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O último assalto a banco da luta armada

A tragicômica história do assalto à agência do Banco do Brasil em Salvador por militantes do PCBR após a volta da democracia

Arte: Maneco Magnesio
Cynara Menezes
23 de agosto de 2018, 17h27

Na manhã do dia 11 de abril de 1986, o estudante de Ciências Sociais Marcos Wilson Reale Lemos, de 22 anos, acordou cedo, vestiu uma calça jeans, calçou seu tênis e saiu batendo a porta do apartamento onde estava hospedado, no bairro de Ondina, em Salvador, como quem fosse para a faculdade. Mas a camisa social de botão era uma pista de que aquela não seria uma sexta-feira qualquer. Por que não uma camiseta de malha, uniforme dos jovens universitários até hoje? Porque os botões iriam facilitar na hora de puxar o revólver 38 enfiado na cintura.

Junto com dois companheiros, ao volante de um Volskwagen Voyage, Marcos zarpou em direção ao vale do Canela, onde o grupo se juntaria aos outros três militantes do PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário) que haviam saído do “aparelho” em Brotas também num Voyage, modelo de carro muito na moda então, e que foi escolhido por ter quatro portas, indispensável para a fuga. Os fuscas, preferidos por seus antecessores na luta armada (como aquele azul onde Carlos Marighella foi encontrado morto em 1969), tinham ficado para trás.

Era dia de pagamento dos servidores da UFBA e os caixas estavam abarrotados de dinheiro. Os seis entraram na agência e se dirigiram para a fila como se fossem clientes comuns. Um deles inclusive foi de terno e pasta 007, como um executivo

Os dois carros pararam diante do pequeno posto de serviço do Banco do Brasil no Canela, próximo à Escola de Enfermagem da UFBA (Universidade Federal da Bahia), e eles desceram. Era dia de pagamento dos servidores e os caixas estavam abarrotados de dinheiro. Os seis entraram na agência e se dirigiram para a fila como se fossem clientes comuns. Um deles inclusive foi de terno e pasta 007, como um executivo importante que tivesse assuntos para tratar com o gerente. Depois que todos estavam nas posições combinadas, veio o grito:

– É um assalto! Todo mundo se afasta dos caixas!

O plano, elaborado durante os dois meses anteriores, tinha tudo para dar certo, ou pelo menos era o que eles achavam. O grupo esvaziaria os caixas em três minutos, furtaria os pertences de alguns clientes para transmitir à polícia a impressão de que se tratava de um assalto comum e sairia dali a milhão. Eles estavam tão confiantes no sucesso que nem mesmo utilizaram máscaras para cobrir o rosto, apostando que, como eram de outros Estados, jamais seriam identificados pela polícia baiana.

Ali perto, no estacionamento de um supermercado, um terceiro Voyage, também roubado nos dias anteriores, seria o veículo que ocupariam na fuga. “Ia ser rapidinho, três minutos. O chefe tinha dito: no máximo três minutos, porque nenhuma polícia do mundo chega em três minutos. Por isso eu batia no relógio dizendo ‘já deu’. Eu já estava com a sacola cheia de grana”, relembra Marcos, que até hoje se refere ao assalto como “operação”. “Fomos pegos por excesso de confiança. Teve um lá dentro que resolveu abrir o cofre forte. E aí fodeu.” Ele não revela quem foi. A quantia subtraída dos caixas: 230 mil cruzados, algo em torno de 70 mil reais em dinheiro de hoje, mais os relógios e pulseiras dos clientes.

Ia ser rapidinho, três minutos. O chefe tinha dito: no máximo três minutos, porque nenhuma polícia do mundo chega em três minutos. Por isso eu batia no relógio dizendo ‘já deu’

A demora foi fatal. Um motorista dos Correios que chegava com o malote estranhou o movimento de homens armados sem farda dentro da agência e saiu em busca de um posto policial. Os oito carros da PM chegaram com uma rapidez inédita, cercaram o local e houve troca de tiros. Um dos militantes, Jari, foi alvejado no braço. O grupo, que havia se refugiado na cantina da Escola de Enfermagem, chegou a fazer uma professora e um comerciante como reféns, mas não houve feridos além de Jari. No final, cinco se renderam. Um deles, o líder, Antonio Prestes de Paula, fugiu.

