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O livro de Elis e o filme de Cássia: autorizada ou não, uma biografia deve ser honesta

Elis Regina faria 70 anos hoje, 17 de março. Quando ela morreu, aos 36 anos, em janeiro de 1982, eu tinha 14 anos e chorei muito. Adolescente no final da ditadura militar, sabia pouca coisa da vida, mas sentia que uma gigante da música tinha ido embora. Fiquei chocada quando soube que tinha morrido de […]

Cynara Menezes
16 de março de 2015, 10h49
eliscassia

(As capas “não-autorizadas” da Veja com Elis e Cássia Eller em 1982 e em 2002)

Elis Regina faria 70 anos hoje, 17 de março. Quando ela morreu, aos 36 anos, em janeiro de 1982, eu tinha 14 anos e chorei muito. Adolescente no final da ditadura militar, sabia pouca coisa da vida, mas sentia que uma gigante da música tinha ido embora. Fiquei chocada quando soube que tinha morrido de overdose de cocaína. Simplesmente não “ornava” com Elis –além de, então, não ter a menor ideia do que fosse aquela droga. Naquela semana, a revista Veja fez questão de dar a suposta causa da morte como destaque na capa em vez da grandeza artística da cantora.

Quando Cássia Eller morreu, aos 39 anos, em dezembro de 2001, eu tinha 34 anos e a notícia estragou as festas de final de ano em minha família. Àquela altura, já sabia exatamente o que era a cocaína, droga que vitimou muita gente da minha geração, e imaginei que a razão da morte de Cássia pudesse ter sido uma overdose. Não era. Cássia estava “limpa” havia dois anos. Mas, em vez de esperar o laudo da necropsia, a revista Veja mais uma vez se apressou em destacar a droga em detrimento do talento.

Essas histórias me vieram à cabeça após assistir ao ótimo documentário Cássia, que está em cartaz nos cinemas. O filme dirigido por Paulo Henrique Fontenelle é claramente uma biografia autorizada da cantora. Cuidadoso, delicado, amoroso. Não que a vida louca, vida breve da roqueira tenha ficado de fora. Está tudo ali: as baladas de pó com o tio-empresário, as crises de abstinência, os surtos, o lesbianismo assumido da cantora. Sem caretices. Mas percebe-se que não há, no filme, nenhum interesse em comprar brigas com ninguém, apenas em contar a história de Cássia da maneira mais honesta possível. É um documentário para fãs. E isso não é um defeito, pelo contrário.

Vi este mesmo tom no livro Viva Elis, de Allen Guimarães (editora Master Books), que recebi de presente de Maria Rita, filha da cantora, no ano passado. Fã assumido de Elis e atualmente assessor de Maria Rita, Guimarães conta a história da gaúcha de Porto Alegre desde a infância até a morte por ingestão de cocaína misturada com uísque, como se noticiou à época. O livro tem fotos inéditas, é prazeroso e se deixa ler de uma sentada.

elislivro

Em 2013, quando houve o debate sobre a liberação das biografias não-autorizadas, me posicionei a favor, claro. Não fazia sentido que o Brasil fosse o único país onde se dependia da autorização do personagem para a publicação de uma biografia. O plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu acabar com essa censura, por unanimidade, em junho de 2015. Mas quero dizer que não considero que uma biografia seja boa apenas pelo fato de não ter sido autorizada. Não tem nada a ver uma coisa com a outra. Uma biografia autorizada pode ser boa e uma não-autorizada pode ser ruim; e vice-versa. Digo inclusive que as melhores biografias que li na vida eram autorizadas ou mesmo autobiografias. A questão, para mim, não é a biografia ser autorizada ou não-autorizada, mas ser bem escrita. E honesta.

Quando um escritor ou um jornalista se baseia em fofocas para escrever um livro ou uma reportagem, quando as informações não são checadas, quando os principais envolvidos não são ouvidos, não se pode esperar que saia boa coisa dali. Independe de o biografado ser a favor ou não de sua publicação. Biografias, autorizadas ou não, que cometam injúria ou que falseiem a trajetória da figura pública em questão, podem e devem ser alvo de ações judiciais. O que fará delas bons livros, que é o que importa, é a forma como a história é contada e as revelações que contêm –e não que se conte absolutamente tudo sobre a vida da pessoa.

No livro autorizado sobre Elis, por exemplo, aparece um questionamento que eu não conhecia. O autor rejeita a tese de que ela tenha morrido de overdose de cocaína, baseado, em primeiro lugar, no depoimento de seu namorado, o advogado Samuel MacDowell. “Não acredito nas afirmações contidas nesse laudo”, disse MacDowell à época. Harry Shibata, o legista que fizera a necropsia da cantora, tinha sido o mesmo a atestar o “suicídio” do jornalista Vladimir Herzog nas dependências do DOI-CODI, em 1975. McDowell fora um dos advogados que acionara a União contra a tese do suicídio e conseguira provar na Justiça que Shibata assinara um laudo falso e que Herzog fora torturado até a morte.

