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Direitos Humanos

Como nasce um torturador

Ex-torturadores do regime de Saddam Hussein revelam como se tornaram seres abjetos capazes de infligir sofrimento a outros

No museu Amra Suraka, no Iraque, obras mostram a tortura que era executada nas celas. Foto: Hélène Veilleux/CC
The Conversation
27 de setembro de 2021, 20h01

Por Christopher Justin Einolf, no The Conversation
Tradução: Maurício Búrigo

Todo dia, milhares de pessoas são torturadas em delegacias de polícia, salas de segurança e prisões ao redor do mundo. Organizações de direitos humanos protestam contra a tortura e advogam pelos sobreviventes, mas nem elas nem o público sabem muito sobre os próprios torturadores.

De onde vêm os torturadores? Como podem fazer coisas tão terríveis? E o mais importante: é possível deter a tortura ao deter as pessoas que a praticam?

De onde vêm os torturadores? Como podem fazer coisas tão terríveis? Como um doutor estuda o câncer a fim de descobrir a cura, cientistas sociais devem estudar a tortura para ajudar grupos de direitos humanos e governos a preveni-la

Responder a estas questões é difícil porque a tortura, ou a aplicação de severo sofrimento mental e físico por autoridades do governo, é ilegal, de acordo com a lei internacional. Os torturadores fazem seu trabalho em segredo, e poucos deles concordaram em falar com jornalistas ou pesquisadores.

Como parte do Iraq History Project (lit. Projeto História do Iraque), um projeto de história oral conduzido pelo Human Rights Law Institute da De Paul University após a queda de Saddam Hussein, 14 dos ex-torturadores do regime foram entrevistados sobre o que faziam e por que o faziam. Suas histórias foram para um repositório dos direitos humanos, e eu as analisei como parte de um projeto de pesquisa.

Enquanto algumas pesquisas anteriores concluíram que torturadores eram pessoas psicologicamente normais forçadas a se envolver em atos contra a sua vontade, minha pesquisa mostra como recrutas se envolveram voluntariamente em tortura e como eles justificavam suas ações a si próprios.

A figura de uma pessoa algemada a uma parede mostra que vítimas eram forçadas a ficar de pé por longos períodos de tempo. Foto: Hélène Veilleux/CC

A maioria dos homens entrevistados manifestava arrependimento quanto ao que tinha feito. Alguns deles atribuíram sua escolha de carreira à infância traumática em que enfrentaram a violência de pais abusivos, alcoólatras.

Um deles explicou que odiava muitíssimo o pai e “tinha um forte desejo de se vingar dele”. Na busca de alguma coisa que lhe “desse valor e posição”, pediu emprego nas forças de segurança. Quando seu pedido foi aceito, festejou a “feliz notícia”, visto que “iria ter poder sobre as pessoas”, assim como seu pai dominador.

Todos os torturadores no estudo alistaram-se às forças de segurança de Saddam de própria e espontânea vontade, às vezes usando ligações de família ou pagando subornos para conseguirem o emprego prestigioso e bem pago de oficial de segurança.

Os novatos recebiam instrução prática sob a supervisão de torturadores experientes: aprendiam como causar dor com maior eficácia ao surrarem pessoas com cabos, usarem eletrochoques, baterem nas solas dos pés e pendurarem vítimas no teto pelos braços

Achavam que se tornariam investigadores, encarregados do trabalho de encontrar e prender inimigos do Estado. Ficaram chocados quando lhes foi designado o trabalho de torturador, em que teriam de torturar dissidentes enquanto os interrogavam e forçá-los a confessar crimes políticos.

Impotentes para pedirem uma transferência, os recrutas encaravam uma escolha desoladora: perder o emprego ou tornar-se torturador. Muitos dos que ficaram o fizeram porque eram pobres e precisavam do dinheiro. Um deles se recordava de ter dito à sua mãe que havia conseguido um ótimo emprego nas forças de segurança e lhe assegurou de que tomaria conta dela e de que ela não teria mais de viver na pobreza.

Ao descobrir que lhe fora designado o trabalho de torturador, disse que não conseguiu desistir. “Não fui capaz de dizer qualquer coisa por causa do medo de perder o emprego, e por causa do medo de voltar à minha mãe e desapontá-la depois de todas as promessas que fiz.”

