enfrentamento da violência–, e quando havia era de maneira a desqualificar ou tornar ridículo pelo discurso a moça ou rapaz com trejeitos “inadequados”.

Entretanto, neste momento, a crítica não é para programas da televisão privada com inclinação homofóbica, nem para os negociadores da fé alheia que juram “curar gays”, nem mesmo aos reacionários do parlamento brasileiro que negam direitos iguais para todos. Esses sabem bem de que lado estão, no debate dos direitos humanos que negam.

O apontamento tem endereço certo. E é, principalmente, para o valoroso movimento LGBT, que luta para que haja garantias de direitos às Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros. O direito pleno a todo cidadão em sua dissimilitude é o que importa.

Acontece que não são raras as vezes em que militantes desse Movimento, no desejo de fazerem a defesa do amor, em sua múltipla expressão, se valem de um termo que reforça – sem intencionalidade – os contornos de uma sociedade construída em estereótipo monstruoso, pois inumano. Refiro-me especificamente ao famigerado termo ASSUMIR como intensificador de estigma.

O termo ASSUMIR está sempre presente nas falas de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros, que ao se colocarem em um debate, reafirmam sua orientação/gênero com o seguinte argumento: “Eu sou gay assumido”; “assumo minha homossexualidade”. Entretanto, a palavra ASSUMIR segue como uma cruz na construção verbal do ativista, compondo uma afirmação argumentativa que restringe possibilidades ao invés de expandi-las, que é o que se deseja. Além de avocar “confissão penosa”, o que, em outro aspecto, remete a certo heroísmo extemporâneo e igualmente prejudicial à Causa.

Identificar que ASSUMIR é um verbo transitivo direto que está associado a um fardo, dor, crime e responsabilidade excessiva, é compreender que a palavra exerce conotação de algo não bom, anômalo. Daí a necessidade de um outro fazer, uma outra linguagem capaz de criar na delicadeza novas fruição.

As pessoas quando dizem ASSUMIR, assumem  culpas, delitos, atos falhos e vergonhosos. É imprescindível quebrar  o estereótipo, ressignificar o ato de posicionar-se afirmativamente. Avançar na definição de um conceito mais próximo da satisfação e dos desejos. Desconstruir o conceito carregado de dor, romper a lógica da violência e o ranço que a palavra ASSUMIR engendra, é ação estratégica para a maior compreensão de que não há restrições para o ato de amar.

Deste modo, proponho uma imediata substituição do termo ASSUMIR por DECLARAR-SE. O que é bom se DECLARA. As pessoas DECLARAM seus afetos, satisfação musical, poesias, amores e paixões. Não é correto consigo mesmo dizer “eu me assumo” para tratar de minha boa sentimentalidade, de meu sentimento mais belo. É um tipo de negação de si mesmo na palavra, negação do prazer. Minha afetividade, se decidir, eu a DECLARO!

Sabe-se que a língua obriga mais do que possibilita, compõe elemento potente no trato do cercear. Já a linguagem, mesmo com limitações, pode possibilitar de forma articulada em contextos atuais, uma maior aproximação daquilo que se pretende revelar.

Roland Barthes afirmava que a linguagem é como uma pele, pois com ela se entra em contato com os outros.  Para ele a linguagem é uma pele que esfrega-se no outro. É como se tivéssemos palavras ao invés de dedos, ou dedos nas pontas das palavras.

E é nesta perspectiva que ofereço ao exame de tod@s a substituição da palavra ASSUMIR por DECLARAR, não só aos LGBTs que sentem a suja navalha estúpida da homofobia cortando na sua carne, mas a tod@s os defensores dos direitos humanos que se indignam com demonstrações medievais de uma gente que vive na caverna, uma caverna midiática  do preconceito a se preocupar com o modo com que o outro pode gozar.

Mulheres, homens, gays e heteros, humanistas de todo Brasil, façamos uma declaração coletiva ao amor! À luta e à reinvenção!

Ser gay é apenas mais uma declaração de amor. EU ME DECLARO!


(18) comentários Escrever comentário

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Paulo Braz em 27/09/2013 - 19h57 comentou:

Parabéns pelo texto!
EU ME DECLARO!!!

