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“Ei, Bolsonaro, vai tomar no…”: o Brasil trocou as palavras de ordem pelos palavrões

A esquerda parece ter se rendido à "filosofia" de Olavo de Carvalho, para quem xingamento é estratégia de luta

Esboços. José de Ribera, cerca de 1628
Cynara Menezes
08 de outubro de 2019, 17h37

No dia 12 de junho de 2014, durante a abertura da Copa do Mundo no Itaquerão, em São Paulo, a presidenta Dilma Rousseff ouviu um gigantesco “vai tomar no cu” vindo das arquibancadas do estádio. Foi um “protesto” para o mundo inteiro ver. Aquilo jamais tinha acontecido com um presidente no Brasil. Em se tratando de uma mulher com mais de 60 anos, o xingamento soava ainda mais chocante. Disseram que até jornalistas, na área VIP, participaram do coro.

Em 30 anos como jornalista, eu nunca tinha visto nada igual. Cobri manifestações nos governos Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. Não me lembro de ver nada parecido contra nenhum deles. Ouvi todos os tipos de palavras de ordem. Nos protestos dos caras-pintadas contra Collor, entoavam, de forma bem humorada: “Rosane, que coisa feia. Vai com Collor pra cadeia”, “Fora Collor já”, “PC, PC, vai pra cadeia e leva o Collor com você”, “Ai, ai, ai, empurra ele que ele cai”, “Ê Fernandinho/vê se te orienta/já sabem do teu furo/no imposto de renda” (no ritmo de Al Capone, de Raul Seixas).

Os palavrões entraram na política na Copa de 2014. Depois, durante os protestos verde-amarelos pelo impeachment, não se viu outra coisa além de xingamentos. A primeira mulher presidenta da República, mãe e avó, era chamada de “puta”, “quenga”, “vaca”…

Na Marcha dos 100 Mil, em Brasília, em agosto de 1999, os manifestantes gritavam “Fora FHC!”, “Basta de FHC!”, “você aí parado, também é explorado”, “Fora FMI!”. Um vendedor de água mineral bradava: “Olha a água mineral, Fernando Henrique sem moral!”. Criatividade, engajamento, politização. Ninguém mandou FHC tomar naquele lugar.

Os palavrões entraram na política na Copa do Mundo. Depois, durante os protestos verde-amarelos pelo impeachment de Dilma, não se viu outra coisa além de xingamentos. A primeira mulher presidenta da República, mãe e avó, era chamada de “puta”, “quenga”, “vaca”… Inclusive em cartazes: em vez de palavras de ordem, palavrões de ordem. Era só rolar a oportunidade que o coro ofensivo voltava. Deprê.

Passamos pelo que passamos, golpe, era Temer, prisão de Lula e agora o desastre Bolsonaro. A população, apática, como bois caminhando em direção ao matadouro, viu a aposentadoria e os direitos trabalhistas se esfumarem, as queimadas na Amazônia, a ameaça aos povos indígenas, o desaparecimento do Queiroz, a impunidade da morte de Marielle, o desemprego, os cortes na educação… Viu tudo isso numa inércia digna de estátua de sal bíblica –para ornar com a mescla nefasta entre Estado e governo patrocinada pela extrema direita.

Mas como assim sem reação? Gritamos “ei, Bolsonaro, vai tomar no cu” no Rock in Rio! Assim como havíamos feito com Temer em 2017… E do quê adiantou? A troca das palavras de ordem pelos palavrões funcionou para os verde-amarelos, é verdade. Mas, justiça seja feita, eles foram às ruas para isso. Nós, não. Estamos entrincheirados detrás de hashtags do twitter e memes nas redes sociais. Parecemos até… eles. Com a diferença, repito, de que os chamados “coxinhas” juntaram a ação virtual à real, em protestos multitudinários. Parecia até… nós. No passado.

Dizem que os palavrões funcionam como uma catarse coletiva, um desabafo. Mandar Bolsonaro tomar naquele lugar seria como extravasar o grito preso na garganta. Mas é este mesmo o grito que queremos soltar? Eu preferia gritar “Lula Livre”

Me dizem que os palavrões servem como uma catarse coletiva, um desabafo. Mandar Bolsonaro tomar naquele lugar seria como extravasar o grito que está preso na garganta. Mas é este mesmo o grito que queremos soltar? Eu preferia gritar “Lula Livre”, a palavra de ordem que tantos, até no campo progressista, cobram que se cale em nossas parcas manifestações. “Bolsonaro, safado, cadê minha bolsa de mestrado?”, “Bolsonaro, Michelle, quem matou Marielle?”, “Bolsonaro, mito, deixe os índios, maldito!”, “Bolsonaro, atroz, onde está o Queiroz?” Eram tantas as opções… “Bolsonaro, vai tomar no cu” é mais sonoro, mais rock and roll, entendo. Mas dá uma tristeza, não dá, não? Ver o debate político reduzido a xingamentos.