Àquela altura, José Sarney havia tomado posse, um ano antes, como presidente da República no lugar de Tancredo Neves, e os generais da ditadura militar já tinham se transformado em retratos esquecidos na parede de alguma repartição longínqua. A “expropriação” a um banco em plena democracia foi visto como algo anacrônico, fora de tempo e lugar. Para piorar as coisas, os seis, embora militantes do PCBR (ou “BR”, como era carinhosamente chamado), eram todos filiados ao PT, que iria estrear na política partidária naquelas eleições gerais de 1986, quando os brasileiros voltaram a eleger seus representantes depois de 26 anos. “Somos petistas”, se apressaram em dizer ao serem capturados.

“Petistas assaltam banco em Salvador e são presos”, estampava o jornal Folha de S.Paulo no sábado seguinte. A mesma manchete se repetiu em quase todos os veículos do país. Em Salvador, o jornal da família de Antonio Carlos Magalhães, o Correio da Bahia, aproveitou para matar dois coelhos com uma cajadada só e tentou atingir também o PMDB do rival Waldir Pires. “Radicais do PMDB deram apoio logístico no assalto ao BB”, exagerou o jornal, baseado apenas no fato de uma funcionária do partido ter hospedado Marcos e os outros dois membros da organização. A estratégia não funcionou e Waldir derrotaria o candidato de ACM, Josaphat Marinho, na eleição a governador. Mesmo naqueles tempos, enxergar “radicais” no PMDB era um disparate.

Informado da captura do grupo de “petistas”, Lula ficou furioso. “Se algum imbecil tentou assaltar um banco para juntar dinheiro para a Nicarágua errou completamente. Isso só prejudica os nicaraguenses”, declarou à imprensa. Foi Lula quem deu a notícia da prisão do grupo ao pai de Marcos, Rubens Lemos, velho dirigente do PCBR em Natal.

– Ô Rubens, você sabe a merda que aconteceu na Bahia? Vamos ter que jogar duro, mas você sabe que seu filho tá no meio, porra?

Rubens sabia que a ação iria ocorrer, mas não sabia que Marcos, que estudava na Universidade Estadual de Londrina, no Paraná, estaria no grupo em um assalto na Bahia. Pelo menos é o que garante o filho. “Foi para protegê-lo que não contei. Se o submetessem a interrogatório ele não saberia dizer nada, então não teriam como pressioná-lo”, explica. Na época, porém, o então comentarista esportivo negou de pé junto saber de qualquer coisa. “Foi um ato de quixotismo absurdo e de profunda irreflexão”, disse Rubens à imprensa. “Lutei contra a ditadura e cutuquei a onça com vara curta. Meu filho não tinha onça para cutucar.”

Se já estávamos na democracia, para quê um assalto a banco? Os presos repetiam que o dinheiro seria enviado para a Nicarágua, mas na verdade o destino da grana era financiar a própria organização clandestina

Era essa a pergunta que todos se faziam: se já estávamos na democracia, para quê um assalto a banco? Os presos repetiam que o dinheiro seria enviado para a Nicarágua, como apoio à revolução sandinista, mas na verdade o destino da grana era financiar a própria organização clandestina. Se esta tivesse dado certo, haveria mais “operações” em busca de recursos para financiar o PCBR. “Todo partido de orientação marxista-leninista visa a derrubada do governo legalmente constituído para implantação no Brasil da ditadura do proletariado, através da luta armada”, soltou Jari à Polícia Federal.

