Socialista Morena
Cultura

O que diria Florestan das alianças do PT?

O biógrafo do sociólogo responde à provocação feita pelo Socialista Morena

Florestan Fernandes em 1988. Foto: acervo pessoal
Haroldo Ceravolo
13 de novembro de 2012, 14h13

Na semana passada, transcrevi uma antiga entrevista que fiz com Florestan Fernandes e deixei no ar uma pergunta: “O que diria Florestan se soubesse das alianças do seu PT, que não pôde ver chegar ao poder?” Pois meu amigo Haroldo Ceravolo Sereza, autor da biografia de Florestan, tenta especular aqui.

Por Haroldo Ceravolo Sereza

Uns meses atrás, Cynara me pediu um artigo sobre Florestan para seu blog. Prometi que escreveria, mas acabei não cumprindo. Agora, acabo de ver que ela se cansou de esperar por mim e postou uma entrevista que ela mesma fez com Florestan no seu último ano de vida. Junto com a entrevista, ela fez uma pergunta que não poderá jamais ser respondida: “O que diria Florestan se soubesse das alianças do seu PT, que não pôde ver chegar ao poder?”

Essa mesma pergunta me fiz em 2005, quando entreguei o livro sobre Florestan à Boitempo. Pesquei nos meus arquivos um trecho, que excluí da versão final, que colocava a questão da seguinte forma: “Novamente, seria mero exercício especulativo imaginar como ele reagiria diante de um PCdoB que sustenta a política econômica do ministro Antonio Palocci ou se ele romperia com o PT junto com o ‘ex-moderado’ Plínio de Arruda Sampaio, quem sabe até antes, uma possibilidade que não pode ser, pelas mesmas razões de cunho lógico, inteiramente descartada.” Achei a frase sem elegância e sem utilidade, diante do que havia escrito até ali. Mas claro que a questão de fundo já estava posta e, creio, respondida no limite do que pode imaginar um pesquisador, no trecho do livro abaixo, que faz parte do quinto capítulo de Florestan – a inteligência militante:

***

Apesar de afinar-se mais com a esquerda do partido e de defender que o partido deveria assumir o socialismo como parte central do programa, Florestan confiou na possibilidade de uma aliança entre o PT e o PSDB, numa espécie de reaproximação que colocasse os partidos num acordo próximo ao que ocorreu em vários pontos durante a Constituinte e que se desenhou com o apoio de Mário Covas a Lula em 1989. Durante a campanha de 1994, Florestan evitou ao máximo usar sua relação privilegiada com o ex-aluno e colega para atacar FHC, embora o tenha feito episodicamente, ao tratar da campanha eleitoral que opunha seu ex-assistente e Lula. Mas não poupou críticas ao PSDB.

“O PSDB parecia um partido de socialismo reformista, que mobilizaria extensa parte da classe média em fins construtivos na transformação da sociedade, atraindo também setores expressivos da ‘intelligentsia’. O castelo de cartas ruiu logo. Há uma esquerda reformista no PSDB. Mas ela parece ser mera exceção.”

O PSDB, nesse instante, havia se colocado, para Florestan, na luta pelo poder acima de tudo.

Há dois artigos dessa época que, depois de dois mandatos de FHC e um de Lula, podem ser vistos como um marco do natural afastamento de petistas e tucanos, pondo fim ao projeto de aliança de centro-esquerda. O primeiro se chama “Mario Covas”, a declaração de apoio de Florestan ao tucano no segundo turno da disputa pelo governo do Estado de São Paulo, contra Francisco Rossi, à época no PDT. “Não sei que posição o PT tomará diante dos desdobramentos do segundo turno”, escreve Florestan. Porém, para o deputado, “já basta que Paulo Salim Maluf seja o prefeito da cidade de São Paulo. Ele sozinho representa o fim da linha…”. E advoga: “Agora, só há um caminho: o de apoiar Mário Covas, autêntico paladino da centro-esquerda. As discordâncias ensinam que fatos inexoráveis exigem cooperação rápida, mesmo que experimental e transitória.”