Torturadores novatos recebiam instrução prática de como torturar, às vezes em salas de aula e sempre no trabalho, sob a supervisão de torturadores experientes. Aprendiam como causar dor com a maior eficácia ao surrarem pessoas com cabos, usarem eletrochoques, baterem nas solas dos pés e pendurarem vítimas no teto pelos braços.

Outra obra mostra uma forma diferente de tortura: ser pendurado pelos braços. Foto: Hélène Veilleux/CC

Os recrutas eram pressionados a se livrarem de seus sentimentos naturais de empatia e compaixão. Um recruta lembrava-se de ter ouvido que tinha de ser “um monstro destruidor”, “de coração duro” e “que não tivesse misericórdia pelos outros”, e que tinha de deixar de ser “um ser humano com um coração benevolente ou misericordioso”. A um outro lhe foi dito que “nunca mostrasse qualquer clemência àqueles que quisessem prejudicar o país ou o presidente Saddam Hussein, que era como o pai da nossa casa”.

Os torturadores iraquianos trabalhavam sob ordens e eram à vezes comandados a fazer atos de tortura específicos. Os superiores colocavam câmeras de segurança nas salas de tortura para se certificarem de que obedecessem. Dois dos torturadores disseram que sofreram eles mesmos torturas quando se recusaram a machucar uma vítima.

Os recrutas eram pressionados a se livrarem de seus sentimentos naturais de empatia e compaixão. Um recruta lembrava-se de ter ouvido que tinha de ser “um monstro destruidor”, “de coração duro” e “que não tivesse misericórdia pelos outros”

Quando cumpriam bem os seus trabalhos, eram recompensados com elogios e promoções. Depois de conseguir fazer com que um prisioneiro importante confessasse, lembra-se um deles: “Todos os oficiais ficaram orgulhosos de mim pelo meu desempenho satisfatório, e todos os meus colegas no setor passaram a me considerar uma pessoa importante”.

Os torturadores convenciam a si mesmos de que estavam salvando o país e de que suas vítimas mereciam o que recebiam. Depois do seu primeiro dia de treinamento, um deles perguntou a um colega: “Que pecados aquelas pessoas que foram torturadas na minha frente cometeram?”

O colega respondeu: “Seus pecados são enormes e não podem ser perdoados! Seus pecados são que eles querem derrubar o regime, tumultuando nosso governo e disseminando caos, terrorismo, pilhagem e matança. Jamais acredite que qualquer uma daquelas seja uma vítima! Nós é que somos vítimas delas”.

Depois de conseguir fazer com que um prisioneiro importante confessasse, lembra-se um deles: “Todos os oficiais ficaram orgulhosos de mim pelo meu desempenho satisfatório, e todos os meus colegas no setor passaram a me considerar uma pessoa importante”

O recruta “passou aquela noite pensando em como seria capaz de empunhar o cabo e surrar aquelas pessoas com ele. (…)Contudo, lembrei-me de suas palavras e de que aquelas pessoas eram apenas traidoras e criminosas, e pensei comigo mesmo, ‘Sim! Elas merecem toda aquela tortura, já que estão tentando trair o país, e portanto têm de levar o que merecem!”

Estudar torturadores é estranho e perturbador, e entender suas ações pode parecer que estamos tentando achar desculpas para eles. Mas estudar torturadores é importante: somente entendendo como e por que o fazem é que as pessoas poderão começar a impedir a tortura. Como um doutor que estuda o câncer a fim de descobrir a cura, cientistas sociais devem estudar a tortura para ajudar grupos de direitos humanos e governos a preveni-la.

Christopher Justin Einolf é professor adjunto de Sociologia da Northern Illinois University

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(2) comentários Escrever comentário

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PAULO ROBERTO MARTINS em 28/09/2021 - 10h38 comentou:

Aqui no Brasil os torturadores eram voluntários ou então não se opunham serem recrutados para esta tarefa maldita. Todos psicopatas ou com graves disturbios psicológicos. Os poucos que vieram a público para se defenderem não demonstraram sinceros arrependimentos e muitos expressam publicamente que fariam tudo de novo. Então, deveriam ter sido todos fuzilados!

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Paulo Cezar Soares em 30/09/2021 - 12h15 comentou:

Excelente artigo. O mal não tem limites e precisa ser combatido de todas as formas. Infelizmente, também no nosso país, estamos vendo atitudes desumanas, estarrecedoras.O povo está sofrendo, passando fome.

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