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O dia em que Clarice Lispector “defendeu um bandido”. E se fosse hoje?

A escritora ficou abalada com a história do assaltante Mineirinho, metralhado pela polícia com 13 tiros, fato corriqueiro no Brasil atualmente

Clarice por Maureen Bisilliat, agosto de 1969/Acervo IMS
Cynara Menezes
13 de dezembro de 2017, 12h34

A mais aclamada escritora brasileira, Clarice Lispector, cuja morte completou 40 anos no último sábado, considerava a crônica Mineirinho – Um Grama de Radium, escrita para a extinta revista Senhor, como um dos seus textos favoritos. “Entre seus diversos trabalhos, sempre existe um filho predileto. Qual aquele que você vê com maior carinho até hoje?”, perguntou o repórter Júlio Lerner a Clarice em entrevista à TV Cultura em 1977, pouco antes de sua morte. “Uma coisa que escrevi sobre um bandido, um criminoso, chamado Mineirinho, que morreu com 13 balas, quando uma só bastava, e que era devoto de São Jorge e tinha uma namorada. Aquilo me deu uma revolta enorme”, respondeu.

Quando foi morto, aos 28 anos, no final de abril de 1962, Mineirinho levava no peito uma medalha de São Jorge e no bolso uma oração a Santo Antônio. José Rosa de Miranda, vulgo Mineirinho, foi chamado de “cangaceiro do asfalto” na reportagem de Pinheiro Jr. do jornal Semanário que narrou sua morte, e que o apresenta como vítima da pobreza e da injustiça, típico filho de migrantes pobres dos cafundós das Minas Gerais que se perde na capital. “Mineirinho teve o fim das feras: morreu crivado de balas e teve o corpo jogado à beira de uma estrada. A sociedade não resolveu o crime. Apenas desapareceu mais um assassino!”, escreveu o jornalista.

O “inimigo público número 1” começara a vida do crime assaltando pontos de jogo do bicho; depois passou às padarias e lojas. Matou policiais. Mas, ainda assim, era considerado um bandido “romântico”, querido no morro da Mangueira. Ao seu funeral compareceram mais de 2 mil pessoas. “Apesar de ser bandido, era um ser humano qualquer. Após ser chacinado, seu corpo, como se fosse de um animal, foi jogado dentro de um veículo e posteriormente atirado num matagal”, lamentava a reportagem de A Noite em 2 de maio de 1962. Na entrada da Mangueira, foi estendida uma enorme faixa preta em sinal de luto.

“Com uma oração de Santo Antônio no bolso e um recorte sobre seu último tiroteio com a Polícia, o assaltante José Miranda Rosa, ‘Mineirinho’, foi encontrado morto no Sítio da Serra, na Estrada Grajaú-Jacarepaguá, com três tiros nas costas, cinco no pescoço, dois no peito, um no braço esquerdo, outro na axila esquerda e o último na perna esquerda, que estava fraturada, dado à queima-roupa, como prova a calça chamuscada”, publicou o Diário Carioca. Fosse agora, a mídia diria que morreu “em confronto” com a polícia.

Com uma oração de Santo Antônio no bolso e um recorte sobre seu último tiroteio com a Polícia, o assaltante José Miranda Rosa, 'Mineirinho', foi encontrado morto no Sítio da Serra, na Estrada Grajaú-Jacarepaguá

Todas estas circunstâncias provocaram na escritora algo que parece em extinção no Brasil de 2017: um sentimento de empatia, de ser capaz de sentir a dor do outro. E Clarice escreveu a delicada crônica que publicamos abaixo. Hoje em dia, quando fuzilamentos sumários de suspeitos por policiais viraram fato corriqueiro, a escritora certamente seria atacada nas redes sociais como “defensora de bandidos” pelos que acreditam que direitos humanos só se aplicam a alguns privilegiados.

De bônus, assista o filme Mineirinho Vivo ou Morto (1967), inspirado na vida do ladrão, de Aurélio Teixeira, com Jece Valadão e Leila Diniz como protagonistas.

***

A capa da Senhor com o texto de Clarice

Um grama de radium — Mineirinho

Por Clarice Lispector

É, suponho que é em mim, como um dos representantes do nós, que devo pro­curar por que está doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irredutível também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos vivo. A cozinheira se fechou um pouco, vendo-me talvez como a justiça que se vinga. Com alguma raiva de mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu fria: “O que eu sinto não serve para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no céu”. Respondi-lhe que “mais do que muita gente que não matou”. Por que? No entanto a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim.

Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo-primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo-segundo chamo meu irmão. O décimo-terceiro tiro me assassina —porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.

A primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que não matarás. Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim

Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais.

Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos.

Até que treze tiros nos acordam, e com horror digo tarde demais —vinte e oito anos depois que Mineirinho nasceu— que ao homem acuado, que a esse não nos matem. Porque sei que ele é o meu erro. E de uma vida inteira, por Deus, o que se salva às vezes é apenas o erro, e eu sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for precioso. Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem. Meu erro é o modo como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e vi a matéria de vida, placenta e sangue, a lama viva.

Em Mineirinho se rebentou o meu modo de viver. Como não amá-lo, se ele viveu até o décimo-terceiro tiro o que eu dormia? Sua assustada violência. Sua violência inocente —não nas conseqüências, mas em si inocente como a de um filho de quem o pai não tomou conta.

O décimo-terceiro tiro me assassina —porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro

Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos entendermos. Para que a casa não estremeça.

