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Sendero Luminoso: uma guerra sem heróis

Trajetória do grupo peruano é uma daquelas páginas da História que costumam causar embaraço às pessoas de esquerda: facínoras que usaram o comunismo para promover carnificinas e oprimir

Abimael Guzmán, o "presidente Gonzalo", ergue o punho no tribunal
Cynara Menezes
16 de dezembro de 2016, 19h02

A trajetória do Sendero Luminoso no Peru é uma daquelas páginas da História que costumam causar embaraço às pessoas de esquerda: facínoras que usaram o nome do comunismo –no caso, o maoísmo– para promover carnificinas e oprimir o povo. Uma das características em comum a estes movimentos ou regimes supostamente comunistas (na verdade totalitários) é que, entre suas vítimas, sempre há… socialistas e comunistas. Foi assim na União Soviética de Stalin e foi assim com o Sendero no Peru.

No gibi Sendero Luminoso – História de Uma Guerra Suja, uma das mais impactantes histórias em quadrinhos lançadas este ano no Brasil, vem à luz uma organização que se impõe pela força bruta e na qual não se vislumbra nada de positivo ou “humanista”. Liderados pelo professor universitário Abimael Guzmán, o “presidente Gonzalo”, com uma ideologia confusa, ao longo de mais de uma década os senderistas mantiveram os camponeses do país aterrorizados sob a desculpa de protegê-los. O Estado peruano, por sua vez, também sob a desculpa de proteger o povo das ações do Sendero, seria responsável pelas mais bárbaras violências contra cidadãos inocentes, mulheres e crianças: estupros, enforcamentos, execuções sumárias, chacinas.

“A Comissão da Verdade e da Reconciliação conclui que a luta contra a subversão reforçou em membros da polícia práticas autoritárias e repressivas pré-existentes. A tortura em interrogatórios e as detenções indevidas, que haviam sido frequentes no trato com a delinquência comum, adquiriram um caráter massivo durante a ação contra-subversiva. Além disso, a CVR constatou que as violações mais graves dos direitos humanos por parte de agentes da polícia foram: execuções extrajudiciais, desaparição forçada de pessoas, torturas, tratos cruéis, desumanos ou degradantes. A CVR condena particularmente a prática disseminada da violência sexual contra a mulher”, diz o relatório da Comissão da Verdade instalada no país entre 2001 e 2003 para investigar os crimes de ambos os lados.

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A violência sexual pelos agentes do Estado era frequente nos anos de “luta contra o terror”

A diferença entre os dois grupos é que os líderes senderistas foram punidos; Abimael Guzmán, capturado em 1992 e hoje com 82 anos, foi condenado à prisão perpétua. Do lado das Forças Armadas e policiais, ninguém sofreu sanções pelas seguidas violações aos direitos humanos, tortura e assassinatos. Os presidentes Fernando Belaúnde Terry e Alan Garcia não sofreram sanções pelas matanças.

Em 2009, o ex-presidente Alberto Fujimori foi condenado a 25 anos de prisão por duas chacinas relacionadas à “luta contra o terrorismo”: no massacre de Barrios Altos, em 1991,  quinze pessoas, inclusive um menino de 8 anos, erroneamente apontados como membros do Sendero Luminoso, foram sequestrados por membros das Forças Armadas; no massacre de La Cantuta, em 1992, nove estudantes e um professor foram torturados e mortos, mas os responsáveis acabaram anistiados por Fujimori.

A Comissão da Verdade chegou à conclusão de que quase 70 mil pessoas morreram nesta guerra sem heróis, 79% delas camponesas. Mais da metade foram vítimas do Sendero Luminoso. “Esta cota tão alta de responsabilidade do PCP-SL (Partido Comunista Peruano – Sendero Luminoso) é um caso excepcional entre os grupos subversivos da América Latina”, destaca o relatório. Do lado do Estado, foram quase 30 mil mortos, mas estes números podem ser ainda maiores, já que a comissão aponta 4600 fossas comuns que não foram exumadas até hoje.

É preciso ter estômago forte para enfrentar as páginas desenhadas por Jesús Cossio em parceria com Luis Rossell e Fernando Villar. Os horrores se sucedem, tanto de um lado quanto de outro. Em nome do quê? De uma sociedade melhor é que não era. Entrevistei o autor, um dos mais festejados quadrinistas do Peru hoje.

