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Você sabe o que quer dizer “aperreado”?

Usar “aperreado”, “aperreio”, no sentido de estar chateado, incomodado, em uma situação difícil, faz parte do vocabulário corrente dos nordestinos. Mas de onde vem essa palavra, afinal?

Cães devoram índios acusados de sodomia no século 16
Cynara Menezes
14 de janeiro de 2015, 20h16

“Estou aperreado”. “Não me aperreie, menino!”. Quem, no Nordeste, nunca ouviu uma frase assim? Usar “aperreado”, “aperreio”, no sentido de estar chateado, incomodado, em uma situação difícil, faz parte do vocabulário corrente dos nordestinos. Mas de onde é que vem essa palavra, afinal?

Aperreado vem de perro, que, em espanhol, significa cachorro. Aperreamiento (aperreamento, em português), portanto, significa literalmente ser alvo de cães. A palavra surgiu da prática comum entre os conquistadores da América de atiçar cães ferozes contra os nativos para os amedrontar e, em muitos casos, os devorar. Aperreado não é sinônimo de “agoniado”, “aflito”, mas de “dilacerado ou comido por cães”. Não é chocante?

É incrível como um termo aparentemente inocente pode dizer tanto sobre a forma como nos ensinam a história. No passado, os conquistadores foram muitas vezes descritos como “valentes”, “aventureiros”, “audazes”, “heróicos”. E, mesmo quando as crueldades que eram capazes de fazer vieram à tona, os detalhes sórdidos foram omitidos. Um exemplo é o papel (horrendo) que tiveram os cães na conquista.

Tudo indica que os primeiros cães europeus que chegaram à América foram mastins, alanos e galgos espanhóis trazidos por Cristóvão Colombo em sua segunda viagem, em 1493. Até então, só havia cães esquimós e um tipo de cachorro tão manso que vários cronistas os chamavam de “o cão mudo”. Conhecidos na língua náuatle como techichi ou  itzcuintli, foram domesticados pelos índios como cães de companhia, sobretudo para as crianças. Eram encontrados em abundância em todo o México e América Central, mas, de carne saborosa, eram também comidos pelos espanhóis e nativos, e desapareceram.

Já os ibéricos tinham treinamento de cães de guerra. Utilizados para submeter os indígenas, aterrorizando-os psicológica e fisicamente, as feras eram capazes de, ao simples comando de “pega!”, estraçalhar com seus caninos gigantescos dezenas de índios de uma vez. Há cães que passaram à história por sua “bravura”, eufemismo para ferocidade e dentes afiados: Becerrillo, Leoncillo, Amadis, Bruto.

Sobre Becerrillo, um alano descomunal, de pelo castanho, focinho escuro e enormes presas, reza a lenda que, um dia, os espanhóis estavam a burlar-se de uma velha índia e colocaram-na sobre a ameaça do cão. A mulher, apavorada, se dirigiu ao animal, que recebia até “pagamento”, como um soldado mais: “Senhor cão, não me faça mal”, teria dito a índia. O cachorro cheirou a velha, levantou a pata e urinou em cima dela outras versões da história contam que a “lambeu” e também que a “devorou de um só bocado”.

Pintura indígena reproduzida no livro Proceso de residencia instruido contra Nuño de Guzmán, de José Fernando Ramírez, 1847

Apesar de estes relatos terem sido convenientemente deixados de lado na história que nos ensinam nos colégios, os cronistas da época são pródigos em descrições, principalmente Bartolomeu de las Casas (1474-1566). O frei dominicano espanhol, célebre por denunciar em suas obras o sadismo de seus compatriotas, que matavam velhos, adultos e crianças indígenas por diversão, traz alguns depoimentos revoltantes sobre o uso de cães no livro Brevísima Relación de la Destrucción de las Indias, de 1552 (leia aqui). É de chorar:

“Todos que podiam se escondiam nas montanhas e subiam às serras fugindo de homens tão desumanos, tão sem piedade e tão ferozes bestas, extirpadores e inimigos capitais da linhagem humana. Ensinaram e amestraram galgos, cães bravíssimos que, vendo um índio, o despedaçavam em um credo, e se arremetiam contra ele e o comiam como se fosse um porco. Esses cachorros fizeram grandes estragos e carnificinas.”

