Socialista Morena
Cultura

O direito à preguiça

Como, após procurar muito e me desiludir com tudo, me tornei uma socialista da linha "lafarguista"

Paul Lafargue em 1871. Foto: reprodução
Cynara Menezes
30 de outubro de 2012, 18h07

Quando eu tinha 20 e poucos anos, decidi pesquisar algum modelo de socialismo que tivesse “dado certo”: cubano, soviético, albanês, cambojano… Apesar de amar o socialismo, não me encantei com nenhum, pelo contrário. A pior parte foi quando, ao ler sobre maoísmo, descobri que a revolução cultural chinesa tinha sido responsável pela morte de 65 milhões de pessoas! Não acredito em nada bom que possa ter surgido de uma chacina.

Se tivesse que citar um grande ídolo socialista, diria que é Paul Lafargue (1842-1911), o genro de Karl Marx (casado com sua filha Laura), autor de O Direito à Preguiça (1880). Crítico ferrenho da superexploração do homem pelo trabalho, Lafargue teve a sacada de dividir as 24 horas do dia em oito horas de trabalho, oito horas de sono e oito horas de lazer. A reivindicação viraria bandeira de operários do mundo inteiro. Ele e Laura morreram de maneira poética, suicidando-se em par antes de serem atingidos pela velhice. Ambos beiravam os 70.

Cristo pregou a preguiça no seu sermão na montanha: “Olhai como crescem os lírios no campo, eles não trabalham nem fiam e, todavia, digo-vos: Salomão, em toda a sua glória, não se vestiu com maior brilho”

Fora do prelo na época, tive que copiar o livro inteirinho em xerox para tê-lo em casa… Felizmente hoje tem a internet e dá para lê-lo online. Sou, portanto, uma socialista da linha “lafarguista”. Creio, inclusive, que Lafargue apoiaria a ideia de reduzir ainda mais as horas de trabalho para que mais gente trabalhe, como defende o socialismo moderno, para solucionar o desemprego.

Em homenagem aos 170 anos de Lafargue, completados em janeiro, e que passaram em branco por aqui, republico o capítulo de abertura do Direito à Preguiça, que considero genial e ainda incrivelmente atual.

Um dogma desastroso

“Sejamos preguiçosos em tudo, exceto em amar e em beber, exceto em sermos preguiçosos” (LESSING)

Uma estranha loucura se apossou das classes operárias das nações onde reina a civilização capitalista. Esta loucura arrasta consigo misérias individuais e sociais que há dois séculos torturam a triste humanidade. Esta loucura é o amor ao trabalho, a paixão moribunda pelo trabalho, levado até ao esgotamento das forças vitais do indivíduo e de seus filhos. Em vez de reagir contra esta aberração mental, os padres, os economistas, os moralistas sacrossantificaram o trabalho. Homens cegos e limitados, quiseram ser mais sábios do que o seu Deus; homens fracos e desprezíveis, quiseram reabilitar aquilo que o seu Deus amaldiçoara. Eu, que  não me declaro cristão, economista nem moralista, coloco os seus juízos ante os do seu Deus; coloco diante dos sermões da sua moral religiosa, econômica, livre-pensadora, as terríveis conseqüências do trabalho na sociedade capitalista.

Na sociedade capitalista, o trabalho é a causa de toda a degenerescência intelectual, de toda a deformação orgânica. Comparem, por exemplo, o puro-sangue das cavalariças de Rothschild, servido por uma turba de lacaios bímanos, com a pesada besta das quintas normandas que lavra a terra, carrega o estrume, que põe no celeiro a colheita dos cereais. Olhem para o nobre selvagem, que os missionários do comércio e os comerciantes da religião ainda não corromperam com o cristianismo, com a sífilis e o dogma do trabalho, e olhem em seguida para os nossos miseráveis criados das máquinas.

Jeová, o deus barbudo e rebarbativo, deu aos seus adoradores o exemplo supremo da preguiça ideal; depois de seis dias de trabalho, descansou por toda a eternidade

Quando, na nossa Europa civilizada, se quer encontrar um traço de beleza nativa do homem, é preciso ir buscá-lo nas nações onde os preconceitos econômicos ainda não desenraizaram o ódio ao trabalho. A Espanha, que infelizmente degenera, ainda pode se gabar de possuir menos fábricas do que nós prisões e casernas; o artista se regozija ao admirar o ousado andaluz, moreno como as castanhas, reto e flexível como uma haste de aço; e o coração do homem sobressalta-se ao ouvir o mendigo, soberbamente envolvido na sua capa esburacada, chamar amigo aos duques de Ossuna. Para o espanhol, em cujo país o animal primitivo não está atrofiado, o trabalho é a pior das escravidões.