“Suspeitou-se à época que o legista estivesse se vingando do caso Vladimir Herzog, ligando Elis uma cantora de protestos, militante, filiada ao PT, com discursos contrários ao governo e seu namorado ao uso de drogas ilícitas”, diz o livro. “Pediu-se contraprova dos testes, mas não foi permitido. Shibata alegou que chamou o médico Álvaro Machado Júnior para acompanhar a autópsia justamente para não haver questionamento. O médico, por sua vez, falou ao Estado de S.Paulo que não tinha nada a questionar sobre a autópsia, porque foi absolutamente normal, mas não podia dizer nada sobre os resultados por não ter acompanhado os exames toxicológicos”. O mais grave: “nos laudos, Shibata diz não ter encontrado cocaína nas vísceras de Elis”. Bizarro, para dizer o mínimo.

Tem uma questão que me parece particularmente estranha: em 2011, foi preciso UM MÊS para os exames toxicológicos de Amy Winehouse serem conclusivos sobre a causa de sua morte. Isso na Inglaterra. Como é que, em 1982, e no Brasil, o laudo sobre a morte de Elis Regina pôde ter sido tão taxativo em menos de uma semana? Elis morreu numa terça, 19 de janeiro. No sábado, as revistas foram as bancas com o resultado da necropsia dando positivo para cocaína… Difícil de acreditar.

Faltou jornalismo à Veja ao cravar na capa que Elis morreu de overdose, sem apontar nem uma sombra de dúvida, ao contrário do que fizeram familiares e amigos? Não seria surpresa. Afinal, a revista apoiava a ditadura, que interesse teria em brigar com ela? Exatos 20 anos depois de Elis, Veja faria o mesmo com Cássia Eller e era mentira. A rigor, ambas as reportagens eram não-autorizadas. Eram honestas?

UPDATE: Conversei com o jornalista Julio Maria, autor de uma nova biografia de Elis Regina (também autorizada), Nada Será Como Antes (editora Master Books), e ele diz não ter encontrado nada que apontasse para erro no laudo médico sobre a morte da cantora. Permanece o mistério.


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(14) comentários Escrever comentário

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Rafael Samarone em 09/03/2015 - 23h04 comentou:

Para além da questão delas terem morrido por overdose ou não, fiquei com o questionamento de Zélia Duncan no documentário: depois de terem carreiras fantásticas, serem ainda em vida reconhecidas como grandes, fantásticas, maravilhosas (me faltam adjetivos) cantoras, era só isso que a revista poderia falar sobre elas!?!? Realmente muito triste que veículos de comunicação como a Veja, com grande poder de interlocução com a sociedade, se prestem a um papel tão vergonhoso!!!

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Mário em 10/03/2015 - 11h42 comentou:

"Veja" e "honesta" são duas palavras que não cabem na mesma frase.

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Etelma T. de Souza em 10/03/2015 - 12h29 comentou:

Sou muito fã das duas: Cássia Eller e Elis Regina. Considero que Cássia Eller foi a última voz do rock nacional feminino (Rita Lee foi importantíssima, foi a rainha do rock, mas, hoje?…) e Elis Regina a maior cantora brasileira, uma das maiores (se não a maior) do mundo e insuperável até hoje!
Quando Elis Regina morreu, eu tinha 11 anos, mas me lembro de ter ficado chocada, provavelmente porque durante todo o dia foi o assunto nas rádios, tvs…
Muito cedo passei a gostar dela por influência de meu pai. Após a sua morte, comecei a pesquisar sobre Elis e a adquirir mais vinis (meu pai tinha só 2 ou 3). Logo que saiu, comprei o Furacão Elis. Até hoje tenho muito material como revistas que saíram à época. Enfim, ainda adolescente pesquisei bastante sua vida e sua morte. E, muitos anos depois, volto a me chocar: também jamais ouvira essa tese (?), totalmente plausível, sobre a autópsia e laudo de Elis Regina! Que horror! Será que ainda há possibilidade de resgatar isso e estabelecer a verdade sem dúvidas? Seja qual for? Terá acontecido mais um crime?…

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jonas em 10/03/2015 - 12h42 comentou:

Um pequeno erro no fim do texto "Exatos 30 anos depois de Elis, Veja faria o mesmo com Cássia Eller ", foram 20 anos, mas nada que atrapalhe, gostei do texto.

