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Cultura

Perdido numa noite suja (com Pedro Juan Gutiérrez)

Me orgulho de ter sido a primeira jornalista no Brasil a “descobrir” o escritor cubano Pedro Juan Gutiérrez. Em 1999, tinha lido sobre ele na imprensa espanhola, que o descrevia como “o Bukovski caribenho”. Isso atiçou a minha curiosidade, e pedi à sua editora em Madri que me mandasse o livro que o tornaria famoso, […]

Cynara Menezes
02 de fevereiro de 2013, 12h12

(fotos João Wainer)

Me orgulho de ter sido a primeira jornalista no Brasil a “descobrir” o escritor cubano Pedro Juan Gutiérrez. Em 1999, tinha lido sobre ele na imprensa espanhola, que o descrevia como “o Bukovski caribenho”. Isso atiçou a minha curiosidade, e pedi à sua editora em Madri que me mandasse o livro que o tornaria famoso, Trilogia Suja de Havana. Fiquei fascinada. Trilogia é uma obra-prima. Algum tempo depois, sairia aqui pela Companhia das Letras.

O mais impactante do livro, para mim, assim como outras obras dele, é que Gutiérrez aponta os problemas de seu país lá de dentro, ao contrário do que normalmente ocorre com outros escritores cubanos de olhar mais crítico, todos exilados, como Cabrera Infante ou Zoé Valdés. E com um detalhe: Pedro Juan não toca diretamente em política. Conta o dia-a-dia dos cubanos. E basta. Em Trilogia, eram os anos 1990, os mais duros para os habitantes da ilha. O retrato que traça da vida em Cuba é barra pesadíssima.

Entrevistei Pedro Juan Gutiérrez pelo telefone nesta primeira vez que falamos, para a Folha de S.Paulo. Faria outras duas entrevistas com ele, pessoalmente, nos anos seguintes. Sempre evitou falar de política. Em 2001, em uma das vindas do escritor ao Brasil, eu e o grande fotógrafo e amigo João Wainer o acompanhamos em um tour pelas boates da Boca do Lixo em São Paulo, uma das reportagens mais divertidas da minha carreira. Na volta, descrevi em detalhes tudo o que vimos e ouvimos ao lado do “Bukovski caribenho” naquela noite suja tropical –tudo que era possível publicar num “jornal de família”. E talvez um pouquinho mais.

***

Perdido numa noite suja (com Pedro Juan Gutiérrez)*

CYNARA MENEZES
da Reportagem Local

“Eu, sim, sou o rei de Havana!”, proclama Pedro Juan Gutiérrez, impondo sua voz grave à música alta. Ele vem voltando para a mesa pouco depois de dançar, remexendo os quadris febrilmente dentro de uma jaula, com uma prostituta desnuda em uma discoteca de striptease da chamada Boca do Lixo de São Paulo.

A noite com o escritor cubano, que veio ao Brasil como convidado para a Bienal do Livro do Rio, havia começado algumas horas antes, e a intenção era introduzi-lo, desta vez em Terra Brasilis, no universo de seus livros: Trilogia Suja de Havana e O Rei de Havana, ambos publicados aqui pela Companhia das Letras. Pelas obras circulam, como em Animal Tropical, ainda inédito entre nós, mendigos, travestis, prostitutas –o tipo de pessoa que não é nada difícil de encontrar quando cai a noite no velho centro da capital paulistana.

É preciso dizer que o contato com os mendigos não funcionou. Gutiérrez não fala português e quase não trocou palavra com a gente que dorme na avenida São João debaixo do Minhocão, a famigerada via elevada que destruiu a paisagem do centro. Tampouco tinha muita vontade de fazê-lo. “Você quer me deprimir, é?”, pergunta à repórter. Comenta apenas que em Havana, até alguns anos atrás, não se via pelas ruas esse tipo de sem-teto que mora em “casas” improvisadas com papelão. “Agora eles começam a aparecer.”


Tomamos a rua Bento Freitas, onde por volta das 21h o movimento já é intenso nas boates de néons chamativos e seguranças engravatados na porta que convidam os passantes a entrar para os shows. Escolhemos uma delas ao acaso. Lá dentro, sofás com mesinhas ladeiam as plataformas onde garotas de topless se exibem para os clientes.

