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Feminismo

Senado argentino proíbe aborto legal e “libera” aborto clandestino

Discursos dos senadores argentinos contra o aborto eram similares ao mais tapado fã de Bolsonaro, mas mulheres não vão desistir

Foto: La Garganta Poderosa
Martín Fernández Lorenzo
09 de agosto de 2018, 20h23

O Senado argentino reverteu a votação de junho da Câmara dos Deputados nas primeiras horas desta quinta-feira e barrou a legalização do aborto no país: 38 votos contra 31 contra a legalização e em favor do aborto clandestino. Curiosamente, o presidente Mauricio Macri, que abriu o processo de discussão dois meses atrás, apenas se pronunciou contrário e quase não comentou sobre o assunto. Seu partido, no entanto, foi o que teve mais votos contra a legalização, 17 e apenas 8 a favor, seguido pelo PJ, com 13 contra e 12 a favor. Outro fato curioso é que das 28 mulheres senadoras, metade delas votou contra.

O Senado claramente não estava à altura das circunstâncias, nem representando a vontade do povo nem intelectualmente, já que senadores e senadoras diziam barbaridades dignas da Idade Média. Eles não apenas fecharam os olhos para a tremenda mobilização feminista em todo o país, a Maré Verde que tomou as ruas pacificamente para reivindicar seus direitos, talvez o movimento mais revolucionário da última década. Nem a recente morte de Liliana Herrera, de 22 anos, em decorrência de um aborto malsucedido em Santiago del Estero foi capaz de sensibilizar os senadores.

Alguns exemplos: A senadora do PJ Cristina López Valverde disse que não leu o projeto de 13 páginas e por isso  votou contra:”este voto negativo é dado porque sou conservadora, é dado porque parei no tempo, é dado porque tenho meus anos, não sei”.

O senador do Cambiemos, Esteban Bullrich, seria cômico se não fosse trágico: “O que é a vida? A vida é o que nos faz ficar aqui hoje, sem vida o resto não é importante. A vida é tão importante que sem vida não há Pacto de San José da Costa Rica, não haveria Constituição nacional, não haveria senado. Não haveria sanção de leis, não há nada “. E mais: “Sem maternidade não há futuro”; “O aborto não será menos trágico em uma sala de cirurgia”.

José Mayans, do PJ, não quis ficar atrás e teceu argumentos semelhantes ao do mais tapado seguidor do brasileiro Bolsonaro: “Imagine se a mãe de Vivaldi, por exemplo, lhe tivesse negado a o direito de existir, ou que a mãe de Mozart lhe tivesse negado o direito de existir, ou Leonardo Da Vinci, ou Michelângelo… Agradeço à minha mãe que me deu o direito à existência.”

Mas, sem dúvida, o mais insano foi o senador justicialista por Salta Rodolfo Urtubey, que argumentou em defesa do estupro, dizendo que ele pode não ser violento quando acontece dentro de casa: “Há casos em que o estupro não tem aquela configuração clássica de violência sobre as mulheres, às vezes o estupro é um ato não voluntário com uma pessoa que tem absoluta inferioridade de poder diante do abusador, por exemplo no abuso intrafamiliar, onde não se pode falar de violência, tampouco de consentimento”.

“Eu lembro, e segue a tradição em muitos casos, que quando alguém descobre que uma mulher está grávida, vai com alegria felicitá-la, lhe dá uma planta, para que esta planta vá crescendo e ela veja a imagem de seu filho. Estas são as coisas que não podemos perder, por isso vou votar contra”, disse Alfredo de Angeli, do Pro.

No entanto, nem todos eram oradores ignorantes da lei que estavam votando, e alguns discursos puderam ser resgatados em favor do Aborto Legal. Um dos mais emocionantes e sinceros foi o de Nancy Gonzalez, senadora do PJ: “Eu sou católica, mas quando votaram em mim não foi porque eu era católica, mas porque eu legislei para todos os argentinos. Eu faço isso por causa da profunda convicção que o peronismo me deu: ampliação e conquista de direitos para todos e todas.”

“Estou irritada com a hipocrisia da Igreja Católica, que fala em defender as duas vidas, mas não fala de padres pedófilos, nós não somos assassinas ou genocidas, somos a favor da vida, não queremos mais mulheres mortas por abortos clandestinos”, disse Nancy. “Para aqueles que morreram escondidos e para aquelas mulheres que hoje querem decidir sobre seus corpos, que seja lei.”