Xingaram a Dilma, agora é o presidente quem xinga tudo e todos. Nem as árvores escapam do palavreado baixo nível do chefe da nação. Arthur Weintraub, irmão do ministro da Educação e assessor especial da presidência da República, dá o tom do “debate” que eles querem ter com os “comunistas”, em uma palestra de dezembro de 2018. “Quando um comunista ou socialista chegar pra você com um papo fronhoinhoin (sic), você manda ele para aquele lugar. Xinga. Faça o que o professor Olavo fala: xinga, xinga”, ele aconselha.

Pois é, o guru da extrema direita, Olavo de Carvalho, adora xingar. É seu principal “argumento” nas redes sociais. “Cu” e “piroca” são termos tão presentes em sua “filosofia” quanto “foro de São Paulo”. O ideólogo do bolsonarismo já chamou ministros do governo de “filhos da puta” e disse que o general Santos Cruz é “um merda” e “uma bosta engomada”. O general acabou demitido da Secretaria de Governo.

“Mandar certos sujeitos tomarem no(s) cu(s) é uma maneira de informar-lhes que frescura não entra”, diz Olavo. “Eu uso esses palavrões porque são necessários no contexto brasileiro para demolir essa linguagem polida que é uma camisa-de-força que prende as pessoas, obrigando-as a respeitar o que não merece respeito. Então, às vezes, quando você discorda de um sujeito, mas discorda respeitosamente, você tá dando força, está dando mais força pra ele do que se concordasse. Porque você está indo contra a ideia dele, mas você está reforçando a autoridade dele.”

Xingar Bolsonaro é como se tivéssemos nos dobrado às “estratégias” da extrema direita. É prova cabal de que também nós estamos sem consciência política, sem narrativa, sem estofo. Qual o próximo passo? Fazer coreografias ridículas?

Ao apelar para o xingamento em relação a Bolsonaro, a esquerda brasileira parece estar se rendendo aos “ensinamentos” de Olavo e seguindo o exemplo dos Bolsonaro e dos Weintraub da vida: adultos que agem como moleques mal educados. Daí os palavrões. O presidente já falou para um cidadão que lhe perguntou do Queiroz: “tá na casa da sua mãe”. Que ninguém se espante quando Bolsonaro der o dedo do meio para alguém. Eles são assim.

Mas não éramos nós que tínhamos mais conteúdo? Não éramos nós que queríamos elevar o debate político? E agora nos encontramos chafurdando na lama da baixaria, da falta de argumentos, que nem aqueles que criticávamos? Xingar Bolsonaro para mim é como se tivéssemos nos dobrado às “estratégias” da extrema direita. É prova cabal de que também nós estamos sem consciência política, sem narrativa, sem estofo; é como se estivéssemos assumindo nossa incapacidade de mobilização, de tomar alguma atitude contra este governo fascista além de xingar. Qual o próximo passo? Fazer coreografias ridículas?

“Bolsonaro merece ser xingado”, explicam. Ele merece, sem dúvida. Nós é que não merecemos decair tanto. A esquerda é maior do que isso. A esquerda é melhor do que isso.

 


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Evaldo em 08/10/2019 - 18h21 comentou:

A esquerda não tinha o “costume” de xingar porque tinha conteúdo, educação, respeito. Gritava palavras de ordem porque carregavam significados. Gente educada diante de palavrões e grosserias fica sem reação, estáticas. Num primeiro momento, indignadas pela falta de respeito e educação do interlocutor. Depois, porque não se consegue falar e ser ouvido por quem xinga. É verdade que seguir pelo mesmo caminho, isto é, reagir da mesma forma, xingando, está longe de ser adequado. É baixo, é vergonhoso, é desrespeitoso. Tudo isso é verdade. Mas, a educação, o bom trato, a polidez em algum momento sucumbe ao absurdo, à insensatez, à burrice, à alienação, à sandice. Lamento, mas nessa hora pedir compostura é demais! Precisa ter mais que sangue de barata para ouvir Olavo de Carvalho e semelhantes. “Paciência tem limite” diriam todas as mães diante das traquinagens dos filhos. E o que vem em seguida de uma mãe enfurecida? Todos sabemos. Mesmo elas perdem a compostura! ?A revolta é tanta que só resta uma coisa: xingar de volta. Por quê? É eficaz! Pronto! E que os créditos por esse “ensinamento” sejam mesmo dados aos direitistas. Eles merecem!

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EUGENIO DRUMOND em 08/10/2019 - 20h08 comentou:

Nelson Rodrigues sempre falava da “doença infantil do palavrão”.

É isso aí, estamos caindo feito patinhos infantis,

o uso do calão tem força de ataque e o contra-ataque o reforça.