O outro, ainda mais forte, chama-se “O novo presidente”, em que fala de Fernando Henrique Cardoso, vitorioso sobre Lula. “Durante a campanha presidencial enfrentei várias pressões, algumas cobrando críticas imediatistas a Fernando Henrique Cardoso. Entendo que pertencemos a partidos que poderiam ser convergentes. Mas, tomaram vias opostas, o que me obrigava ao silêncio.” Relembrando a longa amizade, que afirma fazer questão de conservar, completa: “Apenas constatei que a carreira política abriu uma brecha psicológica: temos frente a frente o grande cientista social e o político que tenta transmutar-se em estadista. Espero que vença a prova. Isso é difícil, pois envolve a perversão da social democracia e a debilitação do PSDB.”

Os sentimentos contraditórios de Florestan sobre Fernando Henrique ganharam notoriedade no dia em que o já eleito presidente pronunciou seu último discurso como senador, na despedida da Casa. Contrariando o protocolo, a pedido do seu antigo professor, Fernando Henrique desceu da tribuna e abraçou o parlamentar da bancada de oposição, que estava no plenário. Florestan disse-lhe algo ao ouvido, que FHC diz não ter gravado. À TV, ainda no plenário, Florestan diria: “Não crio gatos, crio tigres”, cena exibida no Jornal Nacional daquele dia.

Florestan viveria apenas sete meses sob a gestão FHC e, nesse tempo, evitou fazer críticas pesadas ao governo, preferindo atacar a aliança entre a direita e a “esquerda inteligente”, mesmo no momento em que a administração PSDB-PFL exibiu sua face mais autoritária, quando da greve dos petroleiros. O “professor de FHC”, que os jornais tanto instigavam a se posicionar, preferiu fazer análises de mais impessoais, avaliando que, “com o tipo de oligopólio que se implantará no ciclo econômico que se delineia, a composição do capital se modificará profundamente, engendrando crises de envergadura desconhecida”. Nesse futuro próximo, acreditava Florestan, sindicatos e trabalhadores tenderiam a perder a autonomia conquistada e empregos, “com violentas diminuições dos salários e o naufrágio do poder relativo de que hoje desfrutam”.  Florestan chegou a atacar de modo mais contundente o PSDB, que, na sua opinião, teria mergulhado numa compulsão aberrante: “Constituído por setores da média e alta burguesia, o PSDB acabou como um PMDB menor, disposto a mostrar que seria possível a conciliação entre reforma social e estabilidade da ordem vigente. Terminou, pois, sob o modelo de social-democracia, suscetível de ser manipulado fora e acima dos requisitos dessa corrente política.”

Se é certo que as posições de Florestan durante toda a vida e a identificação de uma tendência “regressiva” naquele início de 1995 praticamente garantem que ele condenaria o governo FHC, e, para irmos mais longe na especulação, também o governo Lula, em especial quanto a assuntos econômicos, é impossível avaliar seriamente sobre qual teria sido, nos dois casos, o comportamento que adotaria no momento em que julgasse conveniente expor suas resistências e rupturas diante de ambos.

A expectativa frustrada em relação ao PSDB, aliada ao discurso revolucionário e à defesa destemida do que do discurso e do mundo socialista (Florestan viajou à Europa em 1991 com Myrian, e visitou, com uma delegação de deputados, a Albânia, ainda antes da queda do regime) no seu momento de maior fragilidade, explica por que, no final da vida, Florestan dizia imaginar-se mais confortável no PC do B do que no próprio PT – sugerindo uma troca partidária que, no entanto, o próprio Florestan julgava inconveniente e incômoda, dada a sua origem trotskista.

