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Referendo na Catalunha desmascara o autoritarismo na Espanha

A virada autoritária da Espanha tem origem na falsa transição para a democracia e se agravou com um governo de direita que decide tudo por decretos

Um rei eleito por um ditador: Juan Carlos e Franco em 1975
The Conversation
13 de novembro de 2017, 11h13

Por Monica Clua Losada

Tradução Mauricio Búrigo*

Há muito me preocupo com o crescimento do autoritarismo na União Europeia.

A repressão violenta do governo espanhol durante o referendo da Catalunha em 1° de outubro é a mais recente crise a desafiar as instituições da UE. Vários estados-membros estão se defrontando com sérias questões quanto à soberania territorial. Pensem no referendo escocês para deixar o Reino Unido e as questões que vieram à tona com a votação do Brexit do lado de lá da fronteira irlandesa.

A Catalunha experimentou um nível de brutalidade policial poucas vezes visto em democracias desenvolvidas. Mais de 800 pessoas ficaram feridas, das quais mais de 100 foram hospitalizadas. Todavia, numa rara aparição televisionada, o rei Felipe VI exprimiu total apoio às ações do governo espanhol.

Enquanto estudiosa de política espanhola, eu temia que isto desse azo à possibilidade de mais repressão e até mesmo da abolição da autonomia da Catalunha, o que acabou acontecendo.

Por que o governo espanhol reagiu com uma repressão tão severa? Para responder essa questão, talvez valesse a pena voltar mais de 40 anos.

Quando o ditador espanhol Francisco Franco morreu em 1975, forças pró-democracia temiam um novo golpe militar. Elaboraram então cuidadosamente a Constituição de 1978 da Espanha a fim de assegurar a estabilidade, em vez de provocar uma mudança radical na esteira do autoritarismo.

Desde 2010, o órgão judicial espanhol conhecido como Tribunal Constitucional tem refutado muitos artigos de legislação aprovados pelo Parlamento Catalão

A transição para a democracia acarretou crescente liberdade política a grupos que se opuseram a Franco e foram perseguidos por sua ditadura. Mas também incorporou grupos e funcionários autoritários existentes dentro do Estado. Incluíram os militares, a igreja e as estruturas de estado franquistas que existiam durante a ditadura –tais como o judiciário, a polícia e o funcionalismo civil.

Com a Constituição, e os acordos subsequentes em 1981 e 1992, a Espanha se organizou em 17 comunidades autônomas. Cada qual possui seus próprios poderes executivos, legislativos e judiciários. Líderes mundiais proclamaram a Espanha como um modelo ideal de transição pacífica para a democracia. Porém, sua ênfase em inclusão em vez de mudança significou que as demandas por autodeterminação seriam encerradas. O artigo 155 da Constituição especifica que, se uma comunidade autônoma atuar contra o interesse geral do Estado, ela pode ser suspensa pelo Senado.

A Catalunha, ao longo de anos de negociação, tem mantido um nível relativamente alto de autonomia em relação à Espanha. O governo catalão tem autoridade sobre o serviço de saúde pública, a educação, a polícia local e muitas outras áreas.

Contudo, desde 2010, o órgão judicial espanhol conhecido como Tribunal Constitucional tem refutado muitos artigos de legislação aprovados pelo Parlamento Catalão. Isso é o oposto dos EUA, onde a Suprema Corte delibera sobre assuntos constitucionais. Na Espanha, o Tribunal Constitucional derrubou decisões políticas tomadas pelo Parlamento catalão, tais como projetos de leis de emergência de habitação e escassez de combustível e o Estatuto catalão de 2006. Isto fortaleceu o desejo da Catalunha de obter legítima independência da Espanha.

Muitas vezes, o Tribunal Constitucional tem atuado, além disso, em acordo com o gabinete executivo espanhol, levando muitos a questionar a divisão de poderes entre os dois. Dez membros do Tribunal Constitucional, formado por 12 pessoas, são nomeados políticos. Os outros dois são indicados pelo Conselho Geral de Poder Judicial –o órgão encarregado de supervisionar o judiciário na Espanha. O conselho também é, em sua maioria, nomeado politicamente. Enquanto isso, o Gabinete Executivo espanhol tem-se recusado, desde 2011, a negociar com suas contrapartes catalãs em questões que tenham a ver com mais autonomia.

Evidência posterior da virada autoritária do governo espanhol é a aprovação de leis repressivas, tais como uma popularmente conhecida como Lei da Mordaça

De fato, desde 2011, o primeiro-ministro espanhol Mariano Rajoy e seu ministério têm governado principalmente por decretos, o que não requer interposição da parte legislativa. Por exemplo, o primeiro governo de Rajoy (2011-2015) aprovou 33,8% de sua legislação por decretos. Compare-se isso a uma quantidade de 20% do período anterior em que o mesmo partido esteve no poder (2000-2004).

Evidência posterior da virada autoritária do governo espanhol é a aprovação de leis repressivas, tais como uma popularmente conhecida como Lei da Mordaça (“Ley Mordaza”, em espanhol), em 2015. A lei criminaliza muitas formas de protesto e impõe multas elevadas. O governo alegou que ela protegeria a ordem pública. Esta lei, e o uso de força excessiva pela polícia na Espanha, têm sido denunciadas repetitivamente por organizações internacionais, tais como a Anistia Internacional.

O racha entre a Catalunha e o Estado tem também sua raiz na crise financeira mundial de 2008, que atingiu a Catalunha e a Espanha de maneira particularmente dura. O povo sofreu com execuções de hipotecas de habitações, desemprego em massa (sempre acima dos 20% desde 2011) e cortes profundos em gastos públicos. Desde 2011, a crise econômica se tornou uma crise política. Escândalos de corrupção envolvendo o partido governante e até mesmo a monarquia causaram indignação profunda entre a população.