Responder

PC_ em 27/09/2013 - 23h31 comentou:

Eu gostei do texto! Na verdade, na minha opinião, essa coisa de Assumir sempre soou estranho e até mesmo denecessário! Um mundo onde as pessoas precisem dizer que são diferentes para terem um pouco de respeito não é um mundo igualitário e nunca será. Declarar soa mais leve, mas continua a obrigatoriedade de fazer que todos saibam que vc é diferente da maioria na forma de amar e isso certamente restringe a vida do cidadão… Se alguem quer obrigar uma pessoa a "se assumir" ou "declarar" sua forma de amar (a não ser que seja o parceiro) não pode estar pensando no respeito à individualidade que todo cidadão tem.

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Lucas Soares em 28/09/2013 - 13h08 comentou:

Acredito muito no poder das palavras, e que elas atingem as pessoas de forma que elas próprias desconhecem. Ou acreditam. Ou aceitam. Neste texto, podemos perceber que, infelizmente, ainda nos atingimos com armaria pesada. E, como o próprio texto salienta, de forma até inconsciente. Obrigado pelo compartilhamento! Se todos se declarassem, as coisas seriam, no mínimo, diferentes. Pendentes para um lado melhor, claro!

=)

Responder

Fabio Fernandes em 28/09/2013 - 18h01 comentou:

Concordo com a crítica ao verbo "assumir". Mas também não sou favor de "declarar", tanto pelo seu viés jurídico, pois afinal, não estamos falando de subjetividades? Por que um termo tão burocrático?

Mas meu ponto principal nem é esse: será que todxs podem simplesmente "se declarar", ou seja, sair do armário? Devemos mesmo expulsar as pessoas de seus armários como se nossos privilégios fossem os mesmo de todo mundo? Quando gritam em paradas lgbts, "tenha orgulho de ser gay etc.", "saia desse armário" e logo em seguida gritam-se as estatísticas de violência e morte, não está havendo uma grave contradição?

Como é que eu estimulo alguém a correr risco de morte? Por que SIM, para algumas pessoas o armário não é uma opção e devemos também respeitar isso. Primeiro, reconhecendo nossos privilégios e utilizando da alteridade pra perceber com sensibilidade as dificuldades, os percalços e o porquê de alguns armários serem tão necessários pra algumas pessoas? Por que não agirmos em outra frente, atacando os discursos heteronormativos e possibilitando que a existência de armários não seja necessário? Ou então, por que não empoderamos os sujeitos e lhes damos a possibilidade de escolher? Enfim, são apenas algumas reflexões.

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    Giovanna em 29/09/2013 - 12h30 comentou:

    Fabio, achei bem digna sua observação sobre uma nova ótica em permitir que se mantenham no armário aquelas(es) que não se sentem à vontade de declararem-se ao mundo acerca de suas preferências.

    Mas acho que pra tentar esclarecer o que aponta como contradição – em clamar que os sujeitos se posicionem e em contra partida lhes escancarar uma realidade opressora – defendo que o intuito do Movimento em fazer essa abordagem, que é dialética – pede pra afirmar depois nega – é justamente no sentido de que novos militantes sobrevenham dessa massa social. Que mais pessoas possam sair do armário pra si e para a comunidade na qual se inserem, sentirem-se autênticas, livres de carregarem o "segredo" sobre si mesmas.
    E dai que partam a gritar ao mundo que não mais cabe segregar, oprimir e dissociar com base na diversidade. Que nos declaramos lgbtts, nos identificamos, estamos unidas(os), nos posicionamos.

    Maria em 29/09/2013 - 17h14 comentou:

    Sair do armário é exatamente uma das maneiras de atacar o discurso heteronormativo que impera. Mostrando pra sociedade que existem pessoas que não seguem essa lógica e, para desgosto de quem segue, tem olhos, boca, nariz e todo o resto igual a elas.

    Ficar no armário é o mesmo que ser conivente às ofensas. Se você acha que tem que viver escondido, você, de certa forma, está contribuindo pra que as pessoas continuem pensando que ser gay é 'errado'.

Fabio Fernandes em 28/09/2013 - 18h06 comentou:

Outro ponto. A quantas pessoas nunca nem foi dada a possibilidade de "sair do armário", quando seus corpos e subjetividades, por estarem dissonante de uma norma de gênero, já "denunciam" essa diferença? Quantos ouviram, desde criança, um "viadinho", quando muitas vezes nem nunca pensou/refletiu sobre ser isso ou aquilo? A essas pessoas, nem essa opção de escolher algo foi dada. Essa é a violência que devemos combater, a de uma sociedade hetero e cisnormativa que violenta e determina quais corpos devem e quais os que não devem existir. Que tal pensarmos sobre essas políticas de enfrentamento, ao invés de "solicitar", incitar "declarações" ou "saídas de armário"?