Também o senador da Frente Ampla Pino Solanas fez um discurso emotivo e esclarecido: “Hoje não é uma derrota. Eu digo às meninas que estão lá fora que isso é um triunfo monumental, porque conseguimos colocar no debate nacional, elas conseguiram! Elas! Anos de mobilizações!”, disse Solanas. “Que ninguém se deixe levar pela cultura da derrota: meninas, bravo, vocês ergueram alto a honra e dignidade das mulheres argentinas. Esta causa, esta noite tem uma pequena pausa… Mas, dentro de algumas semanas, todas de volta de pé, porque se não sair hoje, no próximo ano vamos insistir de novo, e se não sair ano que vem, vamos insistir no outro! Ninguém será capaz de parar a onda da nova geração, será lei, haverá uma lei contra todas as probabilidades.”

Solanas também denunciou que não foi permitida a entrada no Senado de Nora Cortiñas, 88 anos, uma das fundadoras das Mães da Praça de Maio. A atriz Dalma Maradona, filha do craque, tuitou a frase em  que ela demonstra a hipocrisia da mesma direita que apoiou a ditadura militar em relação ao aborto: “Durante a ditadura, a igreja não se importava com as duas vidas. Davam choques nas vaginas das grávidas, abençoaram os vôos da morte. De que duas vidas falam?”

Já com a definição encerrada, a ex-presidenta e atual senadora da Unidade Cidadã Cristina Kirchner, que havia afirmado anteriormente que não apoiava o aborto, votou a favor. “As milhares de garotas nas ruas me fizeram mudar de ideia. Eu não quero ficar num lugar que quando os jovens se lembrem de mim, se lembrem do jeito que costumam se referir àqueles que nunca entendem o que acontece”, disse Cristina.

Para encerrar uma noite triste, a presidente do Senado e vice-presidente da Nação, Gabriela Michetti, que já havia dito tristemente que “não teria permitido” o aborto em casos de estupro e sugeriu opções para aqueles que devem enfrentar uma gravidez indesejada nessas condições (“Você pode desistir para adoção, ver o que acontece com você na gravidez, trabalhar com um psicólogo, eu não sei “), fechou a sessão comemorando: “Vamos, vamos!”

Imprestável. A tristeza nas ruas de Buenos Aires ainda foi fortemente reprimida pela polícia com balas de borracha.

Vitória de Macri, recuo de um povo. Mas o futuro deste país não são os governantes, mas a Maré Verde que inundou as ruas, como Solanas disse:

“Garotas, bravo, vocês elevaram a honra e a dignidade das mulheres argentinas.”

 


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Sergio em 10/08/2018 - 13h45 comentou:

*** Normal numa sociedade a discussão sobre o aborto. Podemos discutir se foi bom ou não para a população da Argentina. Podemos! Há visões a favor e visões contrárias.

A coisa louvável nessa decisão é que foi o congresso, democraticamente, que decidiu! Algo que deveria ser seguido aqui no Brasil. O congresso deveria decidir essa questão e não o judiciário.

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Line em 11/08/2018 - 16h49 comentou:

Com esse congresso tão conservador do Brasil, acho muito difícil a legalização aqui tbm.

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Sergio em 13/08/2018 - 10h31 comentou:

Mas, se o congresso é conservador, cabe aqueles que o querem como uma força progressiva, pelo meio legítimo, através do voto, colocar representantes que sejam progressivos. Infelizmente, eles estão lá, porque a população brasileira quis esse congresso. O povo merece esse congresso? Não! Mas, precisamos, enquanto povo brasileiro, aprender, informar, ler, conversar, instruir-nos e colocar pessoas que estejam sincronizados com nossos anseios.

Especificamente sobre aborto, para quem é a favor e contra, será que temos instruído à população ou cobrado dos parlamentares algum posicionamento?

O que não pode é o STF decidir pelo congresso!

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Tiago em 06/04/2019 - 23h51 comentou:

Respeito todas as opiniões diferentes da minhas, respeito todas as correntes políticas, sou de esquerda. Mas porquê incistir que todos de esquerda são afavor da legalização do aborto? Por causa disso, temos perdido eleições, a direita sabe que a população brasileira é em sua maioria cristã e são pessoas muito símples, bastam eles dizer, a esquerda é comunista, eles são afavor do aborto, é um regime totalitário, basta isso para que a população tenha até raiva dos candidatos de esquerda, além disso, é contraditório, a esquerda deve lutar por igualdade de renda e oportunidade, lutar para que as mulheres tenham acesso a métodos contraceptivos, uma mulher, após fazer aborto pode ter depressão, como fica, serão vários casos que o Estado deve lhe dar, serão mais remédios tarja preta. Ser de esquerda é lutar por mudanças econômicas, é defender penssadores como Charles \Fourier, Saint Simon, Robert Owem e outros.

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