***

Mas voltemos a 1994. Durante a segunda campanha de Lula à Presidência da República, Florestan (que, já bastante doente, desistiu de concorrer pela terceira vez à Câmara, apoiando a candidatura de Ivan Valente) escreveu um belo artigo sobre o candidato petista, publicado originalmente na revista Práxis, de Belo Horizonte, com o título “Lula e a transformação do Brasil contemporâneo”. Trata-se de um exercício de “compreensão do significado histórico” de Lula, “parte de um turbilhão em que se gestou a sociedade brasileira de nossos dias”. Recuando no tempo, avaliando as mudanças na sociedade brasileira ocorridas devido às migrações européias, as reações do Estado e até mesmo a nova dinâmica imposta pela Constituição de 1988 –, que, mesmo inacabada, deixando a meio do caminho “as expectativas e exigências do povo”, teria permitido que o país caminhasse “sobre seu próprios pés e pensando segundo sua cabeça” –, Florestan reconstituiu a trajetória do líder sindical que surge no ABC capaz de atuar “dentro dos limites do inconformismo aceito pelos capitalistas” e de formular “reivindicações salariais e de melhoria das condições de trabalho e de maior segurança para o trabalhador sem tempestades em copo d’água” – mas que os empresários descobriram rapidamente não ser o “homem deles” no meio operário.

Nesse elogio a Lula, em que Florestan retoma os métodos do líder petista nas negociações da Constituinte e sua capacidade de organizar a CUT e o PT e mantê-los relativamente independentes um do outro, Florestan reconhece que as “duas tendências mais fortes no PT ou levam à social-democracia ou ao socialismo revolucionário” e que “nenhuma delas é suicida”. Como “ninguém parece disposto a pagar o preço inútil de uma revolução social predestinada ao malogro e à regressão”, era preciso desenterrar e redefinir “duas antigas noções empregadas pelos clássicos da reforma social e da revolução social: as de ‘revolução dentro da ordem’ e de ‘revolução contra a ordem’.” E o programa do PT, em 1994, visava, para Florestan, “saturar os requisitos da primeira noção”.

Talvez em busca de uma união partidária, Florestan diz que Lula, ao optar por “visões prospectivas de desenvolvimento capitalista interno”, incorpora-se à via social-democrata, mas vê no seu silêncio sobre possíveis desafios socialistas como a instauração da democracia da maioria, a sabedoria de quem sabe “que a revolução dentro da ordem já inscreve os antagonismos sociais na dinâmica normal das relações de classes e em um rede ampla de transformações que, se forem concretizadas, converterão o Brasil em um país capaz de produzir – e não só consumir – a civilização moderna”.


(3) comentários Escrever comentário

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Messias Macedo em 15/11/2012 - 05h08 comentou:

PT: STF não garantiu amplo direito de defesa, fez julgamento político e desrepeitou a Constituição
publicado em http://www.viomundo.com.br/politica/pt-stf-nao-ga
14 de novembro de 2012 às 22:41

LÁ VEM O MATUTO CONTISTA!

UMA BREVE HISTÓRIA PARA ACORDAR!…

… [Era uma vez] 'O PT da governança' dormindo em berço esplêndido!… ['O lobo mau arregalou os olhos e afiou os dentes!] Ainda assim, foi preciso a militância – de carteirinha ou não – preparar um 'chá de arrebite', para tracionar à superfície do córtex cerebral reminiscências perdidas em meio às circunvoluções 'dos [desbotados] chapeuzinhos vermelhos'!… Ah, bom!… Boa vigília!…

República de 'Nois' Bananas
Bahia, Feira de Santana
Messias Franca de Macedo

Responder

Jeová Benati Filho em 26/10/2013 - 10h01 comentou:

Eu também me considero de esquerda. Antigo militante do PDT . Votei no Lula em 2002 . Mas ele me decepcionou ao colocar o Henrique Meirelles no Banco Central. Na verdade, esperava uma virada de mesa ,que não aconteceu. Manteve a mesma a política econômica dos tempos de FHC ou seja superavit primários,arrocho para os aposentados e pensionistas do INSS. Fiquei muito frustrado. Hoje me sinto perdido politicamente.

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comprar seguidores em 09/08/2014 - 21h25 comentou:

Demais!

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