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Maconha

Nos EUA, donas-de-casa fumam beck para ler a Bíblia; no Brasil, é sinônimo de tráfico e dá cadeia

Grupo de estudos da Bíblia combina fé com baseados no EUA; no Brasil, Ras Geraldinho foi preso por abraçar o rastafarianismo

O "perigoso" Ras Geraldinho, condenado a 14 anos de prisão por ter uma igreja rastafári
Cynara Menezes
28 de fevereiro de 2016, 10h33

Os hindus usam a cannabis em seus rituais desde pelo menos 1.000 anos antes de Cristo, com uma beberagem chamada bhang, que tem propriedades medicinais e ainda hoje é tomada durante o Holi ou “festival das cores”, que comemora a chegada da primavera. É possível também que um dos ingredientes do “óleo sagrado” dos cristãos e judeus citado no Velho Testamento seja o cânhamo. Entre os muçulmanos, o álcool é proibido por ser considerado haram (pecado), e o haxixe, não. Mas, sem dúvida, o uso religioso mais difundido da maconha é entre os rastafáris jamaicanos, que defendem o uso da erva como meio de se conectar com o mundo espiritual. Acender uma vela para Deus ganha outro sentido entre os adeptos do rastafarianismo…

Nos Estados Unidos, com a legalização para uso recreativo em quatro Estados (Oregon, Washington, Colorado e Alasca), começam a surgir iniciativas que unem a religião ao uso da erva. No Colorado, um grupo de estudos da Bíblia virou notícia recentemente: o Stoner Jesus Bible Study ou Estudos Bíblicos de Jesus Chapado. “Mesmo que Jesus não tenha fumado maconha, ele continua sendo um chapado (ou “viajandão”, alguém sob efeito da erva)“, disse a criadora do grupo ao jornal Los Angeles Times. “Jesus era pacífico e amoroso. Ele ia de casa em casa e sempre era aceito. Só um chapado podia fazer algo assim.”

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Deb Button e seu grupo de estudos bíblico-maconhais. Foto: Chris Bucker/New York Magazine

Deb Button, uma dona-de-casa de “40 e poucos anos”, era conservadora e nunca tinha fumado maconha na vida até que a erva foi legalizada em seu Estado e ela decidiu provar. Acendeu um baseado para tentar aliviar uma enxaqueca e achou que “veria unicórnios”, mas se sentiu “tão conectada com Deus” que resolveu juntar amigos para discutir a Bíblia e fumar becks em maio do ano passado. “Eu estava sentada em minha sala e literalmente senti Deus. Eu estava cheia de amor, o tipo de sentimento que sempre quis experimentar na igreja e nunca consegui”.

Rapidamente o grupo cresceu e hoje conta com 20 pessoas que se reúnem na casa de Deb, num subúrbio ao sul de Denver, transformada em Bud&Breakfast (trocadilho com Bed&Breakfast, sendo que “bud” é gíria para berlota, camarão de maconha). Entre os membros, há católicos, mórmons, um grego ortodoxo e até um ateu curioso. Deb disse ao portal The Fix que são pessoas que gostam das palavras de Jesus, têm fé, mas que “não são grandes fãs da igreja”. Alguns frequentadores disseram que fumar maconha associada à religião os ajudou a se livrar de outros vícios, como o alcoolismo. O lugar parece uma sala careta qualquer, a não ser pelos vasos repletos de baseados já bolados à disposição dos frequentadores. Os becks passam de mão em mão e os “testemunhas de Jah” começam a ler e discutir passagens da Bíblia.

Clique aqui para assistir uma reportagem do canal CBS sobre os chapadões de Cristo: “Grupo de estudos da Bíblia combina fé com baseados”. Com direito a vários trocadilhos, claro. “Eles ficam ‘high’ (“altos”, na gíria em inglês para “doidões”) para ficar mais perto do Todo-Poderoso”, diz a repórter. Leia também esta ótima reportagem da revista New York sobre as donas-de-casa maconheiras que rezam e fumam beck nos subúrbios norte-americanos.