Socialista Morena – Você se preocupou em mostrar os dois lados da história. Tanto o Sendero quanto o Estado peruano foram igualmente assassinou ou um foi mais que o outro?

Jesús Cossio – Há diferentes visões quanto a isso. Para começar, alguns consideram que os crimes cometidos pelas Forças Armadas do Estado peruano não são ‘assassinatos’ e sim excessos. O relatório da Comissão da Verdade considera que o Sendero Luminoso cometeu mais assassinatos, ou pelo menos cometeu ações que derivaram em mais mortes. Pessoalmente, creio que as Forças Armadas causaram mais assassinatos e desaparições, pois suas operações eram mais frequentes e tinham uma logística (quartéis, salas de tortura, fornos para queimar restos mortais) estruturada ao redor deste tipo de crimes contra a humanidade.

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SM –  O Sendero Luminoso teve apoio da sociedade peruana em algum momento?

JC – Não é possível falar de “uma” sociedade peruana neste sentido. Como sucede em quase todo lugar, há grandes diferenças devido às classes sociais e a localização geográfica, entre outras questões. Pode se dizer que o Sendero Luminoso conseguiu o apoio de certas comunidades camponesas das zona de Ayacucho e de alguns intelectuais de classe média no começo do que chamavam de sua “luta armada”, porque propunham uma série de mudanças radicais e dar poder aos camponeses. Mas, em um par de anos, ao se mostrarem autoritários e cruéis, perderam parte dessa simpatia.

SM – A esquerda do Peru apoiou o Sendero até quando?  

JC – Não se pode dizer que houve apoio. Alguns consideram que não houve um rompimento suficientemente claro da esquerda partidária com o Sendero nos primeiros anos, ou que houve ambiguidades na maneira como eram vistos. Certamente, logo ficou claro que não havia afinidades, até porque os senderistas assassinaram muitos dirigentes e autoridades de esquerda.

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SM – Em sua opinião, o Sendero Luminoso foi um erro da esquerda ou um sintoma da desigualdade na América Latina? Poderia aparecer em qualquer parte ou só naquele momento no Peru? 

JC – Creio que não se pode dizer que o Sendero Luminoso tenha sido um “erro”. Isso é minimizar seu grau de responsabilidade em tantos acontecimentos nefastos. Por outro lado, não creio que se tenha de satanizá-los ou convertê-los em monstros, mas compreender que coisas contribuíram para gerar este fenômeno. Sem dúvida, uma das causas foi a tremenda desigualdade que há no Peru e a falta de soluções reais.

SM –  Você acha que o Movimento Revolucionário Tupac Amaru (MRTA) foi igualmente sangrento ou há diferenças entre os dois grupos?

JC – A diferença entre ambos grupos é notória, não só em nível ideológico como pelas maneiras de exercer a violência. O Sendero Luminoso cometeu mais crimes letais e exerceu de modo mais vertical e opressor seu poder sobre as populações civis e camponeses.

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SM –  A Comissão da Verdade não conseguiu responsabilizar os militares por suas ações criminosas contra a população civil, só os senderistas. Isto não foi ruim para o país? 

JC – O relatório da CVR apontou responsabilidade das Forças Armadas e do Estado peruano, tanto na execução como no planejamento de crimes. Mas o relatório não tem mandado judicial, só pode apontar as responsabilidades. É a Justiça institucional que deveria executar os processos contra os militares e policiais supostamente responsáveis. Lamentavelmente, a Justiça peruana neste sentido é lenta. Além disso, não costuma haver condenações a militares processados em casos contra os direitos humanos. 

 


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(13) comentários Escrever comentário

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Sara em 04/08/2017 - 10h48 comentou:

Very good <3

Responder

Thiago em 04/08/2017 - 10h49 comentou:

Muito bom !!!!!
Curti muito!!!

Responder

Anonimous em 04/08/2017 - 10h50 comentou:

TOOOOOPY!!!!

