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Dois espelhos onde se refletem Machado, Guimarães Rosa e também Freud

Ator Ney Piacentini encena em São Paulo monólogo a partir de contos "psicanalíticos" dos dois autores brasileiros

O ator Ney Piacentini no palco da Companhia do Feijão. Foto: João Maria Silva Jr./divulgação
Cynara Menezes
31 de março de 2018, 11h31

A curiosa sincronicidade entre o escritor brasileiro Machado de Assis e o neurologista austríaco Sigmund Freud já foi objeto de muita especulação e de pelo menos um livro. Machado era mais velho do que Freud 17 anos, e não existe nenhuma evidência de que um tenha conhecido a obra do outro. Mas as coincidências… Que las hay, hay.

O conto O Espelho, do “bruxo do Cosme Velho”, precedeu em 32 anos Sobre o Narcisismo, obra em que o “pai da psicanálise” explora o mito do homem namorando a si mesmo (e se auto-analisando) diante do espelho. Surpreende ouvir, da boca do ator Ney Piacentini, sentenças tão aparentemente freudianas em Machado: “Há uma alma interior e uma alma exterior”, decreta o alferes Jacobina, como quem falasse de ego, superego e id, conceitos que Freud exploraria mais profundamente em O Ego e o Id, de 1923. “Espantem-se à vontade; podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir”, adverte o personagem à plateia.

É quase impossível acompanhar tudo na torrente de palavras. Não houve adaptação do texto, é puro Machado de Assis e puro Guimarães Rosa. Aguce os ouvidos

Há 20 anos no divã, sem direito a alta, e voraz leitor de Machado, Ney descobriu o “psicanalítico” conto e decidiu montá-lo em forma de monólogo. Durante a pesquisa, o ator e a diretora Vivien Buckup encontraram outro texto de título idêntico, do mineiro Guimarães Rosa. O Espelho de Rosa é de 1962, bem depois, portanto, que as teorias freudianas se espalhassem pelo mundo. Ambos os contos são alvo de teses acadêmicas que propõem interligações com a psicanálise. Em ambos os protagonistas avaliam o que veem ali: em Machado, Jacobina se espanta com as sombras que encontra em seu reflexo; em Rosa, o narrador previne o desavisado dos riscos de se olhar no espelho. Um constata a fugacidade da beleza e da juventude; o outro já as olha com distância.

No palco intimista da Companhia do Feijão, em São Paulo, os narradores viram um só e também dois; e ainda três se aí incluirmos as obsessões do próprio intérprete, “divo” da Companhia do Latão em incursão solo. Candelabros, uma escrivaninha, duas cadeiras… Na primeira parte, tudo é contido, inclusive os braços inertes de Jacobina, a contrastar com a verborragia e o vigor físico do segundo personagem. É quase impossível acompanhar tudo na torrente de palavras. Não houve adaptação do texto, é puro Machado de Assis e puro Guimarães Rosa. Aguce os ouvidos.

Se você não leu antes os contos, certamente terá vontade de ler depois. E voltar para rever a peça.

Espelhos
Direção: Vivien Buckup
Companhia do Feijão: rua Teodoro Baima, 68 – República – São Paulo
Sábados às 21h, domingos às 19h. Até o dia 15/04. Haverá sessão extra na sexta-feira, 13, às 21h.
Ingresso: pague quanto puder

 

 


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