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Noite de vinhos & becks nos saraus bíblicos

No Brasil proibicionista, um homem tentou fazer o mesmo, usar a maconha com finalidades religiosas, e está preso há três anos e seis meses. Geraldo Antonio Baptista, o Ras Geraldinho, foi condenado a 14 anos de prisão por tráfico de drogas. Tudo porque fundou uma igreja dedicada a difundir o rastafarianismo, a Primeira Igreja Niubingui Etíope Coptic de Sião do Brasil, conhecida como “igreja da maconha”, com sede em Americana, no interior de São Paulo, onde cultivava 37 pés de maconha para uso religioso.

Na cidade, Ras Geraldinho era considerado uma figura folclórica, que já tinha sido detido outras vezes, mas era solto em seguida. Como queria obter na Justiça a legalização de sua igreja, tomando como base a mesma decisão do Conad (Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas) que, em 2006, liberou o uso religioso da Ayauasca (Santo Daime), Geraldinho começou a dar entrevistas a torto e a direito.

Numa destas, estava falando na TV quando teria sido visto pelo secretário de Segurança de São Paulo, que não gostou e telefonou para o delegado da cidade reclamando: “Olha, estou aqui com a minha família e estou vendo um cara fumando maconha na rua aí, que negócio é esse?”. Pelo menos foi essa a história que o escrivão da delegacia contou ao advogado do líder rastafári.

O juiz Eugenio Clementi Júnior não foi nada piedoso: aplicou uma pena rigorosíssima. Para se ter uma ideia, o traficante Claudio Campanha, acusado de envolvimento na morte de mais de 100 pessoas, teve pena idêntica à de Geraldinho: 14 anos de prisão. Os pedreiros que deram sumiço no pedreiro Amarildo tiveram pena menor que a do rastafári, que nunca fez mal a uma mosca: pegaram 13 anos e 7 meses de prisão. A namorada de Geraldinho, Marlene, também foi condenada a dez anos, mas está respondendo em liberdade.  Na sentença, o juiz ainda cita a condenação anterior de outro rastafári em que um desembargador gaúcho diz aos brasileiros que quiserem seguir a religião “que vão para a Jamaica e lá pratiquem o seu rastafári”.

“Não dava um quilo de maconha o que foi apreendido lá”, afirma Alexandre Khuri Miguel, advogado de Ras Geraldinho. Segundo Khuri, a maconha não era vendida, portanto a atuação do rastafári não poderia ser classificada como tráfico. “O que tinha era a cobrança de uma espécie de dízimo de dez reais. Complicou o fato de um dos frequentadores ser um rapaz de 17 anos e 11 meses, ou seja, um menor de idade. Ainda assim a pena é exagerada”, diz o advogado, que está recorrendo ao STJ (Superior Tribunal de Justiça).

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Ras Geraldinho algemado e com os cabelos cortados. Foto: Denner Chimeli/UOL

Ao ser preso, a primeira coisa que aconteceu com Geraldinho foi que teve seus longos cabelos e a barba cortados. Da cadeia em Iperó, ele mantém um blog onde escreveu cartas a várias autoridades, inclusive à presidenta Dilma Rousseff, pedindo clemência para o seu caso. Ele foi proibido pela penitenciária de dar entrevistas. Ao advogado, ele costuma falar: “Estou com o corpo preso, mas minha alma é rastafári, não fica presa”. Este ano, Ras Geraldinho poderá sair da cadeia por bom comportamento, mas o que ele quer é anular o processo e continuar com sua igreja.

O caso de Geraldinho é emblemático da hipocrisia que cerca a maconha no Brasil. Não parece absurdo que em um país seja inteiramente permitido usar maconha com finalidades religiosas, com pessoas fumando juntas e evocando o divino, e em outro país alguém seja trancafiado numa cela durante anos por fazer exatamente a mesma coisa?

 


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Marcos Felipe em 13/08/2021 - 14h21 comentou:

Uma matéria incrível! Vemos de fato que o mundo que julgamos de “sã” consciência não é tão quanto pensamos, são dias difíceis em que o bem se confunde com o mal de tanta perversidade, aos de boa alma continuem independente das lutas, aos que praticam o mal vos digo que ainda há tempo, com ou sem a erva, somos um individual e temos consciência do que fazemos, seja o bem ou o mal.

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