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Direitos Humanos

O desaparecido da era Macri: família de Santiago crê que cadáver foi “plantado”

A menos de uma semana das eleições legislativas, Argentina vive enredo de ficção com requintes macabros, digno de sua longa tradição literária

Passeata das Mães da Praça de Maio por Santiago. Foto: Laura Borse
Rogério Tomaz Jr.
20 de outubro de 2017, 12h09

Com Federico Frau

País de longa e profunda tradição nas letras, com alguns dos maiores autores do século 20 e contemporâneos da ficção e da crônica, a Argentina de 2017 parece viver um enredo que até supera suas melhores criações literárias.

A menos de uma semana das eleições legislativas –domingo (22)– que podem ser um termômetro da resistência ao ultraneoliberalismo* na América Latina, apareceu um cadáver que pode ser o do jovem Santiago Maldonado, desaparecido desde o primeiro dia de agosto, após ação policial que expulsou uma comunidade mapuche que reivindica terras habitadas por seus ancestrais que hoje estão em posse de Luciano Benetton, o dono da famosa grife italiana e da escuderia de Fórmula 1.

Na manhã da terça-feira, 17 de outubro, poucas horas antes do aparecimento do corpo, três juízes pediram a prisão do deputado e ex-ministro kirchnerista Julio De Vido. Não houve uma condenação. Os juízes Eduardo Farah, Martín Irurzun e Leopoldo Bruglia simplesmente consideraram que o “encarceramento resulta a única alternativa viável para garantir o êxito desta investigação”, conforme explicou Irurzun.

Aliada de Macri fez piada com o corpo encontrado, supostamente conservado pelas águas frias do rio Chubut, ao comparar o caso com Walt Disney

De Vido, que foi ministro do Planejamento tanto de Néstor quanto de Cristina Kirchner, responde a várias causas e jamais se negou a depor ou a comparecer a audiências. Os magistrados talvez estejam informados sobre a influência do Judiciário brasileiro nas últimas eleições e não quiseram ficar atrás.

Toda novela tem um bufão e o drama argentino atual tem o seu, mas não se trata de personagem menor. Elisa Carrió, principal candidata a deputada nacional pela aliança Cambiemos, do presidente Maurício Macri, foi praticamente proibida de dar entrevistas por conta das asneiras (sendo eufemista) que saíram de sua boca em profusão no último mês. Sem se importar com a dor que a família Maldonado sente, “Lilita” fez piada com o corpo encontrado na Patagônia, supostamente conservado pelas águas frias do rio Chubut, ao comparar o caso com Walt Disney, aludindo à lenda de que o criador do Mickey se encontra congelado à espera da cura do câncer. Mais: também num programa de TV ao vivo, comemorou o fato de terem encontrado um corpo e, tentando se corrigir, gargalhou com a eventualidade de o cadáver não ser o de Santiago Maldonado. Grotesco.

Em coletiva transmitida por quase toda a mídia nacional, na noite de quarta-feira (18), o irmão de Santiago, Sérgio Maldonado, disse acreditar que o corpo fora “plantado” no local. As razões: o cadáver foi localizado 300 metros rio acima –ou seja, contra a corrente– do lugar onde Santiago foi visto sendo levado pela polícia. Mais grave: já haviam sido feitas três buscas anteriores na mesma região e nada foi encontrado.

Apesar disso, e mesmo com a cédula de identidade de Santiago Maldonado junto ao corpo, Sérgio descartou confirmar que se trata do seu irmão e afirmou que aguardará os procedimentos forenses, que terão início nesta sexta-feira (20). Os primeiros resultados da perícia devem ser conhecidos apenas na próxima semana.

Indagada a respeito da prisão de Julio De Vido, Cristina Kirchner disse que a ação faz parte do “evidente cronograma eleitoral do governo Macri”. Também ficará para a próxima semana a votação na Câmara do pedido de perda de foro privilegiado do parlamentar. A votação será imprevisível. Em julho passado, De Vido enfrentou votação semelhante e a demanda da Justiça não obteve os votos necessários entre os deputados. A única certeza é que a estratégia política da direita na América Latina conta com setores do poder Judicial e que na Argentina não faltam juízes e membros do Ministério Público engajados nessa orientação.