A reação sempre foi mais forte na Catalunha, onde muitos movimentos contra a austeridade se originaram. Eles têm acarretado manifestações massivas, ocupações de praças e o fomento de movimentos sociais de forte apelo popular, tais como a Plataforma de Pessoas Afetadas pelas Hipotecas.

Os catalães têm protestado com regularidade. Manifestações de mais de 1 milhão de pessoas tornaram-se norma. Em 9 de novembro de 2014, a Catalunha realizou uma “consulta pública” que o Tribunal Constitucional julgou ilegal. A votação pretendia ser um referendo precedente e atraiu mais de 2,5 milhões de votantes, no que pode ser considerado o maior protesto organizado de desobediência civil da Europa.

A reação da União Europeia ao autoritarismo depende de o estado-membro estar no Oeste ou no Leste?

Para muitos catalães, o voto de 1° de outubro tinha de ser diferente do anterior, porque sentiam que era hora de encontrar outro caminho adiante, dada a recusa da Espanha de negociar. A violência e o caos decorrentes, que foram parcamente noticiados pelos canais de TV públicos da Espanha, mostram um governo indisposto a lidar com a dissensão e preparado para violar as instituições democráticas de uma região e seu povo. Embora a constituição não conceda o direito de secessão, a mudança constitucional não é inaudita em democracias modernas, incluindo a Espanha.

A relutância da UE em se envolver deixou um vácuo de liderança. A União Europeia atuou em resposta a outros estados-membros que recorriam ao autoritarismo dentro dela, tais como a Hungria. Podemos agora nos perguntar: a reação da UE ao autoritarismo depende de o estado-membro estar no Oeste ou no Leste?

Monica Clua Losada é professora Associada em Economia Política Mundial na Universidade de Rio Grande Valley, Texas

*PAGUE O TRADUTOR: Gostou da matéria? Contribua com o tradutor. Todas as doações para este post irão para o tradutor Mauricio Búrigo. Se você preferir, pode depositar direto na conta dele: Mauricio Búrigo Mendes Pinto, Banco do Brasil, agência 2881-9, conta corrente 11983-0, CPF 480.450.551-20. Obrigada por colaborar com uma nova forma de fazer jornalismo no Brasil, sustentada pelos leitores.

 

 

 


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Jefferson em 16/11/2017 - 01h54 comentou:

Engraçado que a senhora sempre fala em manipulação e coloca um artigo como esse no seu blog.
As 800 pessoas feridas foram “fabricadas” pelo serviços de saúde da Catalunha. Qualquer pessoa que tenha se ferido naquele dia foi catalogada como ferida por confronto com a polícia. Teve um caso famoso de uma mulher que disse que lhe quebraram os dedos da mãos e os curativos apareceram de um mão para outra. Um verdadeiro milagre! E uma foto de uma senhora com o rosto ensanguentado com sangue falso. Pelo jeito o pig que você tanto critica esta fazendo escola por aqui.
Oh! Por que a Espanha suprimiu a autonomia da Catalunha? Será que é porque os governos de qualquer pais que se preze devem defender a integridade territorial? Ou será que é porque os xenófobos nacionalistas do governo catalão descumpriram todas as leis. Oh! Que malvado Reino de Castela.
A articulista acha um absurdo um pais vetar a secessão de uma parte do seu território? Em quais outros países da Europa isso é possível? O nível de cinismo desse artigo é tão grande que essa mulher pode ganhar um premio na Globo.
Por que a Catalunha deveria ter mais autonomia do que as demais comunidades autônomas? O socialismo moreno não prega a igualdade? Ou não vem ao caso?
A “lei da mordaça” foi o nome dado a PEC 37 durante as manifestações de 2013. Uma lei extremamente importante para disciplinar o ministério publico e os órgãos de investigação, que a rede globo, junto com as camisas verde amarelas enterraram em 2013. A lei espanhola é muito, mais muito, parecida com essa lei.
Agora deixa ver se eu entendi! No Brasil é bom e na Espanha não é! Por que? Estou curiosíssimo.
É verdade mesmo que o movimento contra a austeridade e contra as hipotecas foi mais forte na Catalunha. O que não se diz nesse artigo é que os Mossos de Esquadra (policia catalã controlada pelos nacionalistas) reprimiu brutalmente as manifestações. Aproveitaram até as fotos de 2010 2011 2012 para usarem como se tivessem ocorrido em 2017. Uma manipulação padrão Vênus platinada.
O Rei Juan Carlos I era herdeiro do conde de barcelona que por sua vez foi herdeiro de Afonso XIII era a ordem natural de sucessão com ou sem Franco. O Ditador Franco escolheu um sucessor que achou que poderia preservar seu legado e o Rei desmontou toda a estrutura do franquismo por dentro, de forma muito melhor ao o caos que foi a transição do Salazarismo em Portugal. Alias em Portugal a lembrança de Salazar nas ruas, monumentos e na mídia é muito mais presente do que a de Franco na Espanha. Mas como Portugal é uma República tudo bem né!
Feliz golpe de estado de 15 de dezembro de 1889!

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Jefferson em 16/11/2017 - 01h57 comentou:

Sugiro um post a respeito da queda o ditador do Zimbábue. Em comemoração ao aniversario do golpe de estado no brasil deram um golpe lá também. O Nícolas Maduro está indignado com a deposição do velho cleptocrata que pilhou o Zimbábue. Um homem de visão sem dúvida!

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