“Fizeram e cometeram grandes insultos e pecados, e acrescentaram muitas e grandíssimas crueldades mais, matando e queimando e assando e atiçando cachorros ferozes, e depois oprimindo e atormentando e explorando nas minas e em outros trabalhos, até consumir e acabar com todos aqueles infelizes inocentes.”

“Como andavam os tristes espanhóis com cães bravos buscando e aperreando os índios, mulheres e homens, uma índia enferma, vendo que não podia fugir dos cachorros, para que não a fizessem pedaços como faziam aos outros, pegou um trapo e amarrou ao pé um menino que tinha de um ano e enforcou-se numa viga, e não o fez tão rápido que não chegassem os cães e despedaçassem a criança, mas antes de que acabasse de morrer um frei o batizou.”

“Indo certo espanhol com seus cães à caça de veados ou de coelhos, um dia, não achando o que caçar, lhe pareceu que os cachorros tinham fome, e tirou um menino pequeno de sua mãe e com um punhal cortou-lhe em nacos os braços e as pernas, dando a cada cachorro a sua parte; e, depois de comidos aqueles pedaços, jogou todo o corpinho no solo a todos juntos.”

(O "açougue" humano ilustrado por Theodor de Bry)

O “açougue” humano ilustrado por Theodor de Bry

Horror: segundo de las Casas, os espanhóis mantinham inclusive uma espécie de açougue onde penduravam pedaços de índios para dar aos cachorros. Curioso é que os europeus de então se chocavam com a existência de canibais entre os índios da América…

“Já está dito que os espanhóis das Índias têm cães bravíssimos e ferocíssimos, adestrados e ensinados para matar e despedaçar os índios. Saibam todos que são verdadeiros cristãos, e ainda os que não são, se foi ouvida no mundo tal coisa, que para manter os ditos cães trazem muitos índios em correntes pelos caminhos, que andam como se fossem varas de porcos, e os matam, e têm açougue público de carne humana, e dizem uns aos outros: ‘Me dê um quarto de um desses bellacos (“inúteis”, “canalhas”, como se referiam aos índios) para dar de comer a meus cachorros até que eu mate outro’, como se fossem quartos de porco ou de carneiro. Há outros que saem a caçar de manhã com seus cães, e voltando para comer, perguntados como foi, respondem: ‘Foi bem, porque coisa de quinze ou vinte bellacos eu deixei mortos com meus cachorros’.”

Na América do Sul há menos relatos disponíveis sobre os aperreamentos, mas sabe-se que os cães foram usados contra os índios na Colômbia, Venezuela e Peru. No Brasil, fala-se de cães da raça fila utilizados na caça de escravos fugidos. Como será que a palavra “aperrear” entrou de forma tão forte no Nordeste? Ainda não sei, mas prometo descobrir. Desconfio que seja coisa dos bandeirantes, aqueles “heróis” paulistas.

Se eu pretendo que os nordestinos parem de falar que estão “aperreados” por causa dessa origem tão abjeta? Não, embora termos como “judiar” e “denegrir” sejam hoje vistos com reservas, pois trazem embutidos preconceitos de raça. Eu ficaria satisfeita se, ao ouvirem ou pronunciarem este termo, pelo menos viesse à memória das pessoas que milhares de índios foram mortos a dentadas para que “aperrear” entrasse em nossos dicionários.

***

Para saber mais sobre a história dos cães na conquista da América, aqui tem um artigo muito bom (em espanhol).

 

 


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(22) comentários Escrever comentário

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Claudionor Damasceno em 15/01/2015 - 02h30 comentou:

Belo texto.

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João Quinto em 15/01/2015 - 05h23 comentou:

Descobrindo felizmente que sóis baiana, não deixo de sentir uma tristeza por saber que aqui na Bahia, de duas uma, ou escasseiam os bons jornalistas ou apenas não tem espaço numa mídia fechada e pouco esclarecedora e acabam migrando para outros estados.

Ignorava a origem do termo, embora pela semântica faça todo sentido.

Se a colonização, como feita, já me soava deveras horrenda, com essas informações… coitados dos verdadeiros donos destas terras, coitados dos cães, feitos bestas.

Por favor, se descobrir como o termo foi adotado no Nordeste, nos informe. Imagino que tenha algo a ver com o curso do Bandeirantes.