A lista encabeçada por Elisa Carrió alcançou nas primárias de agosto a impressionante marca de 49,55%, resultado que a tornou o xodó de Maurício Macri. No passado, entretanto, a relação entre os dois não foi das melhores. Em 2003, a campeã de votos chamou o atual presidente de “contrabandista”. Em 2007, o termo usado por Carrió para se referir ao então prefeito de Buenos Aires foi mais genérico: corrupto. Dois anos depois, elevou o tom em nível pessoal: “Está claro que Maurício Macri tem uma incompetência feroz. Alguém tem que dizer a ele: ‘You are stupid’”, assim mesmo, em inglês. O tom das críticas foi diminuindo gradualmente. Em 2013, ela disse apenas que não votaria nele. Na vitória de Macri em 2015, Carrió já estava de corpo, alma e bravatas grosseiras na coalizão Cambiemos.

Tão logo começaram as cobranças pela aparição de Santiago Maldonado, Lilita e os funcionários de Macri e de Maria Eugenia Vidal –carismática governadora da província de Buenos Aires, provável candidata à presidência em 2019 no lugar de Macri, que não deverá tentar a reeleição– lançaram-se ao ataque contra a família, o povo mapuche e as organizações de direitos humanos.

Em vez de investigar, Macri e seus colegas de partido criaram versões falsas sobre o desaparecimento e atacaram a família de Santiago, o povo mapuche e as organizações de direitos humanos

Em versões amplamente difundidas pelo grupo Clarín, a Globo argentina, em todos os seus meios, Maldonado havia fugido para o Chile. Depois, teria sido morto pelos mapuche ou estaria escondido pela família. Conseguiram uma cabeleireira que jurou ter cortado o cabelo do jovem andarilho. E ainda tentaram colar o rótulo de terrorista e militante radical no tatuador que resolveu se somar ao acampamento indígena por solidariedade à causa.

Elisa Carrió chegou a se vangloriar dizendo que o povo argentino teria que pedir-lhe desculpas porque sua hipótese, de que Santiago não estava desaparecido, era a correta. No final das contas, foi ela quem pediu desculpas –não apenas uma, mas duas vezes– à família praticamente enlutada.

Foto: reprodução TV

A versão que o macrismo abraçou é a de que o Estado argentino investigou o caso como cabia e, finalmente, encontraram um corpo, que ainda precisa ser identificado, vale ressaltar. O achado serviria para calar a boca dos opositores. A verdade passa longe disso, entretanto.

Uma foto registrada no dia do seu desaparecimento, que veio à tona somente no mesmo dia do corpo, mostra um homem de abrigo azul celeste fugindo da ação policial. A imagem foi produzida pelas forças oficiais e corresponde precisamente à descrição de uma testemunha sobre que roupa Santiago usava naquele momento. A ocultação da imagem é a prova cabal de que o governo, que negou durante muito tempo ter qualquer dado sobre a presença do jovem no local, mentiu à sociedade.

Tema importante no debate público, o caso Santiago Maldonado parece ter caído, na reta final da campanha, num plano macabro para diminuir a impressão de inépcia e omissão do governo Macri.

O cenário surrealista da Argentina prosseguirá. Tal qual o do Brasil.

*Ultraneoliberalismo se refere à nova onda neoliberal na América Latina, muito mais agressiva e devastadora do que aquela dos anos 90.

Rogério Tomaz Júnior é jornalista brasileiro, residente em Montevidéu.

Federico Frau é jornalista argentino, residente em Buenos Aires, e escreve para diversos meios na Argentina e Chile. Twitter: @federicofrau

Os autores estão cobrindo as eleições argentinas para o site Socialista Morena e para a página Botando Pilha e criaram um projeto de financiamento coletivo: clique aqui para contribuir.

 


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(1) comentário Escrever comentário

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ari em 20/10/2017 - 21h09 comentou:

Aos poucos começam a surgir os primeiros cadáveres. Lá, com Maldonado, e cá, com o reitor da UFSC.

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