Socialista Morena
Kapital

“Sai da frente, seu jeca!”

Como a indústria do automóvel baniu os pedestres para que os carros pudessem acelerar e se tornar donos das ruas

Cartoon de E.T. Reed na Punch em 1905
Dionizio Bueno
31 de janeiro de 2019, 16h10

“As ruas de Chicago pertencem à cidade, não aos motoristas.”

Parece frase de ativista da bicicleta ou da mobilidade a pé, ou talvez de um urbanista visionário contemporâneo. Mas é de um juiz municipal, em sentença num processo de 1913 envolvendo pedestres e motoristas, cujo objeto era a legitimidade de uso das ruas. Ao olhar de hoje, soa até estranho que uma disputa desse tipo já tenha estado em questão no judiciário. Um dia as ruas já foram, de fato e de direito, das pessoas. A presença do automóvel era objeto de estranhamento e indignação por parte dos cidadãos.

Na década de 1910, época de muitos processos judiciais sobre o direito de uso das ruas, o cenário era exatamente este: bondes, veículos puxados por cavalos, vendedores empurrando seus carrinhos de mão, pedestres caminhando em todas as direções, crianças brincando soltas.

Detroit com as primeiras faixas de pedestre em 1917. Foto: Shorpy Historical Picture Archive

Quando o automóvel chegou, como símbolo supremo da modernidade, encontrou esses obstáculos em seu caminho. As cidades precisariam ser modificadas para o novo meio de transporte. Não só reconstruídas fisicamente, pelo alargamento das vias e transformação de áreas verdes em avenidas e estacionamentos, mas também reconstruídas socialmente, mudando concepções quanto ao uso do espaço público e segregando os pedestres para que as ruas passassem a ser espaços exclusivos dos veículos motorizados. Essa reconstrução social é analisada por Peter Norton, professor de história da tecnologia na Universidade de Virgínia (EUA). Seu artigo Street Rivals: Jaywalking and the Invention of the Motor Age Street, fartamente embasado em documentos, conta a história de como as pessoas foram removidas das ruas para que os automóveis pudessem acelerar.

A questão principal era exatamente essa, acelerar. Muito mais que bandeira de campanha de prefeito que defende irredutivelmente a velocidade mesmo que isso custe vidas humanas, a possibilidade de acelerar é a razão de existir de um automóvel. Mercadologicamente falando, o que justifica a compra de um automóvel é a maior velocidade em comparação aos outros meios de transporte existentes. A indústria automobilística estava ciente de que só venderia carros se eles pudessem ser mais rápidos que os modais urbanos pré-automóvel: bonde, bicicleta, charrete, caminhada.

Será que um pedestre atravessando fora da faixa, em meio aos automóveis travados no trânsito, é tão perigoso quanto um motorista falando ao telefone enquanto dirige?

Por outro lado, o carro é uma máquina perigosa e já chegou matando gente. Naquela época, qualquer um concordaria que ruas não são lugar para trafegar em velocidade e que alguém que dirigisse mais rápido que um bonde seria totalmente responsável pelas consequências. Dentro da construção social então vigente sobre as ruas, o automóvel era o invasor. Nas manifestações, faixas traziam imagens de carros caricaturados como demônios mortais, pôsteres mostravam mães segurando no colo crianças vitimadas por automóveis. A sociedade demandava pela regulação do tráfego de automóveis. Em alguns estados, os limites de velocidade eram de 16km/h, ou até menos. Como era difícil impor e fiscalizar esses limites, e as pessoas continuavam morrendo, surgiram propostas de instalação obrigatória nos automóveis de dispositivos mecânicos que limitassem sua velocidade.

O lobby do motor gelou. Percebeu que era preciso fazer com que os pedestres assumissem a responsabilidade por sua segurança, ou seja, transferir a culpa dos motoristas para os pedestres. Apareceram as primeiras leis regulando o comportamento dos pedestres, mas elas tinham pouco efeito. As travessias eram ignoradas. Muitos desrespeitavam as ordens dos policiais a esse respeito. Os cidadãos ficavam indignados ao serem multados ou presos por causa de uma prática tão normal e costumeira: andar pela rua.

Quando os casos chegavam à justiça, os magistrados ficavam do lado dos pedestres, e os motoristas eram forçados a reconhecer os direitos de quem andava a pé. Tentativas de proibir que os pedestres atravessassem em qualquer lugar ou até que crianças brincassem nas ruas eram sistematicamente negadas. Era muito difícil sentenciar contrariamente a práticas tão antigas e consolidadas. A via jurídica, sozinha, não foi suficiente para modificar velhos hábitos. A mudança demandaria o uso de outros recursos.