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Selma Cristina em 15/01/2015 - 10h54 comentou:

Ótima matéria, adorei. Obrigado por postar

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rubens em 15/01/2015 - 14h03 comentou:

Se formos deixar de usar todas as palavras cujo significado original é ofensivo, cruel, entre outros, e difere do empregado atualmente, melhor voltarmos aos grunhidos.

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José em 15/01/2015 - 14h04 comentou:

Muito interessante Cynara, mas uma pergunta, você diz que os únicos cães que existiam antes eram os equimós e os "techichi" (que desapareceram), você não esqueceu de mencionar por acaso o "Xoloitzcuintle"? Essa reaça de cães sem pelos que é de origem mexicana e que existe até hoje. Raça que era, inclusive sagrada para os mexicas pois acreditavam que ele era a ponte entre o mundo dos vivos e dos mortos.

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    morenasol em 15/01/2015 - 15h23 comentou:

    na verdade é o mesmo cão com vários nomes

Edvaldo Lira em 15/01/2015 - 14h25 comentou:

Nao acredito que tenha sido bandeirantes. Sou da Paraiba e aqui tanto no interior quanto na capital ainda usamos varios termos do portugues arcaico que e muito parecido com o espanhol atual. Meu avo falava bassora em vez de vassoura. basco em vez de vasco. Tivemos uma colonizacao metade portuguesa e metade espanhola aqui na PB. Ainda hoje em algumas localidades do interior ouvimos pessoas falar pra riba oj arriba e pra donde. Termos usados na lingua espanhola atual. Tivemos colonizadores vindos da parte norte de Portugal e Espanha. Os gallegos naturais da Galicia. Ate hoje mudamos na nossa lingua o o gente para oxente e o virgem pelo vixe. Meu avo tinha sobrenome Xavier e nao Javier. Portanto se alguem pesquisar a partir dai vai ver e encontrar a participacao espanhola gallega e do norte de Portugal. Lembrando ate hoje os gallegos daEspanha trocam o g e j pelo x. Um abraco.

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    Edvaldo Lira em 15/01/2015 - 14h26 comentou:

    Ok

    Celio Santos em 15/01/2015 - 21h31 comentou:

    Muito bom Edvaldo, o seu texto mesmo pequeno ficou muito melhor que a reportagem, que tem uma carga de preconceito com Bandeirantes e grifando paulistas, somos hoje fruto desta miscigenação se tinha bons ou maus temos que olhar para frente. Quanto ao texto foi uma boa pesquisa de internet.

rtlione em 15/01/2015 - 14h45 comentou:

É triste saber que os paulistas tomem os bandeirantes como heróis, e batizam ruas, avenidas, rodovias e praças com os nomes desses assassinos. Um livro que descreve um pouco da verdade sobre eles é Brasil: uma história, de Eduardo Bueno. Eu como paulista tenho vergonha da mentalidade do meu povo. Em vários sentidos…
Parabéns pelo texto.

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Thiago Dragoni em 15/01/2015 - 14h49 comentou:

Interessante curiosidade etimológico, mas simplesmente não faz sentido ressignificar uma palavra que já foi ressignificada. Palavras não têm um significado original, absoluto ou verdadeiro. Por acaso você fica pensando em chatos quando diz chateada, ou fica pensando em um estupro quando diz coitado? Talvez faça sentido, mas é impraticável e não contribui pra causa nenhuma.

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    morenasol em 15/01/2015 - 15h23 comentou:

    na sua opinião. na minha opinião contribui para a causa de conhecermos a nossa história

Marcos em 15/01/2015 - 16h22 comentou:

É larga a produção historiográfica sobre a conquista do Brasil, incluindo massacres dos colonizadores ou guerras indígenas. Aliás, a produção atual saiu da dicotomia colonizado x colonizador para um paradigma das estratégias de interação dos indígenas na sociedade de Antigo Regime instaladas nas Américas. Não é como se a história foi esquecida. É que brasileiro somente não lê. Se quiser ler mais, leia Maria Regina Celestino ou Pedro Puntoni. Fica a dica.

