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The playba revolution. Ou: o fim da consciência de classe

Fotomontagem: Magnesio Design Há poucos dias, em entrevista à repórter Eliane Trindade na Folha de S.Paulo, o apresentador Luciano Huck falou que é hora de sua geração “ocupar os espaços de poder”. Sem tucanês, a palavra “geração” na frase de Huck deveria ser substituída por “galera”. O que o apresentador, no fundo, pensa e deseja […]

Cynara Menezes
12 de abril de 2017, 13h05
playbasrevolution

(Mauricinho Macri, Doria, Donald Trump e Henrique Capriles, atrás)

Fotomontagem: Magnesio Design

Há poucos dias, em entrevista à repórter Eliane Trindade na Folha de S.Paulo, o apresentador Luciano Huck falou que é hora de sua geração “ocupar os espaços de poder”. Sem tucanês, a palavra “geração” na frase de Huck deveria ser substituída por “galera”. O que o apresentador, no fundo, pensa e deseja é que está na hora de gente como ele assumir o poder: quarentões e cinquentões bem nascidos, em geral homens, que estudaram nos melhores colégios e universidades e tiveram todas as oportunidades na vida. Em resumo, playboys. Ou, mais carinhosamente, playbas.

Mas Huck está enxergando mal: os playbas já estão no poder. Nos últimos anos, gente com o perfil de Huck, Aécio Neves e João Doria Jr. tem se mostrado o maior contraponto à esquerda nas Américas. Na Argentina, Mauricio Macri é o protótipo do playba que trabalhou nas empresas da família (riquíssima) antes de entrar para a política. Idêntico perfil tem o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, cujo maior “feito” como empreendedor foi herdar tudo e colocar o nome “Trump Incorporation” no império imobiliário do papai. Como Doria, todos têm um talento todo especial para se autopromover.

Os playbas estão representados na Venezuela por Leopoldo López e Henrique Capriles; no Uruguai por Lacalle Pou; e na Bolívia por Samuel Doria Medina. Em comum, têm o fato de serem brancos, herdeiros diretos da elite latino-americana, com passagens por universidades conceituadas nos EUA e Europa, gostarem de se vestir bem e adorarem falar em meritocracia, embora a ascensão profissional não lhes tenha custado muito suor na testa além de nascer com um sobrenome vistoso (Aécio Neves que o diga).

No Brasil, junta-se aos playbas clássicos o perfil dos burocratas do setor público com salários estratosféricos e privilégios trabalhistas que fizeram e fazem deles, cada vez mais, uma casta em relação à população em geral. Jovem, engravatado, impregnado do jargão jurídico, os playbas do funcionalismo têm seus mais indiscutíveis representantes na turma da Lava-Jato: Sergio Moro, Deltan Dallagnol (o do Power Point de Lula) e Roberson Pozzobon (o das “convicções”).

Tem também a categoria dos mini-playbas: o MBL, formado por filhinhos de papai que nunca trabalharam na vida, mas que conseguiram se transformar em influência para uma parcela da juventude inimiga dos estudos e que só sabe repetir clichês neoliberais, sem base em dados científicos. “Pagamos impostos demais”, “o Estado atrapalha”, “sem CLT o trabalhador ganhará mais dinheiro”… O pior é que colou.

É inegável que os playbas estão em ascensão e que seu discurso está encontrando ressonância em uma parcela significativa da população. Para a esquerda, o mais preocupante, porém, é que esteja ganhando um espaço crescente entre os pobres. A pesquisa feita pela Fundação Perseu Abramo na periferia de São Paulo confirma: o jovem pobre, do sexo masculino, se espelha no playba. Deseja ser playba. Por isso o discurso de Doria chegou até eles de forma tão poderosa.

Os pesquisadores da Fundação entrevistaram pessoas com renda mensal de até cinco salários mínimos em todas as faixas de idade e de ambos os sexos. Algumas das respostas mostram que a esquerda precisa estar mais atenta para o fenômeno dos playbas sobretudo porque o discurso deles contra o Estado, de “meritocracia”, “empreendedorismo” e “ascensão individual” está sendo largamente repetido entre os jovens.

É frustrante para a esquerda se dar conta que em 13 anos de PT não se tenha logrado ampliar a consciência de classe entre os mais pobres. Pelo contrário, ela parece estar em franco processo de extinção, não só aqui como em outros países da América Latina. Como é possível que, após 10 anos com a esquerda governando, quase a metade dos equatorianos, por exemplo, possa ter se sentido seduzida pelo discurso de um banqueiro?

Na periferia paulistana, segundo a pesquisa, a noção de consciência de classe simplesmente inexiste.

Trabalhador e patrão são iguais, quase “colegas”.

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O discurso da “meritocracia” colou…

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…assim como o de que o Estado é “inimigo” do cidadão.