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Ayrton Gomes em 04/08/2017 - 10h54 comentou:

Não há palavras para dizer o quão foi bom ler esse texto. Como estou estudando agora, me da uma bela noção do que aconteceu naquela época, vemos o tanto que foi triste a realidade daquela sociedade sob o comando daquele governo!! A respeito da entrevista, foi bem bacana com a repórter não tendo medo de perguntar e sendo fria com cada pergunta. Espero que possa ser publicado mais textos sobre aquele história…..
Saudações de um aluno do Colégio Tiradentes da Polícia Militar – Unidade Betim!
QUERO DEIXAR CLARO TAMBÉM QUE EU TENHO A MELHOR PROFESSORA DE GEOGRAFIA <33

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Aranduy santana em 09/06/2018 - 20h45 comentou:

Para mim, enquanto historiador, é fundamental este tipo de matéria, é creio que deveria se bem mais difundida, principalmente por ter como base epistemológica o materialismo histórico de Marx, este trabalho aponta a forma como movimentos autoritários deturparam as ideias marxistas em benefício próprio, ou seja a opressão do povo e enriquecimento indevido, parabéns a autora.

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Alan em 20/08/2018 - 21h43 comentou:

Faço das palavras do Jesuús Cossio as minhas “não podemos considerar que o SL foi um erro da esquerda porque isso seria relativizar seus crimes”

Considero a questão do Sendero Luminoso uma questão excepcional desenvolvida pela a mente de um não-revolucionário. Guzmam tava longe de ser um “novo Che Guevara” era extremamente desinteressado pela integridade física dos camponeses e me atrevo a dizer que tem todos os traços de um psicopata pela completa falta de empatia com que lidava com as questões humanas e a forma calculista com que levava seus soldados a cometerem as mais absurdas atrocidades.

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WENDER FRANCISCO DE ASSIS em 18/09/2018 - 13h18 comentou:

Como pretensos revolucionários este grupelho deveria ao menos defender a liberdade e a vida do Presidente Gonzalo mesmo que discordassem de sua concepção. O problema é que vocês nem sequer conhecem os documentos do Partido Comunista do Peru (SL) e do maoísmo, são superficiais e rasos nas críticas, apenas fazem coro com as mentiras, calúnias e difamações contra revolucionárias do Estado Fascista do Peru e da grande mídia internacional.

Oportunistas, é o que vocês são!

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Caio Gomes em 23/06/2019 - 14h03 comentou:

“Lamentavelmente, a Justiça peruana neste sentido é lenta. Além disso, não costuma haver condenações a militares processados em casos contra os direitos humanos.” Não é de interesse do estado burguês punir seus próprios meios de se manter no poder. Isso é comum inclusive no Brasil, só não vê quem não quer… Precisamos de uma revolução de nova democracia!

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Silvio Romero em 26/04/2021 - 17h38 comentou:

Quem leu a HQ percebe de forma evidente que a violência da repressão policial é extrema, desproporcional e sistemática.Muito mais sangrenta e rotineira.Essa violência, de caráter racista e classista, se revela também pelo descaso com que a parte letrada, rica e “liberal” é conivente com as atrocidades e com a impunidade.
A violência de ambos contra camponeses parte da premissa de que em uma guerra não há neutralidade possível. Se já era esperada por parte do Estado peruano, é inimaginável por um grupo que busca ser uma alternativa socialista. O SL se comporta como uma unidade militar praticando um golpe de Estado, não conquistando e efetivando o poder popular.
O SL fracassa, pela força da repressão, mas também por não apontar aos camponeses alternativas de vida coletiva, de inclusão, somente aprofundando a violência a qual estavam expostos pela maquina estatal, no seu cotidiano.
O preço da guerra é paga somente pelos camponeses, indígenas, “terrucos” e “cholos”.
Vemos a América Latina em mais uma de suas tragédias, sem heróis. Só vítimas e vilões.
O Peru tem muitos cadáveres que vão cobrar o preço.

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schizociopath em 03/04/2023 - 18h20 comentou:

VIVA O PRESIDENTE GONZALO, MORTE AOS OPORTUNISTAS REVISIONISTAS

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    Cynara Menezes em 04/04/2023 - 14h36 comentou:

    seu nickname é perfeito

anon em 07/04/2023 - 12h47 comentou:

Glória ao marxismo-leninismo-maoísmo!

E principalmente ao maoísmo.

Responder

MLM em 11/05/2023 - 14h35 comentou:

Que texto ruim hein.

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