A violência rebentada em Mineirinho que só outra mão de homem, a mão da esperança, pousando sobre sua cabeça aturdida e doente, poderia aplacar e fazer com que seus olhos surpreendidos se erguessem e enfim se enchessem de lágrimas. Só depois que um homem é encontrado inerte no chão, sem o gorro e sem os sapatos, vejo que esqueci de lhe ter dito: também eu.

Eu não quero esta casa. Quero uma justiça que tivesse dado chance a uma coisa pura e cheia de desamparo em Mineirinho —essa coisa que move montanhas e é a mesma que o fez gostar “feito doido” de uma mulher, e a mesma que o levou a passar por porta tão estreita que dilacera a nudez; é uma coisa que em nós é tão intensa e límpida como uma grama perigosa de radium, essa coisa é um grão de vida que se for pisado se transforma em algo ameaçador— em amor pisado; essa coisa, que em Mineirinho se tornou punhal, é a mesma que em mim faz com que eu dê água a outro homem, não porque eu tenha água, mas porque, também eu, sei o que é sede; e também eu, que não me perdi, experimentei a perdição.

A justiça prévia, essa não me envergonharia. Já era tempo de, com ironia ou não, sermos mais divinos; se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porque adivinhamos em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime. Continuo, porém, esperando que Deus seja o pai, quando sei que um homem pode ser o pai de outro homem.

Essa coisa, que em Mineirinho se tornou punhal, é a mesma que em mim faz com que eu dê água a outro homem, não porque eu tenha água, mas porque, também eu, sei o que é sede; e também eu, que não me perdi, experimentei a perdição

E continuo a morar na casa fraca. Essa casa, cuja porta protetora eu tranco tão bem, essa casa não resistirá à primeira ventania que fará voar pelos ares uma porta trancada. Mas ela está de pé, e Mineirinho viveu por mim a raiva, enquanto eu tive calma.

Foi fuzilado na sua força desorientada, enquanto um deus fabricado no último instante abençoa às pressas a minha maldade organizada e a minha justiça estupidificada: o que sustenta as paredes de minha casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus inimigos que são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranqüila e que outros furtivamente fingirão que esta­mos todos certos e que nada há a fazer.

Tudo isso, sim, pois somos os sonsos essenciais, baluartes de alguma coisa. E sobretudo procurar não entender.

Se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porque adivinhamos em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime

Porque quem entende desorganiza. Há alguma coisa em nós que desorganizaria tudo —uma coisa que entende. Essa coisa que fica muda diante do homem sem o gorro e sem os sapatos, e para tê-los ele roubou e matou; e fica muda diante do São Jorge de ouro e diamantes. Essa alguma coisa muito séria em mim fica ainda mais séria diante do homem metralhado. Essa alguma coisa é o assassino em mim? Não, é desespero em nós. Feito doidos, nós o conhecemos, a esse homem morto onde a grama de radium se incendiara. Mas só feito doidos, e não como sonsos, o conhecemos. É como doido que entro pela vida que tantas vezes não tem porta, e como doido compreendo o que é perigoso compreender, e só como doido é que sinto o amor profundo, aquele que se confirma quando vejo que o radium se irradiará de qualquer modo, se não for pela confiança, pela esperança e pelo amor, então miseravelmente pela doente coragem de destruição. Se eu não fosse doido, eu seria oitocentos policiais com oitocentas metralhadoras, e esta seria a minha honorabilidade.

Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o bruto grito desarticulado serve de sinalização.

Na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular

Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento.

Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso —nesse instante está sendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranquila, mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato.

O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno.


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(7) comentários Escrever comentário

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Sergio em 13/12/2017 - 19h14 comentou:

Há dois dias, em Recife, um jovem policial, apenas 22 anos, há três meses começou a trabalhar na PM, concursado e com méritos para vestir a farda da corporação.

A equipe da PM tentou abordar os quatro suspeitos nos trilhos do metrô, quando os bandidos atiraram e os militares reagiram.

Infelizmente, não se vê a mesma comoção ou revolta, se tivesse sido o contrário!

Novamente, a sociedade precisa seriamente repensar seus valores. Maus policiais que matam por matar são tão nocivos à sociedade quanto bandidos que matam policiais. Gostaria de ver a sociedade IGUALMENTE INDIGNADA com ambos os fatos.

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    Edson em 20/05/2018 - 09h49 comentou:

    Quem defende bandido é advogado, direitos humanos defendem direitos dos seres humanos conforme manda a lei , sejam eles quem forem

Viviane em 14/12/2017 - 11h10 comentou:

Caraca!!! Que plot twist na turma que compartilha “textos de Clarice Lispector” no Facebook!!!!

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MARCELO B.V. Júnior em 28/12/2017 - 09h53 comentou:

É estranho o sentimento de artistas, psicanalistas, sociólogos, jogadores de futebol, intelectuais, artistas, jornalistas, antropólogos e outros, com o banditismo.
A sociedade capitalista dá oportunidades para seguir uma vida burguesa. São limitadas, é verdade, mas você tem a liberdade na opção.

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    Cynara Menezes em 28/12/2017 - 12h34 comentou:

    “são limitadas, é verdade”

Cesar em 10/12/2020 - 13h55 comentou:

Sabe pq senhor Sérgio, que a sociedade não tem sentido a dor qdo um policial vai embora? Pergunta a corporação o pq

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Felipe em 21/04/2021 - 13h18 comentou:

MARCELO B.V. Júnior., para quem a sociedade capitalista dá oportunidades para seguir uma vida burguesa? Só se for para ela mesma!
Onde se encontra a liberdade de escolha em oportunidades limitadas? Liberdade e Limite não me parece fazer sentido.

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