Gutiérrez pede uma caipirinha e se mostra bem mais à vontade. As moças não lhe parecem muito bonitas, mas elogia os mamilos escuros de uma morena um pouco gordinha que divide o “palco” com outras três. “As negras me deixam louco”, esclarece. Observa uma loirinha magra de seios pequeninos e biquíni azul menor ainda que dança em frente a nós. “Interessa-me a psicologia das prostitutas. Sei que ela está sofrendo”, diz. “As prostitutas não concebem outra maneira de ganhar a vida que não vendendo o corpo, mas com o tempo começam a ter nojo.”

Para exemplificar, narra a história da amiga Mary, que largou a profissão mais antiga do mundo para se tornar evangélica e sobre quem pretende escrever um conto chamado Quando Eu Era Pecadora, o atual bordão favorito dela ao iniciar uma frase. Mary começou a sentir asco depois de se relacionar com um gordo de membro fino e comprido, cuja ponta fria a fazia lembrar o nariz de um cachorro, ele conta.

Fala também sobre sua vida sentimental em Havana. Mora no oitavo andar de um edifício do centro com a mulher. No sétimo, uma morena lhe provocava diariamente, até que um dia em que a mulher se ausentou “por três horas” não resistiu à tentação. Acabou assumindo o romance e hoje tem uma filha recém-nascida com a namorada/vizinha. “Estou com as duas”, diz. E sua mulher não se importa? “Somos cúmplices. Quando vim para o Brasil, colocou em minha mala um pacote de preservativos. Falei que não precisava, que eram só 15 dias. E ela: ‘Te conheço tanto que sei que você é capaz de comprar outra caixa lá e voltar com esta intacta’.”

Mas e se for a mulher quem se relacione com outro? “Ela viajou à Itália por seis meses, gostou de um italiano e ficou com ele. Quando partiu, eu tinha dito que estava livre para isso, desde que usasse preservativos. Só foi desagradável porque ele acabou vindo para Cuba vê-la.” Agora, mantém financeiramente a mulher e a namorada, ambas desempregadas. Para quem se afirma com vocação para gigolô e que chegou a viver na época das vacas magras dos ganhos de uma namorada prostituta, não deixa de ser uma inversão de papéis.

Antes de sairmos, ainda tem tempo para outra informação bombástica sobre sua vida. “Sei que parece pedante, mas estive com mais de 200 mulheres até hoje”, conta, para espanto do fotógrafo, que pergunta: “Mas você sai contando?”. O cubano responde que aos 35 anos fez uma lista dos nomes que lembrava ou, quando esquecia, das situações. Desistiu da lista quando o número já rondava as 130 conquistas. “Então, como tenho agora 51…”


Descemos caminhando pela rua Amaral Gurgel, tradicional ponto de trottoir de travestis, um interesse crescente de Gutiérrez. Em O Rei de Havana, já aparece o travesti Sandra, que por pouco não rouba a cena, forçando o escritor a cortá-la da história. Agora, tem estado há um ano em conversas com um travesti para um romance protagonizado por ela e por uma cantora de boleros de 60 e poucos anos.

O escritor tira quase tudo da realidade para sua ficção. Há dois anos, esteve na Suécia, onde viveu um romance com uma loira quarentona de “tetas magníficas” a quem teria ensinado a fazer amor -e a história é contada, com detalhes, em Animal Tropical, o que causou problemas. “Ela me enviou um bilhete dizendo: ‘Espero ter forças para perdoar e esquecer’. Eu mandei um postal de volta com as seguintes palavras: ‘Deixe de tragédia que a vida é uma comédia'”, ri. Na esquina, encontramos três travestis bastante jovens e atraentes. A “triguerita” (moreninha) Joyce impressiona o cubano com sua feminilidade. Gutiérrez pede que posem para fotos e aproveita para passar a mão na cintura da morena, a quem pede um beijo.

Sentamos na calçada de um bar. Outra vez ele ordena uma caipirinha. Conta que vive bem em Havana, mas que no princípio dos anos 90, quando estourou a crise econômica em Cuba, chegou a sobreviver, famélico e magérrimo, com apenas US$ 3 por mês. Nessa época, uma amiga argentina lhe enviava pacotes com canetas, sabonete, lâminas de barbear e outros objetos, que sua mãe revendia para comprar produtos como feijão, arroz e carvão. Gutiérrez escrevia um artigo mensal para uma revista cubana e, com tempo, resolveu sentar, garrafa de rum ao lado, para escrever suas histórias. Escreve à mão. Depois, datilografa tudo numa antiga máquina de escrever.

