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O homem e a ema

De todos os presidentes desde a criação de Brasília, Bolsonaro é o primeiro a tentar "adestrar" emas do Alvorada; até agora só levou bicada

O cowboy de ema do Centro-Oeste. Foto: Dida Sampaio/EstadãoConteúdo
Cynara Menezes
22 de julho de 2020, 12h41

Na quarta-feira, 15 de julho, como tem feito todas as tardes desde que foi diagnosticado com Covid-19, Jair Bolsonaro saiu pela porta da frente do Palácio da Alvorada acompanhado de um ajudante de ordens e quatro seguranças para tomar seu banho de sol. Sempre de calça e camisa social, ele costuma dar uma caminhada pelos jardins da residência oficial. Naquele dia, com ar pensativo, se aproximava do espelho d’água que isola o palácio dos visitantes, quando de repente se abaixou, recolheu uma pena de ema do gramado e enfiou no bolso direito do jeans.

A cena flagrada pelo fotógrafo Dida Sampaio, do Estadão, torna-se ainda mais inusitada quando se sabe que, três dias antes, Igo Estrela, do site Metrópoles, havia fotografado a bicada que uma das aves dera na mão presidencial que tentou alimentá-la com uma banana. E que, exatos três dias depois, Bolsonaro seria bicado novamente por uma ema ao repetir a tentativa de aproximação. Estaria o “mito”, após o fracasso da adoção do cão Augusto, determinado a adestrar as emas do Alvorada, conquistar sua afeição e por conseguinte angariar alguma simpatia popular?

Bolsonaro tenta dar uma banana para a ema…

…e é bicado. Fotos: Igo Estrela/Metrópoles

Não será uma tarefa fácil. Embora estejam sendo acusadas por línguas maldosas de serem “comunistas”, as emas do Alvorada nunca demonstraram interesse nos ocupantes humanos do palácio, estivessem eles ao centro, à direita ou à esquerda. Mesmo porque são elas as reais donas do pedaço, por antiguidade e sem depender de reeleição: já estavam na área muito antes de todos os civis e militares que habitaram ali pelo menos a partir de 1961, quando um casal delas teria sido dado de presente a Eloá Quadros, mulher de Jânio.

Outra versão para a presença das aves diz que o ditador Castello Branco teria levado algumas para dar cabo das cobras nos jardins do palácio. Emas são predadoras naturais de cobras, escorpiões, insetos e pequenos roedores. Não encontrei, porém, nenhuma referência histórica sobre estas ou outras explicações para a origem das emas no Alvorada.

Embora estejam sendo acusadas por línguas maldosas de serem “comunistas”, as emas do Alvorada nunca demonstraram interesse em seus ocupantes humanos, estivessem eles ao centro, à direita ou à esquerda. Mesmo porque são elas as reais donas do pedaço

Em um pedido de informação de 2016, a presidência da República atribuía algumas das 22 emas a “apreensões do IBAMA”, assim como os papagaios, araras, mutuns, canários, periquitos e jabutis do Alvorada e da Granja do Torto. Mas não é impossível que já estivessem nos arredores do palácio quando Brasília foi construída, quando emas, tatus e lobos-guarás eram avistados com frequência –a propósito, foi Juscelino Kubitschek quem criou em 1961, bem ali pertinho, em Goiás, o Parque Nacional das Emas.

Rhea americana, nhandu ou nhanduguaçu para os indígenasé endêmica da América do Sul e aparece nos relatos de viajantes no Brasil desde o século 17. Uma das gravuras do mapa Brasilia qua parte paret Belgis, elaborado em 1643, durante a dominação holandesa de Pernambuco, por George Marcgraf e Frans Post, mostra, entre outros animais da fauna nordestina, algumas emas, inclusive sendo flechadas por indígenas.

O mapa de Marcgraf. Foto: Brasiliana Iconográfica

No detalhe, as emas sendo flechadas

No brasão do Rio Grande do Norte desenhado por Mauricio de Nassau figurava uma ema, “ave que se encontra em abundância naquelas paragens”, segundo Gaspar Barléu, o narrador da expedição. Já o brasileiro Câmara Cascudo sustentava, ao contrário, que “a ema nunca foi em tempo algum característica da fauna norte-rio-grandense e especialmente no domínio holandês”. Atribuía a presença da ave no brasão a uma alegoria em homenagem ao chefe indígena Janduí, corruptela de nhanduí, ema pequena.

O naturalista Langsdorff relatou em seus diários, durante a expedição a Minas Gerais, em 1824, que coletara vários espécimes de emas e empalhado para enviar à Rússia. “Estou ansioso para que as espécies de maior porte, como o avestruz (ema) e a siriema, fiquem secos”, escreveu. “Com esse acréscimo de material de grande porte, vi-me obrigado a permanecer mais alguns dias aqui. Tive que mandar fazer caixas especiais para empacotar e enviar as mais de 700 espécies de plantas e cerca de 800 pássaros que havíamos colecionado desde Santa Luzia e que pretendíamos remeter ao mesmo tempo.”