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Público é ruim, privado é bom.

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E lutar por direitos é “mimimi”.

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Apenas o “ódio ao PT” estimulado pela mídia não justifica nem explica esta adesão de parte significativa da juventude da periferia ao ideário dos ricos, sua dissociação do meio onde cresceram, mesmo porque o fenômeno é internacional: pobres elegeram Trump, pobres elegeram Doria. Como foi que ser playboy virou um objetivo na vida de tanta gente? Quando é que tanta gente mal nascida passou a olhar com tanto desprezo sua própria classe, ao ponto de desejar lhe virar as costas e se diferenciar dela o quanto antes?

Para a cientista política Lucia Avelar, pesquisadora do Instituto Cesop da Unicamp, o perfil do tecnocrata veio a calhar em um momento em que os políticos vivem uma fase de baixa. “O sujeito apolítico, competente, que no fundo quer despolitizar a política, é uma estratégia de marketing que casa com o momento de desencanto com a política”, diz. Ela também percebe esse descolamento dos moradores da periferia de suas origens, sobretudo entre os brancos. “O branco das classes mais baixas, pouco educado, tem aspirações de mobilidade, de status mais alto, não quer se misturar com gente da sua própria classe, querem ser ‘desiguais’, se diferenciar dos outros. ‘Tem gente pior do que eu, que vive debaixo da ponte’.”

Este é um dado, aliás, que também aparece na pesquisa da Fundação Perseu Abramo, e confirma que a consciência de classe deu lugar à rejeição às origens.

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Para o filósofo Renato Janine Ribeiro, o espantoso seria o contrário. “Em toda a sociedade há um modelo a ser seguido pelos outros, que é o modelo dos mais ricos, dos mais poderosos, da nobreza nos tempos medievais. O poder é um espetáculo. E sendo um espetáculo, os principais atores são aqueles que são mais prestigiados”, diz. “Numa sociedade de forte consumo, o consumo tem um atrativo gigantesco.”

Enquanto a esquerda vê os playbas como fúteis, vazios, cafonas, sem estofo, e assim os subestima, eles se tornaram uma meta para uma massa que vai muito além da “elite” que o PT sempre criticou, enquanto, paradoxalmente, fazia a inclusão pelo consumo –uma das causas para esse desejo tão fundo de ser playboy, segundo Janine Ribeiro e Lúcia Avelar. “A vitória política numa sociedade democrática depende de conseguir hegemonia na sociedade. Em 2001 e 2002, o PT tinha conseguido isso. Havia uma indignação generalizada contra a pobreza, a miséria. Há um vídeo incrível do Duda Mendonça que mostra gente saindo de uma festa e quando aparece o rapaz de barba e bolsa dizendo ‘ se você se sente mal ao ver isso, em algum ponto você é petista, mesmo que não saiba'”, lembra JanineRibeiro.

“Foi uma tacada de gênio, o PT conseguiu fazer a conquista dessa imagem. Foi ganhando eleições, mas rapidamente perdeu essa hegemonia. Quando a direita conseguiu colocar a corrupção contra o PT, isso significou que a causa ética, que era a marca registrada do PT, foi embora. Não é que o PT foi corrupto tanto quanto dizem, mas esqueceu de lutar pela causa ética. Preferiu a inclusão da miséria, mas encarada de forma pragmática, pouco ideológica”, continua. “E, a partir de 2005, 2006, começa uma troca de hegemonia no país, e foi num crescendo. A hegemonia mudou de lado, e é um pacote inteiro: o combate à corrupção, identificada enganosamente com o PT, e o combate aos programas sociais que vem pela valorização do mérito.”

Em minha opinião, as esquerdas têm se equivocado não por priorizar o coletivo –é assim que tem de ser, claro–, mas por não prestar a devida atenção, ao mesmo tempo, ao indivíduo (leia mais aqui). O que a pesquisa Fundação Perseu Abramo mostra com clareza é que o cidadão periférico, assim como os de classe média, deseja ser “self made man”, crescer por si próprio e se tornar, ele mesmo, patrão. A esquerda deixou a “nova classe trabalhadora” pensar que, ao empreender, se situa automaticamente à direita, o que não é verdade.

Nada mais caro à esquerda do que a imagem de uma pessoa que saiu do nada e chegou a ser “alguém” na vida. Tanto é que há uma distopia: as periferias querem empreender, mas estão mirando em exemplos de “empreendedores” que não o são, de self made men que não o são, já que seus ídolos na verdade nunca deram duro na vida, trilharam o caminho mais fácil até o sucesso. Afinal, saíram com muito mais vantagem do ponto de partida, embora encham a boca para falar em meritocracia.

A boa notícia para o campo progressista é que Lula ainda continua representando um referencial neste sentido. A má notícia é: e quando não houver mais Lula?

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