A palavra jaywalker era usada por alguns motoristas contra pessoas que atrapalhavam a passagem nas ruas. Originalmente, jay era simples, da roça, “jeca”. Começava ali a cultura da culpabilização das vítimas do trânsito

Circulava na época uma palavra, jaywalker, usada por alguns motoristas contra pessoas que atrapalhavam a passagem nas ruas. Originalmente, jay era uma pessoa ingênua e simples, da roça, que desconhece os costumes urbanos. Uma palavra informal e pejorativa, usada com intenção de agredir. Algo equivalente ao jeca, na cultura brasileira. Portanto jaywalker é aquele que não sabe como andar na cidade, caminha erraticamente pelas ruas sem observar o tráfego, atravessa em qualquer lugar, estorva o motorista. Em oposição aos ares de modernidade e tecnologia que os automóveis pretendiam trazer, jaywalker, com sua conotação de coisa rural e antiquada, foi o conceito perfeito para os esforços de reeducação empreendidos pelos interesses automotivos.

Cartaz de propaganda contra o pedestre ilustrado por Isadore Posoff, 1937

A palavra começou a aparecer em jornais, nas declarações de formadores de opinião. Foi usada também em cartazes e em folhetos distribuídos por escoteiros, que abordavam as pessoas nas ruas para lhes ensinar a se comportarem direitinho. Havia encenações nas ruas, nas quais palhaços faziam o papel de jaywalkers para então receber a chacota do público. O Chicago Motor Club tinha uma coluna no jornal, na qual “especialistas” concluíam que pedestres imprudentes eram os responsáveis por “quase 90%” dos atropelamentos. Começava ali a cultura de culpabilização das vítimas do trânsito, que vigora até hoje.

A palavra jaywalking era usada com frequência cada vez maior e em 1924, segundo Norton, apareceu pela primeira vez num dicionário estadunidense, o que oficializou sua nova definição na era do motor: “Pessoa que atravessa uma rua sem observar a regulação de tráfego para pedestres”. Por obra de uma associação automobilística, a educação para a segurança chegou às escolas. Em Detroit, um menino de 12 anos foi julgado publicamente, sob acusação de jaywalking. Perante uma plateia de 1300 crianças, ele foi condenado por um júri de estudantes e sentenciado a lavar as lousas da escola durante uma semana.

Imagem do artigo de Peter Norton: “Não seja um Jaywalker”

Los Angeles foi pioneira na implantação efetiva da mudança de hábitos. Houve massiva distribuição de folhetos sobre a proibição do jaywalking e, na semana anterior à entrada em vigor da nova regulamentação, todas as rádios divulgavam diariamente “notas informativas” sobre o assunto. Durante algum tempo, os policiais ainda não multavam os infratores. Usavam uma estratégia muito mais eficiente: faziam com que passassem vergonha. Apitavam enfaticamente para os jaywalkers, atraindo para eles a atenção de todos os passantes, e então ordenavam que voltassem para a calçada.

Por meio da exposição ao ridículo, a medida tinha efeito não apenas sobre os jaywalkers, mas também sobre aqueles que testemunhavam a cena. Abrindo mão por um tempo das sanções oficiais, como multas e prisões, a polícia de Los Angeles evitou que casos chegassem aos juízes que, com base na lei comum, fundamentada nos costumes, poderiam questionar a legalidade do controle de pedestres. No início do ano seguinte, um repórter observou que os pedestres já haviam aprendido a se comportar como veículos, obedecendo à sinalização de tráfego.

Eles conseguiram. Além de tirar os pedestres de onde sempre estiveram, a carrocracia formou o consenso de que as ruas são para os carros e, de quebra, que pedestres fora do lugar são culpados pelos atropelamentos. Por mais que muitas leis e planos urbanísticos hoje falem em prioridade ao pedestre, as cidades ao redor do mundo fazem diferentes escolhas quanto a quem de fato tem prioridade no espaço público. De um lado temos os Estados Unidos, onde muitas cidades mantêm os pedestres sob estrito controle, punindo o jaywalking com multas que podem ser bastante caras. De outro, temos a Holanda, onde a ideia de jaywalking simplesmente não faz sentido. Com velocidade máxima de 30km/h nos centros urbanos, ali é permitido atravessar a rua em qualquer lugar do quarteirão. A prioridade para os pedestres é praticada pelos motoristas e, caso necessário, garantida pelos agentes de trânsito.

