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“No dia que mataram Vlado minha infância morreu junto”

A jornalista Bia Abramo conta como recebeu, ainda criança, a notícia do assassinato de Vladimir Herzog, amigo de seus pais, 42 anos atrás

O jornalista Vladimir Herzog. Foto: arquivo pessoal
Bia Abramo
26 de outubro de 2017, 13h27

Dia 25 de outubro é dia 25 de outubro, um dia comum para muita gente. Não é para mim, há 42 anos.

No dia 25 de outubro de 1975, Vladimir Herzog foi assassinado nas dependências do DOI-CODI em São Paulo. O Vlado era amigo, muito amigo, do meu pai, Perseu Abramo, da minha mãe, Zilah, das minhas tias Alcione e Lélia. Além de amigo, era jornalista como meu pai: um tanto mais jovem que o Perseu, tinha sido foca dele em algum momento da profissão.

Na ditadura, meus pais sempre mantiveram a casa aberta aos amigos, sobretudo aos mais jovens, para discutir política, fazer reuniões que não tinham lugar em lugares mais públicos, conversar sobre a conjuntura e, sei lá, às vezes só estar junto por que os tempos eram de dor e angústia e fazia bem estar entre amigos. Assim, o Vlado tinha ido lá em casa, num domingo, dias antes de se apresentar ao DOI-CODI. Uma semana, para ser exata.

No domingo seguinte, quando chegaram Yves e Graça, dois jornalistas amigos do meu pai, naquela manhã de sol que deveria ser animada e ocupada, porque teríamos almoço do aniversário da Helena, que tinha feito anos dia 24, achei quase normal –eles sempre iam lá, mas não tão cedo. Quando eles se fecharam no cômodo da casa que chamávamos de escritório e era tudo, menos um escritório, comecei a achar estranho. Quando meu pai e minha mãe saíram com um ar pesado, alarmado e quase vazio de tanta tristeza, aí é que não entendi mais nada.

Só fui entender algumas horas mais tarde, quando minha prima, para a casa de quem eu tinha sido despachada, me contou que alguém tinha morrido. E disse o nome. Daí fiquei atônita. Furiosa. Indignada. De verdade, foi como um abismo se abrisse.

Vlado tinha ido lá em casa, num domingo, dias antes de se apresentar ao DOI-CODI. Uma semana, para ser exata

Um abismo do razoável que só fez alargar nos dias que se seguiram e eu fui entendendo um pouco mais da história que queriam ocultar a todo custo. Morreu, morreu porque foi torturado demais; foi morto e estão dizendo que foi suicídio;  assassinaram e não admitem que mataram; são culpados e é a gente que vai ter de tomar muito cuidado com o que pensa, sente e expressa porque senão morre mais gente.

Eu tinha 12 anos recém-feitos e tive uma crise de incompreensão enorme. Nada, depois disso fazia muito sentido. Tenho certeza que meus pais me pouparam de ouvir as coisas mais duras, mas do luto deles, do luto pelo Vlado, pelo processo de abertura e distensão que se acreditava estar próximo, pela permanência da ditadura que ainda matava (e ainda mataria vários no massacre da Lapa, em 1976, e o Manuel Fiel Filho, em1978), pela repressão que ainda teríamos que engolir: disso eles não me pouparam. Simplesmente, pq não podiam. E, acho isso hoje, não queriam.

Então, há 42 anos, no dia da morte do Vlado, eu penso nesse dia de 1975, porque é também dia da morte da minha infância. Ela iria embora de qualquer jeito, mas talvez fosse de forma menos abrupta. Nessa quadra da história que me coube, foi tirada de mim no encontro com injustiça e com a violência do Estado. Me fez uma adolescente antes do tempo, ainda mais sorumbática do que a encomenda e mais inclinada a leituras obsessivas de toda a espécie para entender alguma coisa. A adolescência passou, claro, mas o sentido trágico ficou comigo. O mundo, aquele, às vezes acho que vale a pena tentar entender; outras vezes, desisto. O que ainda está aqui é o abismo de incompreensão diante do arbítrio, da violência e da injustiça. Esse pode ficar para sempre.

***

P.S. – Texto originalmente escrito para o facebook e aqui só revisado em detalhes que escaparam no post original, que subiu nos primeiros minutos da madrugada do dia 26 de outubro. A memória é uma ferramenta essencial do conhecimento histórico e, como jornalista, sinto que tenho de contribuir sempre. Todo ano, sai uma coisa diferente. Mas, desta vez, logo na primeira hora depois de publicado, surgiu o comentário de um amigo das redes que me fez entender que, neste ano, desencalacrei um texto que já existia há seis anos.

Morreu, morreu porque foi torturado demais; foi morto e estão dizendo que foi suicídio;  assassinaram e não admitem que mataram

Em 2011, trabalhava numa redação muito jovem e muito desinformada de revista feminina impressa. Entre as minhas funções, estava a de supervisionar o site e as redes, que eram tocadas por outra jornalista, mas a mim cabia acompanhar, ajudar a pautar, ler texto de jovens repórteres. No dia 25 de outubro daquele ano, circulou no facebook um panfleto elaborado por um grupo de direita da USP que usava a famosa foto divulgada pelo DOI-CODI para montar a farsa do suicídio, na qual Vlado aparece pendurado pelo pescoço, pendurado por uma corda e com os joelhos dobrados. Na versão da repressão, ele teria se enforcado. A foto é tão canhestra que era evidente que o corpo do Vlado tinha sido levado já sem vida para esse cenário, mas o poder truculento da polícia política era tão grande que foi a versão que prevaleceu. O amigo havia me lembrado exatamente dessa foto, em seu comentário: “Mas a foto dele pendurado daquela forma nos acompanhou para sempre.”

Lembrar da foto infame recuperou a lembrança desse dia em 2011, quando vi esse panfleto e fui, de novo, tomada de uma fúria paralisante. À época, por uma combinação besta de autocensura, dia de fechamento e chefia persecutória, não consegui fazer nada com esse sentimento, a não ser descer ao fumódromo sozinha mais vezes do que deveria. Meus colegas, então, eram jovens demais para lembrar e a história era comprida, ia atrapalhar o fechamento. Não escrevi à época, mas o texto, então, ficou ali em algum lugar esperando.

Ontem, a data ficou atropelada por mais uma derrota da democracia no Congresso, que deu mais um tempo de sobrevida a Michel Temer e à farsa golpista. Os tempos que se anunciam, de perda de direitos fundamentais, histeria militarista correndo solta e desconhecimento do que, de fato, significa um período de repressão institucional acabaram por me lembrar da tarefa de todos os dias 25 de outubro desde 2011. Lembrar, repetir, elaborar, para que não se esqueça e para que nunca mais aconteça. Oxalá.

 

 

 


(2) comentários Escrever comentário

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Carlos Doria em 29/10/2017 - 18h39 comentou:

Parabéns pelo belo texto. Tenho 77 anos e pensei que na minha idade não assistiria mais golpes parlamentares ou não.
Vc fez bem em relembrar aqueles tempos tenebrosos da ditadura. E ainda tem gente que quer a volta da dita cuja.

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Ivany Turíbio - comunicadora em 29/10/2017 - 23h43 comentou:

Caramba, Bia! Seu `PS é um novo post, repleto de histórias, memórias e contextos que repercute, ainda mais, o primeiro – potente e pungente – atualíssimo.

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