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Rafael em 28/09/2013 - 19h46 comentou:

Maravilhoso!!!

Responder

Aroldo em 29/09/2013 - 00h16 comentou:

Penso que este papo de que a mídia só vê a relação homoafetiva pelo lado humorístico é lorota, grande parte dos articulistas são homossexuais , escritores de programas humorísticos e novela, então, deixam os heteros no chinelo..E, cá entre nós, amigos, nunca será uma relação igual – homem e mulher – a não ser que consigam uma passagem para marte e criem uma nova raça por aquelas paragens …que naturalmente tenderá à extinção……….querer que a relação homoafetiva tenha um tratamento igual quanto aos direitos individuais tudo bem…agora, querer que todos a olhem com os mesmos olhos que a relação homem/mulher …tem limites!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Assumam, declarem….mas a liberdade de um termina quando começa a do outro!

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    Kayzer Beast em 02/10/2013 - 21h55 comentou:

    Foi ressaltado no texto que se passar uma novela e você reparar bem, vai ver que o tipinho de personagem é sempre o mesmo se ele for gay, e durante muito tempo personagens gays são usados mais pra mostrar humor o que realmente deixa mais difícil levar a sério, tentar "dizer que aceitamos" é a real mensagem transmitida, pois em mundo aberto, a ideia de ser gay é um absurdo. Compare esse pensamento por exemplo, que vai notar a diferença de "mostrar" um gay e encenar um.

Ruan em 29/09/2013 - 03h40 comentou:

Pensar que o homossexual não deve ser respeitado jamais, afinal de contas é uma pessoa com direitos.
Mesmo respeitando vejo isso como desvio de conduta, pra ser bem direto e resumido.

Responder

    Tatiana em 29/09/2013 - 20h48 comentou:

    Desvio de conduta é a sua homofobia.

Franklin Freitas em 29/09/2013 - 12h39 comentou:

Amei o texto. Muito bom.

Responder

Pês em 29/09/2013 - 17h47 comentou:

O "frame" do verbo, dir-se-ia em linguística, é associado mais a uma situação vexatória mesmo. É uma questão de guerra, de estratégia. Por exemplo, um sujeito assume-se pai de uma criança: um ato de virtude, de alguém virtuoso. Pode-se objetar que assim se estaria reconhecendo que a situação de ser homossexual é vexatória, o que se sabe que o é (só o é) para recalcados e conservadores. E que assim transformaria todo assumido em virtuoso, o que é não é onde se quer chegar. Por outro lado se se deixa de identificar o preconceito existente, o inimigo, ele pode crescer na surdina. É preciso que o preconceito seja vexatório, vergonhoso mesmo.
Uma outro outro uso bastante irritante do verbo é em manchetes de celebridades: fulano assumiu que come bolo de chocolate. O verbo assumir reporta a uma situação conflituosa que termina por ser desmascarada no complemento da oração como uma trivialidade. É um teste de identificação de três imbecis: o que se prestou a dar aquela informação; o que reportou aquilo (o pior de todos) e, aquele que não conseguiu evitar de ler essa besteira (eu). Vou para de ler a UOL para recuperar a dignidade, tudo bem.

Responder

Jerônimo em 01/10/2013 - 12h37 comentou:

Parabéns Daniel Queiroz Galvão, excelente texto.
Este texto deveria ser lido e reproduzido para todas as redes sociais, nós brasileiros precisamos debater mais os assuntos polêmicos sem medo e sem vergonha, para a felicidade de todos.
Abraço.

Responder

Samuel em 15/10/2013 - 18h31 comentou:

Adorei o texto, belíssimo, mostra o quanto temos que avançar ainda para a conquista plena de direitos sociais que garantam de fato a igualdade de gays, lésbicas e transgêneros aos héteros. Parábens pela beleza poética e sobretudo pela coragem em expor a questão.

Abraço.

Responder

Ladislau Neto em 06/02/2014 - 03h12 comentou:

Fico feliz por ter lido este texto.

Ótima idéia.

Responder

Camila em 07/01/2015 - 00h31 comentou:

Fico impressionada como JAMAIS pensaria dessa forma sozinha. Nunca atentei a isso e acredito que a maioria das pessoas com as quais convivo também não. Excelente texto.

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