Por aqui, a fiscalização não parece tão comprometida com a segurança dos pedestres. O Painel da Mobilidade Ativa, um estudo inédito realizado pela Ciclocidade – Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo em parceria com a Cidadeapé – Associação pela Mobilidade a Pé em São Paulo, apresenta e sistematiza dados detalhados sobre lesões e mortes no trânsito e sobre a fiscalização de infrações na cidade, obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação, referentes ao período de 2014 a 2017. O estudo mostra uma evidente priorização, por parte dos agentes fiscalizadores, da segurança de quem está dentro dos veículos motorizados em detrimento da proteção a pedestres e ciclistas. Por exemplo, os enquadramentos do agrupamento ‘Ameaçar ou deixar de dar preferência a pedestres e ciclistas’ correspondem a 0,8% das autuações feitas manualmente pelos agentes no período, ou a 0,2% do total se forem consideradas também as autuações por meio de fiscalização eletrônica.

No portal do estudo, os dados de fiscalização estão organizados num painel interativo onde o usuário pode selecionar as informações que lhe interessam e, eventualmente, cotejá-las com aquilo que observa na realidade concreta das ruas. Verá que o número de autuações manuais por ultrapassar um sinal vermelho é 15 vezes maior que o número de autuações por desrespeito à travessia de pedestres (o segundo enquadramento da tabela acima). Agora tente imaginar (ou de fato observar) um cruzamento real da sua cidade. Parece razoável que para cada 15 motoristas que passam pelo sinal vermelho existe apenas um motorista que desrespeita pedestres atravessando pela faixa? Qualquer pedestre sabe como é frequente o desrespeito à travessia, mas parece que os agentes de trânsito de São Paulo não estão muito preocupados com isso.

Mais um número assustador entre os dados de autuações: as infrações do agrupamento ‘Velocidades ameaçando pedestres e ciclistas’ correspondem a 0,004% das autuações no período! Dirigir em velocidade perto de ciclistas, escolas, hospitais, aglomerações e locais de embarque e desembarque são comportamentos que a lei teoricamente proíbe, mas a forma de imposição da lei pelos agentes de trânsito autoriza. Coibir esses gestos agressivos dos motoristas não está entre as suas prioridades. Pouca diferença faz se isso acontece por determinação superior ou por causa da cultura carrocrata introjetada no próprio funcionário. A proteção aos pedestres e ciclistas parece ser uma missão secundária dos órgãos fiscalizadores.

Na Holanda, a ideia de jaywalking simplesmente não faz sentido. Com velocidade máxima de 30km/h nos centros urbanos, lá é permitido atravessar a rua em qualquer lugar do quarteirão

Mesmo nesse cenário de desrespeito institucionalizado, está prestes a entrar em vigor a aplicação de punições a pedestres e ciclistas. Além de descumprir a função pública de garantir a sua segurança, a gestão de trânsito passa agora a tratá-los oficialmente como obstáculos. Não basta que muitos deles estejam pagando com a vida pelos abusos dos motoristas. Eles agora também estarão sujeitos a pagar multas por causa de gestos que, muitas vezes, têm o objetivo de melhorar a própria segurança ou compensar os transtornos que um espaço público saturado de automóveis traz a quem escolhe ou precisa viver sem eles.

Será que um pedestre atravessando fora da faixa em meio aos automóveis travados no trânsito é comparável, em termos de perigo, a um motorista falando ao telefone enquanto dirige? Pelo menos enquanto o poder público não consegue (ou não quer, para evitar aborrecimentos aos motoristas) garantir a segurança aos pedestres e ciclistas por meio da imposição de leis em vigor, é absurdo punir quem está do lado mais vulnerável. Ter que andar um pouco mais para atravessar pela faixa seria um esforço bem pequeno em troca do total respeito dos motoristas à vida e aos direitos. Sem esse respeito, a punição é inaceitável.

Obrigá-los a ir para a calçada? Foto: Heloisa Ballarini/SECOM

Faz um século que removeram as pessoas das ruas, abrindo o caminho para os carros. Passado o deslumbramento que acompanha a chegada de qualquer novidade tecnológica, hoje estamos um pouco mais cientes de que junto com a velocidade prometida (e raramente praticável nas cidades congestionadas) vêm também grandes custos humanos, materiais, sociais e urbanísticos. As ideias e as práticas poderiam ter amadurecido nesse sentido. Porém, a gestão de trânsito parece continuar trabalhando para proporcionar à indústria automobilística as condições que garantem sua demanda de mercado. Com essa abordagem, pedestres e ciclistas ainda são, como há cem anos, obstáculos a serem tirados da frente do progresso.

Texto publicado simultaneamente no blogue do autor.

 


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