A gozação foi grande, não só pelo inusitado da ação armada em um Brasil pós-ditadura, como por um detalhe que marcaria a captura: os militantes foram despidos pela polícia e expostos apenas de cueca à imprensa. A história virou um prato cheio para os cartunistas. Paulo Caruso, na Folha, não perdoou, e desenhou os cinco como se estivessem fazendo uma campanha de roupa íntima masculina: “Cuecas ‘vem, vamos embora'”.

Charge de Paulo Caruso na Folha

Folha da Tarde

Spacca, na Folha de S.Paulo

A Veja deitou e rolou.

Matéria da Veja sobre o assalto

Pergunto a Marcos se, sob o olhar de hoje em dia, ele considera ter pagado “um mico” ao aparecer assim nos jornais, em um assalto que não deu certo, de cuecas. “Nada disso, aquilo foi uma agressão, uma aberração da imprensa brasileira, um desrespeito, uma violação dos direitos humanos dos presos. Preso tem direitos humanos, tem direito a ter sua dignidade respeitada”, protesta, contando que todos apanharam da polícia, com chutes, socos, coronhadas. Seu cabelo estava duro, empapado de sangue. “A Zorba deveria ter agradecido a gente pela propaganda”, ironiza.

“O risco de buscar adjetivos para o assalto é reproduzir as impressões contemporâneas que ele causou e a maioria delas foi mais efetiva em condená-lo do que em compreendê-lo. Ele foi, sim, temporão, aconteceu quando pregações de violência revolucionária não tinham repercussão social e seus sujeitos reconheciam isso. Por isso é preciso lembrar que ele foi planejado para ser uma ação velada: não era uma ação de propaganda armada”, diz o historiador Lucas Porto Marchesini Torres, autor de um livro sobre este assalto e outros praticados pelo BR: Estratégias de Uma Esquerda Armada – Militância, Assaltos e Finanças do PCBR na década de 1980.

“As ações armadas conquistaram alguma validade entre a militância de esquerda quando as raias democráticas estavam espremidas por uma ditadura civil e militar. Quando essas raias pareciam se alargar, as ações armadas perderam o alcance que tinham –que nunca foi grande, aliás. No geral, eu te diria que ações armadas com finalidades políticas costumam ter efeitos contraproducentes, elas dispersam mais do que agregam. Nos anos 1980 isso ficava ainda mais evidente porque o Partido dos Trabalhadores surgiu defendendo a ocupação dos espaços institucionais, ampliação democrática, representação das classes trabalhadores com respeito às suas demandas etc.”, opina Lucas.

“No geral, ações armadas com finalidades políticas costumam ter efeitos contraproducentes, elas dispersam mais do que agregam. Nos anos 1980 isso ficava ainda mais evidente”, diz Lucas Torres, autor de um livro sobre os assaltos do PCBR

A “operação” no Banco do Brasil em Salvador foi o derradeiro assalto a banco da luta armada no Brasil. Em 1989, aconteceria a última ação armada vinculada às esquerdas, o sequestro do empresário Abílio Diniz por militantes brasileiros e estrangeiros do chileno MIR (Movimento Esquerda Revolucionária), que pediam 30 milhões de dólares de resgate. Com Lula candidato à presidência contra Fernando Collor, se repetiria a tentativa de vincular o PT ao sequestro, que muitos especialistas apontam como uma das causas para a derrota na eleição.

“O assalto e o sequestro são relativamente próximos no tempo, mas bem diferentes entre si. Eu diria que a maior aproximação entre eles é por terem revelado, cada um a seu modo, um anti-esquerdismo muitas vezes irracional”, diz Lucas Torres. “O assalto de Salvador foi feito por militantes do PCBR, uma tendência semi-clandestina no PT e com pouca envergadura social. O sequestro de Abílio Diniz tinha conexões internacionais com as esquerdas latino-americanas, e sua vinculação com o PT foi um factoide criado pela polícia ou pela imprensa, ou por ambos. Chegaram a ‘plantar’ material da campanha de Lula no cativeiro onde ficou o empresário porque em 1989, ao contrário de 1986, o PT apresentava potencial nas urnas.”