“As emas do Alvorada não são tão plácidas quanto parecem. Elas detestam gente fardada. Não se sabe, ainda, qual é a reação das emas a barbudos”, escreveu Zózimo em 1989. O barbudo se tornaria hóspede do Alvorada em 2003 e jamais foi bicado por elas

Uma esperança para Bolsonaro: o jesuíta português João Daniel defendia que estas aves “não tão lindas” são facilmente domesticáveis, no livro Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas, escrito em 1757 e 1776, em que narra suas andanças pelo Maranhão e pelo Pará. “Tem o pescoço comprido, e a cauda respectiva ao corpo muito curta, que a desfeia demasiado”, escreveu. “Domestica-se a ema como qualquer outro pássaro, e seria uma grande conveniência se se introduzisse entre as aves domésticas, ao menos por regalo, e raridade.”

Por outro lado, parece que as emas não são lá muito chegadas em militares. Em 1989, ano da primeira eleição à presidência após a ditadura, o colunista Zózimo Barrozo do Amaral, contou, no Jornal do Brasil, que as aves andaram atacando soldados. “As emas que transitam soltas nos amplos gramados do Palácio da Alvorada não são tão plácidas quanto parecem. Elas detestam gente fardada e já deram muita corrida nos soldados do Batalhão de Guardas”, publicou Zózimo. “No último domingo, o deputado Luiz Inácio Lula da Silva cismou de cruzar a pé o longo espaço entre a guarita do palácio e a residência presidencial. Foi vivamente desaconselhado pelos funcionários da presidência. Não se sabe, ainda, qual é a reação das emas a barbudos.”

Bem, o barbudo em questão passou a ocupar o Alvorada a partir de 2003, e, ao que consta, jamais foi bicado por suas vizinhas emplumadas. Pelo contrário, aparece em imagem de Ricardo Stuckert, seu fotógrafo oficial, alimentando as emas tranquilamente –mais esperto que Bolsonaro, Lula preferiu permanecer a uma distância segura.

Lula no Alvorada. Foto: Ricardo Stuckert

A fama de encrenqueiras sempre acompanhou as emas do Alvorada. Elas foram acusadas de perseguir os dálmatas do ditador Ernesto Geisel e de, durante o governo Dilma Rousseff, bicar o labrador da presidenta, Nego.

Dilma, que nunca demonstrou especial simpatia pelas emas, foi zoada por se impressionar com a forma como elas se reproduzem: é o macho que choca o ovo. “A primeira palavra que eu acho que ele falou é ema”, contou a recém-empossada presidenta à jornalista Patricia Poeta, da Globo, sobre o netinho Gabriel, então com um ano de idade. “Além do netinho presidencial, o palácio hospeda hoje outros 9 bebês. Filhotes de emas que nasceram na semana passada”, disse Patricia. E Dilma soltou a frase que faria a internet explodir: “É o emo que choca”.

A fama de encrenqueiras sempre acompanhou as emas do Alvorada. Elas foram acusadas de perseguir os dálmatas do ditador Ernesto Geisel e de, durante o governo Dilma Rousseff, bicar o labrador da presidenta, Nego

Certamente um macho chocando ovo não seria algo digno de nota para um machão como Bolsonaro. Mas, 18 anos antes da petista, outro presidente mineiro também havia mostrado espanto com esta característica da reprodução das emas: Itamar Franco, que um dia chegou ao palácio do Planalto alardeando a descoberta entre os repórteres, sem que por isso virasse alvo de chacota. A partir daí, toda vez que se falava das emas da residência presidencial, os jornalistas escreviam que eram “os bichos favoritos de Itamar”.

Ao longo dos anos, as desengonçadas aves foram até incorporadas ao jargão dos repórteres e colunistas de política na capital federal, que volta e meia sapecam em seus textos um “até as emas do Alvorada sabem…” ou “até as emas do Alvorada desconfiam…” A própria Dilma fez isso. “Até as emas do Alvorada sabem que a lei é uma pra Cunha, outra pra mim”, disse, durante o processo de impeachment, em 2016. “Até as emas do Alvorada sabem que se tratou de um golpe”, repetiu, em 2018.

Até as emas do Alvorada sabem que a cloroquina não funciona, diria alguém em 2020, ao ver o patético vídeo de Bolsonaro erguendo, diante do espelho d’água do palácio e da habitual claque de bolsominions, uma caixinha do remédio que alardeia como a panaceia para o coronavírus, mesmo ele tendo sido descartado pela OMS e mais recentemente pela Fiocruz. A insistência do presidente com a medicação só é comparável à sua insistência em ficar amigo das emas.

Pouco antes de saudar a cloroquina, naquele mesmo domingo, novamente Bolsonaro resolveu se aproximar das aves. E elas novamente não mostraram o menor entusiasmo em fazer amizade com ele, que saiu sacudindo a mão como se tivesse levado outra bicada. O fotógrafo Igo Estrela, do Metrópoles, voltou a registrar a cena.

Fotos: Igo Estrela/Metrópoles

Bolsonaro será bicado de novo? As emas sucumbirão ao encanto rústico do “mito” ou ele só afeta o gado? O presidente desistirá das aves e adotará um gato? Ema, ema, ema, este é o menor dos nossos problemas.

 


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Leila em 24/07/2020 - 06h42 comentou:

Excelente texto. Parabéns. Bem dosado de informações.

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