Socialista Morena
Feminismo

Por uma esquerda com coragem de assumir suas bandeiras

Assisto com espanto setores da esquerda defenderem que sigamos covardemente negando que somos a favor da legalização do aborto e da maconha

Arte da italiana Laika
Cynara Menezes
04 de janeiro de 2021, 15h49

Se há um sentimento que une uma parcela significativa da população brasileiro hoje é o desejo de arrancar o medíocre, antipatriota, nefasto Jair Bolsonaro do Palácio do Planalto. Acredito que, em 2022, isto irá acontecer, não importa quem esteja à frente deste movimento. Mas esta união contra o fascismo não pode significar, mais uma vez, que a esquerda precise abrir mão de suas bandeiras.

Qual esquerda queremos ser no futuro? Uma esquerda covarde, que não assume suas bandeiras mais difíceis? Ou uma esquerda capaz de enxergar além e perceber que, sem estas bandeiras, perdemos nossa identidade e nos diluímos na geleia geral do conformismo?

No final de 2020, a Argentina legalizou o aborto, seguindo o exemplo civilizatório do vizinho Uruguai, que também legalizou a maconha, realidade para a qual a Argentina deu os primeiros passos ao legalizar o uso e plantio para fins medicinais em novembro. Estes avanços não aconteceram da noite para o dia. São o resultado do investimento no amadurecimento da sociedade empreendido ao longo de décadas pelos partidos de esquerda e pelos movimentos sociais argentinos e uruguaios.

No Brasil, o PT só chegou ao poder em 2002 ao abdicar das teses de esquerda mais “espinhosas”, sobretudo a defesa da legalização do aborto como questão de saúde pública. Pressionado pelos fundamentalistas religiosos que atualmente se encontram no poder com Bolsonaro, em 2010 o PT chegou a forçar Dilma Rousseff a recuar de suas posições firmes em defesa da legalização do aborto. Em 2007, a então ministra do governo Lula dizia com todas as letras ser a favor da descriminalização da interrupção da gravidez.

Em 2010, já candidata, Dilma recuou e se disse “pessoalmente contra” o aborto em encontros com pastores e lideranças religiosas. E em que esta violência contra seus princípios resultou, no longo prazo? Em 2015, Dilma foi impichada com o apoio dos mesmos fundamentalistas religiosos a quem adulou para ganhar a eleição –sendo que, pouco antes disso, o presidente da Câmara que articulou o golpe, Eduardo Cunha, havia feito a presidenta anular uma portaria desburocratizando o aborto legal no SUS. Foi também com o apoio desta turma que Lula foi preso. De que valeu, repito, ceder ao conservadorismo?

Neste momento, eu assisto com espanto setores da esquerda defenderem a manutenção dessa estratégia: que sigamos covardemente negando que somos a favor da legalização do aborto (e da maconha) porque “a sociedade brasileira é conservadora”. Ora, e o papel pedagógico que temos a cumprir na sociedade? Nós não temos a convicção de que a proibição do aborto e da maconha pune apenas os pobres? Por que, em nome de “derrotar Bolsonaro”, vamos abdicar da defesa de teses que contrariam justamente o seu discurso?

A estratégia de aderir a teses conservadoras pode funcionar, mas não será duradoura porque repete o equívoco de ter que negociar com o fundamentalismo religioso para se manter no poder. Um pessoal tão confiável quanto o próprio Judas, até no interesse pelos 30 dinheiros

Vejam bem: não descarto a possibilidade de esta “esquerda conservadora”, como chamo, estar certa e ser esta a estratégia pragmática para o campo progressista voltar ao poder (“progressista conservador”, chega a dar um bug na cabeça da gente). Eu duvido. Vejo nas novas gerações a possibilidade de uma adesão crescente às teses da legalização do aborto e da maconha. Mas, ainda que eu esteja errada, esta vitória não será duradoura, porque repete o equívoco do passado de ter que negociar com o fundamentalismo religioso para se manter no poder. Um pessoal tão confiável quanto o próprio Judas, até no seu interesse pelos 30 dinheiros.

Nos EUA, onde a maconha segue sendo legalizada nos Estados, inclusive para uso recreativo, a promessa de Donald Trump de intervir para reverter a decisão Roe vs Wade, de 1973, que possibilitou a legalização do aborto no país, não vingou. E Joe Biden foi eleito prometendo que não irá fazer qualquer movimento neste sentido. A vitória de Biden deixa claro que a tendência no mundo é usar as teses liberais contra o fascismo e não aderir a teses conservadoras para derrotá-lo.

A esquerda deve se preparar para contribuir para a derrota de Bolsonaro, ainda que seja sem exercer protagonismo no próximo governo. Não há problema quanto a isso. Mas, como ideologia política, o que temos de fazer é colocar nosso pensamento, desde já, no pós-bolsonarismo, em qual esquerda queremos ser no futuro. Uma esquerda covarde, que não assume suas bandeiras mais difíceis? Ou uma esquerda capaz de enxergar além e perceber que, sem estas bandeiras, perdemos nossa identidade e nos diluímos na geleia geral do conformismo?

 


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(8) comentários Escrever comentário

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letícia em 04/01/2021 - 17h22 comentou:

fada sensata.

regulamentar a intervenção de gravidez=ser anti-bozo

nenhum democrata brasileiro pode ser contra essa falha homérica do estado.

e a cannabis, pelo amor de Deus! melhor coisa pra redução de danos e poderíamos desenvolver tantas soluções para que a gente se concentre em construir uma outra nação.

prefiro perder na democracia

Responder

Mario em 04/01/2021 - 17h51 comentou:

Muito bem Cynara!

Assuntos que deveriam ser consenso entre as esquerdas, acabam se transformando em cismas e celeumas que corroem as bases ideológicas dos movimentos progressistas.

Responder

Luis Carlos Kerber em 05/01/2021 - 11h55 comentou:

É mais que necessário lutar por pautas como aborto legalizado e descriminalização da maconha. Essas pautas progressistas ajudam a derrotar as pautas conservadoras, que em nome dos bons costumes e dos homens (e mulheres) de bem, avançaram nas diversas esferas dos legislativos, dos executivos e judiciários deste país e acabaram elegendo pessoas nefastas como o genocida Bozo e as bancadas neopentecostais que dão sustentação ao projeto de destruição dos direitos sociais, destruição do meio ambiente em prol do agronegócio e enfraquecimento do Brasil como um país soberano. Também é necessário lutar por um Estado laico onde a religião tem que ser tratada como assunto de foro íntimo e não ser misturado com as questões públicas.

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João Ferreira Bastos em 05/01/2021 - 14h11 comentou:

Sabiamente José Genoino traçou o caminho: Quando as oposições não mostram os dentes a situação não tem medo da mordida

Responder

José Estanislau Filho em 06/01/2021 - 13h39 comentou:

Vivemos um contexto de andar no fio da navalha. Duro esconder paradigmas revolucionários até mesmo da família. É que a abolição da escravidão é recente. Nossa herança maldita.

Responder

Eugênio BH em 07/01/2021 - 20h23 comentou:

Olás,

as bandeiras serão sempre justas.

A burrice eleitoral é deixar que essas questões entrem no jogo.

Eleitoral.

A turma da bíblia deita e rola…

Responder

Paulo em 17/01/2021 - 16h37 comentou:

E a esquerda tem de ter coragem também de ver quais bandeiras não se justificam mais e atualizá-las, sem abrir mãos de seus princípios.

Responder

    Cynara Menezes em 18/01/2021 - 21h04 comentou:

    por exemplo?

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