Os gregos da grande época também só tinham desprezo pelo trabalho: só aos escravos era permitido trabalhar, o homem livre só conhecia os exercícios físicos e os jogos da inteligência. Também era a época em que se caminhava e se respirava num povo de homens como Aristóteles, Fídias, Aristófanes; era a época em que um punhado de bravos esmagava em Maratona as hordas da Ásia que Alexandre iria dentro em breve conquistar. Os filósofos da Antigüidade ensinavam o desprezo pelo trabalho, essa degradação do homem livre; os poetas cantavam a preguiça, esse presente dos Deuses: O Meliboe, Deus nobis hoec otia fecit (Ó Melibeu, um Deus deu-nos esta ociosidade).

Cristo pregou a preguiça no seu sermão na montanha: “Olhai como crescem os lírios no campo, eles não trabalham nem fiam e, todavia, digo-vos: Salomão, em toda a sua glória, não se vestiu com maior brilho”. Jeová, o deus barbudo e rebarbativo, deu aos seus adoradores o exemplo supremo da preguiça ideal; depois de seis dias de trabalho, descansou por toda a eternidade.

O proletariado, traindo os seus instintos e se esquecendo da sua missão histórica, deixou-se perverter pelo dogma do trabalho. Rude e terrível foi o seu castigo. Todas as misérias individuais e sociais nasceram da sua paixão pelo trabalho

Em contrapartida, quais são as raças para quem o trabalho é uma necessidade orgânica? Os auverneses (da Auvernia, região da França); os escoceses, esses auverneses das ilhas britânicas; os galegos, esses auverneses da Espanha; os Pomeranianos, esses auverneses da Alemanha; os chineses, esses auverneses da Ásia. Na nossa sociedade, quais são as classes que amam o trabalho pelo trabalho? Os camponeses proprietários e os pequeno-burgueses, uns curvados sobre as suas terras, os outros retidos nas suas lojas, movem-se como a toupeira em sua galeria subterrânea sem nunca endireitar o corpo para apreciar a natureza.

E, no entanto, o proletariado, a grande classe que engloba todos os produtores das nações civilizadas, a classe que, ao emancipar-se, emancipará a humanidade do trabalho servil e fará do animal humano um ser livre, o proletariado, traindo os seus instintos e se esquecendo da sua missão histórica, deixou-se perverter pelo dogma do trabalho. Rude e terrível foi o seu castigo. Todas as misérias individuais e sociais nasceram da sua paixão pelo trabalho.

 


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(8) comentários Escrever comentário

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Francisco em 30/10/2012 - 18h22 comentou:

Cara Cynara, em primeiro lugar, parabéns pelo blogue! Não sei se você conhece, mas acho que se identificaria também com André Gorz, que escreveu na mesma linha "Adeus ao Proletariado"..

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    morenasol em 31/10/2012 - 16h26 comentou:

    não conheço, francisco. boa dica, vou procurar

    José Antonio Meira da Rocha em 06/04/2018 - 09h52 comentou:

    Gorz é o cara! Mas temos que diferenciar “emprego” e “trabalho”. Empregado e trabalhador são coisas diferentes. Patrão não é o mesmo que empresário.
    O sistema baseado em empregado+patrão é uma das formas de exploração do trabalho que surgiram na — e sumiram da — história. Como escravidão, servidão, filhas de criação. Está na hora de se abolir o emprego. Isto é, proibir a contratação de pessoas físicas. Só empresas poderiam vender serviços, e só os serviços de seus sócios ou associados. Estamos falando de grandes cooperativas de trabalho que enxugassem a mão de obra de reserva. Sem emprego, sem desemprego. Ninguém fora de uma empresa, de preferência cooperativada.

Toledo em 31/10/2012 - 18h06 comentou:

Pois eu, senhora socialista morena, não acredito em nada bom que possa ter surgido de uma chacina ou da cabeça de um suicida. Como bem disse o Albert a vida é como andar de bicicleta, para estar em equilíbrio tem de estar sempre em movimento. Lembrando que desde 1959, foram executadas na paradisíaca ilha cubana 17 mil pessoas (não se sabe quantas morreram nas masmorras). Os executados são 0,154% da população. Em termos brasileiros, dada uma população atual de 180 milhões, os mortos seriam 277.200.

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Celso em 01/11/2012 - 19h44 comentou:

um dos melhores livros que li na juventude..

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Alexandre em 02/11/2012 - 21h32 comentou:

Você já leu o "Manifesto contra o trabalho"? Acho que vais gostar: http://o-beco.planetaclix.pt/mctp.htm

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6cordas em 01/05/2013 - 18h18 comentou:

Antes de ler teorias, temos que seguir o melhores dos exemplos, o Seu Madruga (sem nada no bolso, mas o sorriso no rosto.) rs rs 😉

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DIna Mota em 01/05/2013 - 18h41 comentou:

Então você se reinvidica do marxismo, curiosa…rs. adorei seu texto, concordo, adoro esse livro e vou compartilhar, nada melhor para se ler no dia do trabalho.

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