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Mulheres mostram força em Angoulême e quadrinista Julie Doucet leva o Grand Prix

Maior festival do gênero, que terminou domingo, já foi acusado de machismo; o brasileiro Marcelo Quintanilha ganhou o Fauve d'Or de melhor álbum

Cena do quadrinho Dirty Plotte, de Julie Doucet
Piu Gomes
17 de março de 2022, 17h00

Ele já foi chamado de “Angoul’men” pela quadrinista Chantal Montellier depois que, em 2016, apresentou uma lista de 30 indicados ao Grand Prix sem um único nome feminino. O prêmio homenageia autores de HQ vivos, reconhecidos pela carreira, que ganham uma exposição solo na edição seguinte e desenham o cartaz dela. Tamanha honraria só foi concedida a três mulheres até hoje em 48 anos do Festival de Angoulême, um dos mais importantes do gênero no mundo.

O machismo e a misoginia no mundo dos quadrinhos geraram o maior protesto há 6 anos, mas as conquistas são lentas. Em 48 anos de festival, só três mulheres ganharam o Grand Prix, principal prêmio do festival de Angoulême. Este ano uma quarta recebeu a honraria, a canadense Julie Doucet

Este ano, uma quarta quadrinista entrou nessa seleta (e excludente) galeria: Julie Doucet foi a vencedora do Grand Prix. A primeira canadense a receber a premiação é autora do fanzine oitentista Dirty Plotte, precursor desse novo feminismo nas HQs. Doucet, de 56 anos, foi premiada por “desenhar sem concessões, de forma radical e subversiva” e por ser “uma das pioneiras dos quadrinhos autobiográficos, contando o seu cotidiano cheio de sonhos e pesadelos”. Ela é ainda inédita no Brasil, mas a Veneta promete para breve My New York Diary, narrativa em primeira pessoa sobre sua mudança para os EUA e o que enfrenta por lá.

Capa da edição norte-americana do gibi que será lançado pela Veneta

As outras concorrentes ao Grand Prix, que é concedido pelos colegas quadrinistas, eram as francesas Pénélope Bagieu, que começou com um blog e se firmou com uma pegada feminista na série Culottées, vencedora do Eisner; e Catherine Meurisse, cujo trabalho traz autobiografia e leveza, até quando conta como superou o ataque ao Charlie Hedbo, onde trabalhava, em La Légèreté. O brasileiro Marcelo Quintanilha marcou presença em Angoulême e levou o prêmio de melhor publicação do ano com Escuta, Formosa Márcia, uma história protagonizada por… mulheres!

Nas outras categorias, tivemos escolhas femininas: uma desenhista, duas roteiristas e três autoras foram premiadas, sendo uma delas eleita Revelação. Mas Angoulême parece precisar mesmo é de renovação. Apesar de a presidência do Júri ser de Fanny Michaëlis, autora de HQ, os homens levaram uma apertada maioria entre os membros, 4 a 3. Mas na mostra principal, a diferença foi assustadora: dos 45 títulos, apenas 14 são assinados por mulheres. Levando-se em conta que concorrem apenas obras que foram lançadas, a conclusão é que ainda falta muito para termos um mercado igualitário enquanto publicação, e portanto, acesso. Se incluirmos nessa lista a diversidade de gêneros atual, a estrada fica ainda mais longa.

Cenas de Escuta, Formosa Márcia, do brasileiro Marcelo Quintanilha

O niteroiense Marcelo Quintanilha foi premiado no simbólico 2016, com tungstênio, vencedor do Fauve Polar SNCF, dedicado à histórias policiais. A narrativa fragmentada, inspirada numa notícia de jornal, acompanha em tempo real uma violenta situação passada em Salvador onde se traduz parte do espectro social brasileiro. O uso de flashbacks e uma linguagem próxima de Quentin Tarantino seduziram o cinema: a obra foi adaptada por Heitor Dhalia no filme homônimo de 2018, com a participação de Quintanilha na equipe de roteiro. Este ano ele ganhou o Fauve d’Or de melhor álbum publicado, com Escuta, Formosa Márcia.

A novela gráfica narra o cotidiano da auxiliar de enfermagem Márcia, que trabalha num hospital público e vive numa comunidade no Rio de Janeiro, com o companheiro Aluísio e a filha Jaqueline. As duas serão as protagonistas de uma trama que mistura realismo, confronto e redenção. A aproximação de Jaqueline com o crime fará Márcia tomar atitudes corajosas e repensar seu papel na vida, enquanto mãe e mulher. A proximidade com a crueldade de milicianos e traficantes, somada à atuação violenta de policiais, traz duras consequências para ela e todos os personagens. Mas as piores feridas parecem ser as deixadas por Jaqueline.

Em tungstênio, um dos pontos cativantes é o uso feito por Marcelo da prosódia baiana, que nos transporta imediatamente para o coração da trama. No novo trabalho, ele manteve essa abordagem e escutamos o falar do morro, seja em escritórios da quadrilha, no hospital ou na Zona Sul, levando o leitor à intensa imersão na vida dos personagens. O roteiro agora é mais linear, e o traço mantém um pouco da influência dos filmes neorrealistas italianos, com mais leveza e requadro ausente. A grande novidade é o uso da cor, com uma paleta reduzida, mas que explode em composições gráficas, no pano de fundo do próprio quadrinho e nos personagens.

Marcelo Quintanilha chega ao Festival de Angoulême com uma narrativa que empodera as mulheres no traço, nas atitudes e na trajetória, justo quando o evento parece fazer um mea culpa sobre como trata as artistas. Escuta, Formosa Márcia é também o nome de uma modinha do Brasil Imperial, que traduz o sentimento colocado pelo autor como fundamental para solucionarmos nossos conflitos. É ele que provoca o último ponto de virada, levando a história para um final poético. Poesia que seria impossível sem a presença feminina.

Escuta, Formosa Márcia
AUTOR: Marcelo Quintanilha
Editora Veneta, 128 págs., R$99,90

tungstênio
AUTOR: Marcelo Quintanilha
Editora Veneta, 184 págs., R$74,90

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