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@mateuspotumati em 15/01/2015 - 19h53 comentou:

Que história perturbadora e chocante, Cynara. Mas não acredito que "aperrear" esteja na mesma categoria de termos como "judiar" ou "denegrir". Quando se usa o substantivo "aperreio" e seus derivados no Nordeste (ou a horrível adaptação sudestina "perrengue"), algo do sentido original se mantém – quem está "aperreado" passa por alguma dificuldade considerável, ainda que não seja algo comparável a ser devorado por cães. Creio que é um caso mais parecido com o do termo "trabalho", que vem do tal "tripalium" medieval, chicote utilizado para forçar servos e escravos a executarem tarefas, e teve seu sentido suavizado com o passar dos séculos (por sorte nossa, trabalhadores aperrados que somos). Mas, como no caso do trabalho/tripalium, é muito útil conhecer a etimologia do termo. Valeu pela aula!

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Renato em 15/01/2015 - 21h20 comentou:

Parabéns Socialista Morena!
Texto incrível, com riqueza de detalhes e com preocupação científica, pois busca documentos históricos para embasar o tema.
Decerto, contribui para a desmistificação do ídolo do conquistador e "civilizador" que os colonizadores incutiram na história.

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Eugênio em 16/01/2015 - 21h40 comentou:

Olá, Morena Socialista,
gracias por mais essa belezura de texto, apesar de ele lembrar novamente que a Humanidade é uma merda.

Lembrei-me também de que a expressão "cretino" (sim, esses que repetem os direitaços mundo afora…), vem de "cristão" (colei etimologia do Houaiss no final deste comentário), li há muito (não sei onde) que a palavra foi usada para amaciar "idiota" (o tal politicamente correto não é tão novo assim), vítima de "idiotismo" por falta de iodo, distância do mar, sei lá o quê.

As palavras criam asas e adquirem vida própria, mas é sempre uma viagem perscrutá-las, não para bani-las (como pensam alguns por aqui e por lá e acolá), mas para que elas se tornem cúmplices de nosso conhecimento, esse pobre pai de toda a nossa utopia…

DO HOUAISS: fr. crétin (1750) 'estado patológico', (1835) acp. pej. 'idiota', voc. dial. com orig. no fr. chrétien 'cristão' (< lat. cristiánus,a,um); ver cretin- e 1crist-; a datação é para o subst.

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David Gonçalves em 19/01/2015 - 16h07 comentou:

Olha, existem algumas possibilidades. Pra começar a presença indígena no Nordeste é muito forte. Ora de bem, ora de mal, a relação entre colonizadores e silvícolas foi intensa. Outra possibilidade é o uso de cães no pastoreio do gado (as fazendas de gado levou ao desbravamento do interior do semiárido).

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Luiz Cruz Lima em 20/01/2015 - 12h41 comentou:

Documento de grande relevância, especialmente para os nordestinos que utilizam, com frequência, o termo aperrear. Um leitor dizia, acima, que não importava retomar a história das palavras, o que refuto diante do fato que devemos tomar conhecimento para sabermos de nossa formação e valorizarmos o que muitas vezes, caso dos povos primitivos de nossa América, marginalizamos. Um outro leitor, paulista, faz um comentário sobre o envergonhamento que tem dos tais bandeirantes, hoje cobertos de glória. Sugiro procurar ler A GUERRA DOS BÁRBAROS (Pedro Putani) e verá documentos como eles foram sanguinários na matança dos índios no Nordeste, em busca de ganhar terras "limpas", para seus herdeiros.Nossa história é de crueldade, de muito sangue derramado em detrimento dos sem armas, dos que amavam e viviam com a natureza, crimes hodiondos em proveito de uma elite que se construía para chegarmos a que temos hoje, Brasil a dentro. .

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andreromeo em 21/01/2015 - 13h05 comentou:

Compartilhei, grato por postar.

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Super Sincero em 27/01/2015 - 15h35 comentou:

Meu Deus, o que a falta do que fazer causa!!!

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João Augusto em 06/02/2015 - 02h37 comentou:

Procure informar-se melhor sobre a "Leyenda Negra": http://en.wikipedia.org/wiki/Black_Legend

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Flavia Boni Licht em 16/04/2019 - 10h18 comentou:

Parabéns pelo artigo. Me fez lembrar o filme Django, de Quentin Tarantino, onde o dono de uma plantation atiça seus mastins a atacar um escravo.

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