Com a prisão dos participantes do assalto ao Banco do Brasil, os militantes do BR foram todos expulsos do PT e as organizações clandestinas foram enquadradas pela direção: a partir dali, seriam chamadas “tendências”, como são denominadas até hoje as várias correntes dentro do partido.

Os seis na cadeia em Salvador. Foto: acervo pessoal Teresa Notari

No final, mesmo com os indicativos de que se tratava de um crime político e não de um crime comum, embora extemporâneo, os integrantes do grupo foram condenados duplamente, pela LSN (Lei de Segurança Nacional) e pelo Código Penal, daí as penas pesadas que levaram pela tentativa de assalto. Marcos, José Wellington, Jari e Cícero foram condenados a 13 anos e dez meses de reclusão, mais o pagamento de uma multa. Prestes de Paula e Telson, a 7 anos e dez meses, fora a multa.

Mais de 30 anos depois, os participantes do assalto ao Banco do Brasil do Canela tomaram rumos diferentes. José Wellington é advogado no interior do Rio Grande do Norte; Cícero Barbosa da Silva mora em Pedra, interior de Pernambuco; Jari e Telson faleceram; Prestes de Paula havia se reaproximado do PT e dava cursos de formação a militantes no Sul do país no início dos anos 2000, quando morreu; Marcos trabalha na Fundac (Fundação da Criança e do Adolescente) da Bahia, onde fixou residência desde o assalto.

Embora ainda seja filiado ao PT, não milita mais. “O combatente ferido na batalha dificilmente volta para o front”, filosofa.

Livro: Estratégias de uma esquerda armada: militância, assaltos e finanças do PCBR na década de 1980
Autor: Lucas Porto Marchesini Torres
Editora Edufba, 210 págs., R$33


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John em 24/08/2018 - 04h23 comentou:

“No geral, eu te diria que ações armadas com finalidades políticas costumam ter efeitos contraproducentes, elas dispersam mais do que agregam. ”
É nós sabemos o quanto agrega essa conversa fiada de “democracia” ( cito isso para dizer que isso é bullshit, só existe no mundo da fantasia de um conjunto de tontos), é por essas e outras que á esquerda foi destruida no Brasil, é por essas e outras que nunca tivemos uma revolução, os proprios “militantes” dizem que luta armada é contraproducente, é o fim do mundo, essa esquerda pequeno burguesa é uma desgraça.

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Marcos em 25/08/2018 - 23h22 comentou:

O problema é que na caminhada de luta meio tem muito de virar as costas…o meio é esse é viável para o enfrentamento… há muita militância que se tornou burguesa e gostou muito dos privilégios… e é ocupante dos cargos públicos…só haverá esse meio se existir uma base sólida e unida ideologicamente, do contrário se reduzem a mesma microcriminalidade….em que são abandonados, sem grandes articulações…
A luta da esquerda deixa muito a desejar, lembrem quando uns dissidentes do movimento social foram até Brasília e enfrentaram o congresso nacional ocupando….a liderança foi criminalizada…e se virou as costas…eis a reflexão de algumas facções em algumas regiões, surgidas pelo problema no cárcere, no país que demonstram mais unidas que a própria ideologia….

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jose bento souza vasconcellos dos santos em 26/08/2020 - 11h48 comentou:

Bacana encontrar essas histórias – conheci Antonio Prestes de Paulo em 1981 em Olímpia (SP), fui aluno de sua irmã (D. Antonieta, falecida). Eu tinha 16 anos e ele foi a primeira pessoa (que havia sido exilado e tals) que conheci pessoalmente. Eu já militava no PT e ele era uma figura mítica para mim. Nos encontramos várias vezes. Minha mãe estava desaparecida, desde 1967, e me lembro que contei-lhe minha história. Depois disso nunca mais soube nada sobre, eu havia me mudado para Minas e continuei minha militância. Muito legal saber dessas histórias, confesso que não sabia. Obrigado!

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