Belezura de texto

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João Ferreira Bastos em 09/10/2019 - 10h11 comentou:

estamos xingando, pois não estamos suportando mais e o grito nos liberta da angustia mas não resolve.

lamentavelmente nossos lideres da oposição são covardes que ficam em gabinetes refrigerados

deviam se espelhar nos lideres do Equador

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Lauri Guerra em 09/10/2019 - 13h21 comentou:

É necessário, primeiro de tudo, entender qual é o público que está xingando o bozo com palavrões. É a classe média.
Os pobres, as massas trabalhadoras, não tem grana para pagar o ingresso ao preço cobrado no rock in Rio por exemplo,e não estavam lá proferindo xingamentos.
Foi aquela mesma fração da classe média que se juntou à elite para empurrar o golpe ladeira acima (junho de 2013 até o golpeachment). Quando o golpe da elite chegou ao topo da ladeira e alcançou a planície já tinha inércia suficiente e ganhou velocidade, levando tudo de roldão (eleição de 2018).
O nihilismo da classe média, espremida entre a fúria consumista frustrada e a perspectiva de que a ascensão da classe trabalhadora lhes tome espaços no mercado de trabalho e da vida social provoca em parte deste estamento social o “desespero de classe” que se manifesta como “anarquia civilizatória”.
É verdade que a esquerda descolou-se em grande parte da base social que a levou ao poder, por encastelar-se nos gabinetes, o que explica a falta de uma reação organizada mais firme ao golpe. Historicamente parte da classe média vive num pêndulo entre a direita e a esquerda. Perdemos esta gente e o fato de que estes estejam se expressando através de xingamentos mostra que estão sem direção política – são incapazes de eles próprios apontarem um caminho político viável dada a polarização de interesses de classe em jogo. Cabe a nós, de esquerda, ganhar o espaço de narrativa junto a estes fragmentos da classe média descontentes com a situação que muitos deles ajudaram a criar, e ganhar as ruas com uma narrativa de propostas e não de xingamentos.
Isso somente acontecerá quando os sindicatos e os movimwntos populares tomarem o comando da resistência. É a luta social (com os partidos de esquerda como instrumento) que mudará o cenário político.

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Juan Carlos em 09/10/2019 - 14h47 comentou:

Não creio q milhares de afetados num evento meramente comercial, gritando palavrões seja a representação da esquerda.

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Omar em 09/10/2019 - 17h01 comentou:

Me desculpe Cynara , mas desta vez tenho que discordar. O respeito é uma via de mão dupla, você tem que respeitar para ser respeitado. No jogo político tradicional e educado a direita perdeu quatro eleições e se encaminhava para a quinta derrota por não terem nenhuma proposta séria para o país. Então partiram para a baixaria e chocaram o ovo da serpente. Estimular o fascismo é fácil e os jornalões sabem disso. Se ainda não assistiu o filme “A Onda” recomendo que o faça. Vamos assistir passivos a destruição de todas as conquistas dos trabalhadores sem soltar um palavrão sequer? Sim é uma situação triste mas não fomos nós que começamos. Paciência tem limite!

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Luci Cléa Soalheiro em 10/10/2019 - 17h37 comentou:

Concordo com as ponderações, mas, infelizmente, por ora,essa foi a manifestação possível.Realmente nos iguala ao mala Olavo.

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Eduardo pondé em 15/10/2019 - 15h17 comentou:

Cara Cynara, acredito que esta questão não seja tão simples de se entender. Não existe uma só esquerda, existem várias, e de dentro de cada uma delas, os diversos subgrupos, algo que considero normal.
Nós: brasileiros, democratas, republicanos, idealistas e progressistas, vamos ficar só nestes adjetivos, estamos sendo literalmente massacrados por este governo de plantão. É um momento dificílimo da vida nacional ( no caso de SP é ainda pior, temos um governador e um prefeito que seguem linhas políticas semelhantes ), a resistência política está sofrendo um ataque total (político, jurídico, financeiro, comunicacional, policial), o povo mal consegue respirar.
Até os líderes políticos estão paralisados sem saber qual estratégia seguir. O que se deve priorizar? Quanto tempo deve ter determinada luta? Quantas lutas devem existir? O que é possível deixar para depois? O que fazer para não perder tanto? O que fazer para se fortalecer num momento como esse? Quem possui mais cacife para liderar a luta? É hora de apontar erros dos outros? É hora de falarmos de nossos erros? São tantas dúvidas. Como seguir em frente num momento como este? Como ser firme e confiante e convencer as massas, se mesmo entre eles existem tantas dúvidas? Me parece que o palavrão é apenas um sintoma. É o desespero de quem já perdeu ou está em vias de perder a razão. Porque a esperança, o humor e a paciência, já perderam há muito tempo.
Se Deus é brasileiro mesmo, deve fazer alguma coisa. Estaria ele depois de todo este descalabro, também ele, confuso? Se a resposta for sim, isto só pode ser coisa da sua contraparte, que está no poder agora.

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