Em 1994, já tinha prontos os três livros de contos que compõem a Trilogia quando uma amiga francesa levou os manuscritos de Havana para Paris. “Ela não quis publicá-los porque é esquerdista demais, mas encaminhou o livro para a agente Anne-Marie Vallat, em Madri.” Finalmente, em 1997, Trilogia Suja de Havana era publicado na Espanha, pela prestigiada editora Anagrama. Em pouco tempo, os jornais espanhóis saudariam o livro como um dos melhores lançamentos do ano e comparariam Gutiérrez a Henry Miller e Charles Bukowski.

Mas o assunto política é um tabu. “Prefiro me impor como escritor”, diz. Sua estratégia parece estar funcionando: embora os livros “sujos” não tenham sido publicados em Cuba, no final do ano passado conseguiu editar um romance, Melancolia dos Leões, e negocia para que contos da Trilogia possam ser lidos na ilha. Sobre Fidel Castro, fala apenas que gostaria muito que lesse seus livros e o chamasse para bater um papo. “Sei que Gabriel García Márquez leu, e não seria difícil que um dia levasse um exemplar para ele ler também”, diz.


Nossa última parada é a boate de striptease onde Gutiérrez se proclamou rei de Havana. Somos atraídos para lá pelo forró que ouvimos da porta, sinal de muita animação, e não nos equivocamos. As meninas, com pouca roupa, misturam-se aos fregueses da casa, na pista de dança ou nos sofás laterais. A jaula com a dançarina nua ouriça o cubano.

Logo, uma mulata, em topless sob uma plataforma, enfeitiça Gutiérrez. Para piorar a situação, o nome dela é Bárbara, como sua filha de dois meses e sua “mãe” na “santería” (o candomblé cubano). O escritor faz o que pode. Baila agarrado a ela, acaricia o bumbum arrebitado de Bárbara, lambe o suor que escorre das costas da mulata, desliza os dedos aqui e ali. Meia hora depois, nos chama: “Vamos, vamos”. E dispara em direção à porta.

Estamos curiosos. O que houve? A mulata Bárbara estava “naqueles dias” e se recusou a ir para o hotel com Gutiérrez. Rimos muito. O “rei de Havana” vai dormir sozinho, indignado.

*Reportagem originalmente publicada no jornal Folha de S.Paulo em 26/05/2001.

 


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(6) comentários Escrever comentário

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Adalberto em 07/02/2013 - 17h59 comentou:

Pedro Juan parece vaidoso, mas é sensacional! O quanto vc achou que ele estava interpretando o personagem, em vez de ser ele mesmo?

Responder

Fred Di Giacomo em 27/09/2013 - 12h52 comentou:

Poxa, muito legal a reportagem, parabéns! "Trilogia Suja de Havana" é realmente um ótimo livro e Pedro Juan Gutiérrez parece ser bem engraçado como pessoa

Responder

ceci c. lohmann em 13/01/2014 - 09h32 comentou:

gostei muito da reportagem,por ser fiel ao vivido,e por me apresentar,de forma realista,a este autor…Ceci

Responder

Diego Guimarães em 19/04/2014 - 00h19 comentou:

Li El Rey de la Habana na faculdade, e foi uma leitura tão chocante quanto reveladora para os meus 20 pudicos anos de então. Obrigado pela publicação, Cynara, quase não se vê gente realmente interessada na nossa literatura americana.

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Henrique em 28/05/2014 - 21h00 comentou:

É impressionante como alguém pode ler os terríveis relados de Gutierrez e ainda permanecer esquerdista. O que ele narra não é o submundo, e sim a vida cotidiana de Havana, onde a sobrevivência diária é extremamente árdua. A prosa dele não revela mais sobre a miséria humana do que sobre o fracasso do socialismo e a violência desse regime desumano.

Responder

edmalux em 30/12/2014 - 22h52 comentou:

Esse tal de Henrique me,sabe o que fala. Parece que acha possível um esquerdista mudar suas convicções ideológicas a partir da leitura de um romance. Quanta ingenuidade!

Mas Gutierrez é um escritor criativo. Dos bons!

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