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    morenasol em 10/03/2015 - 14h46 comentou:

    hahaha o pior é que eu botei 20 e depois mudei pra 30, acho que pensando em hoje em dia. obrigada! ; )

Etelma T. de Souza em 10/03/2015 - 13h37 comentou:

Sou muito fã das duas: Cássia Eller e Elis Regina. Considero que Cássia Eller foi a última voz do rock nacional feminino (Rita Lee foi importantíssima, foi a rainha do rock, mas, hoje?…) e Elis Regina a maior cantora brasileira, uma das maiores (se não a maior) do mundo e insuperável até hoje!
Quando Elis Regina morreu, eu tinha 11 anos, mas me lembro de ter ficado chocada, provavelmente porque durante todo o dia foi o assunto nas rádios, tvs…
Muito cedo passei a gostar dela por influência de meu pai. Após a sua morte, comecei a pesquisar sobre Elis e a adquirir mais vinis (meu pai tinha só 2 ou 3). Logo que saiu, comprei o Furacão Elis. Até hoje tenho muito material como revistas que saíram à época. Enfim, ainda adolescente pesquisei bastante sua vida e sua morte. E, muitos anos depois, volto a me chocar: também jamais ouvira essa tese (?), totalmente plausível, sobre a autópsia e laudo de Elis Regina! Que horror! Será que ainda há possibilidade de resgatar isso e estabelecer a verdade sem dúvidas? Seja qual for? Terá acontecido mais um crime?…

Responder

Ana Paula em 10/03/2015 - 14h57 comentou:

Vc viu a capa da Veja quando o Renato Russo morreu?? http://mlb-s1-p.mlstatic.com/revista-veja-morte-r

e do Cazuza?? http://1.bp.blogspot.com/-PAck31xNGdI/T69PPGOd5TI

Veja alimentando o conservadorismo desde sempre…

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Klaytonn em 10/03/2015 - 15h47 comentou:

"A culpa é da Veja" é o novo "Foi FHC"…. Ou seria o contrário???

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Neoson Liberal em 10/03/2015 - 19h15 comentou:

a veja pos farinha no feijão da elis…malditos liberais, cynara ja pensou em substituir a dilma?pelo menos iriamos ter uma presidenta bonitinha!

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Lenir Vicente em 10/03/2015 - 22h28 comentou:

Todos nós que acompanhávamos a carreira da "Pimentinha", como carinhosamente a chamava o poeta Vinícius de Moraes, choramos com a morte da maior cantora brasileira.Tantas músicas, todos os gêneros e nenhum preconceito. "Alô, alô marciano", lembram-se? Rita Lee numa fase ruim e lá foi a Pimentinha botá a menina pra cima.Ela era assim. só sensibilidade. Aconteceu a tragédia. E, claro, nosso maior "tabloide",que acha que é uma revista séria, estampa na capa "a versão" . Fatos não é mesmo a área de seus escrevinhadores amestrados. Assim como não respeitou Elis, porque haveria de respeitar Cássia Eller? Mas a verdade , quando costuma tardar, vem com mais força. Chega no ocaso do tabloide. O Brasil vai continuar a ouvir e se emocionar com as vozes de Elis Regina e Cássia Eller Já a o tabloide …

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Dox em 13/03/2015 - 00h20 comentou:

Cynara entregou a idade … mas fiquei confuso sobre sua posição em relação às biografias não autorizadas, que eu sou contra, por princípio. Você é a favor, mas condenou algumas, e parece que não bota muita fé nelas, entendendo que geram muita polêmica.

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Gilberto Bombardieri em 13/03/2015 - 20h03 comentou:

estou chocado. tiraste mais de 30 anos de cocaína das entranhas do meu carcomido cérebro.

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@flaviodoprado em 17/03/2015 - 21h28 comentou:

Boa noite, achei legal o seu texto, gostei muito, não vou "bater" em você acredito que já levou muito no final de semana, o que vemos é um exagero enorme de há muito tempo da revista veja, chamada de tucano, assim como a revista carta capital conhecido como panfletário do pt, acho que em ambos os casos há uma certa razão em tais afirmações. A mídia em geral tenta sempre conduzir uma linha de pensamento que acha ideal.
No mais desejo uma ótima semana abençoada, e melhoras espero que se recupere logo e se prepara dia 12 de abril tem mais, não jogue as camisetas fora tá, espero que nos brinde com mais fotos.
bjo e fique com Deus.

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Daniel em 26/12/2017 - 12h28 comentou:

Às vezes é difícil aceitar que nossos ídolos são humanos, como nós. A morte de Elis também me chocou – e muito – quando descobri, 20 anos após a mesma, que a maior cantora do país havia morrido por overdose de cocaína. Concordo quando diz que Veja pesou a mão ao colocar o foco na questão das drogas em detrimento do imenso talento da Pimentinha. Por outro lado, não resta a menor dúvida de que Elis foi vitimada pelo consumo excessivo de cocaína. Os últimos registros da cantora são mais do que suficientes para comprovar o fato.

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