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Cultura

“Uns dias Capra, uns dias Kafka”: o jornalista Nirlando Beirão enfrenta ELA

Repórter mescla a história do amor proibido dos avós paternos ao relato cru, sem floreios, sobre a Esclerose Lateral Amiotrófica

Foto: Marcos Vilas Boas/divulgação
Cynara Menezes
23 de setembro de 2019, 17h24

Há três anos, o jornalista Nirlando Beirão, atualmente com 70 anos, foi diagnosticado com ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica), enfermidade degenerativa que afeta o sistema nervoso e resulta progressivamente em paralisia motora. É aquela doença do cientista Stephen Hawkins.

Nirlando não esconde o pânico que sentiu diante da notícia. “A minha, bem, condenação viera escrita em duas páginas bastante conclusivas, resultado de um exame –eletroneuromiografia– que fiz depois de muito azucrinar mais de um neurologista. Minúcias de números ilustravam a sentença diabólica”, escreve no livro Meus Começos e Meu Fim, relato autobiográfico que soa ao mesmo tempo como um exorcismo da doença e uma comunhão com o passado.

Minha condenação viera escrita em duas páginas bastante conclusivas, resultado de um exame que fiz depois de muito azucrinar mais de um neurologista. Minúcias de números ilustravam a sentença diabólica

O jornalista de CartaCapital mistura o testemunho sobre ELA, sempre pontuado pelo humor sarcástico que lhe é característico, à história real do amor proibido que uniu sua avó paterna ao futuro marido, um padre português, no interior das Minas Gerais do começo do século 20. Um segredo sussurrado entre os feijões tropeiros e os doces de leite dos almoços de família de sua infância, e que Nirlando cavouca com o prazer dos que se libertaram da preocupação com o juízo dos parentes ou da posteridade.

“É fatal que eu fique escrutinando o futuro, com a ansiedade hasteada, em busca da resposta impossível sobre o tempo que ainda resta. Mas é o passado que me subjuga, dia e noite, enumerando, como numa penitência sem remissão, tudo aquilo que nunca fiz. Nunca aprendi a nadar. Nunca pilotei uma Ferrari. Nunca pensei na aposentadoria que me deixaria hoje confortável. Nunca. Nunca. Nunca…”

Contar a saga amorosa dos avós era uma dessas frustrações, cortada da lista implacável das não-realizações graças à ajuda preciosa de sua mão direita, que não o abandonou, ao contrário das cordas vocais. “Sou hoje a minha mão direita. De todas as roldanas, polias, gruas e alavancas subcutâneas que comandam, com competência invisível, nossos movimentos, este é o único item da anatomia que não me traiu miseravelmente. Sou destro –aleluia!”

Sou hoje a minha mão direita. De todas as roldanas, polias, gruas e alavancas subcutâneas que comandam nossos movimentos, este é o único item da anatomia que não me traiu miseravelmente. Sou destro –aleluia!

O livro tem um sabor inegável de despedida, a começar do título, mas é também uma celebração ao estilo que o jornalista sempre cultuou. Nirlando é um dos mais elegantes repórteres brasileiros, elegante na maneira de ser e no conteúdo; um esteta do jornalismo –e não é uma doença que o faria esquecer disso. Não deve ser fácil escrever sobre si mesmo diante de uma enfermidade tão dura sem ceder à autocomiseração. Nirlando consegue escapar da armadilha, mesmo que não evite ser cru, sem floreios, sobre o destino que o espera.

O jornalista Nirlando Beirão respondeu a algumas perguntas do site, por e-mail.

Socialista Morena – Tive a impressão que você fez este livro de certa forma como uma despedida, mas ela não aconteceu… É isso?
Nirlando Beirão – O livro surgiu de duas ideias que eu nem sabia se dariam liga. A corajosa saga de meu avô padre português, pároco numa cidadezinha de Minas, que fugiu com aquela que viria a ser minha avó, eu queria escrever faz muito tempo. Me fascinava a aventura mas também o tabu familiar que a envolveu, o silêncio, os segredos sussurrados, a culpa. Ao receber o diagnóstico de esclerose lateral amiotrófica, passei a registrar minhas emoções no que seria um blog, mas nunca postei. No livro quis manter esse olhar para o cotidiano, o presente, sem projetar o futuro, mas nem sempre consegui. Outra preocupação é que o livro não soasse piegas, ainda que tenha, sim, um tom de adeus.

Como não sou religioso, como não acredito que existe um deus lá no céu decretando a hora em que vou morrer, penso que o ser humano, em situações de extrema fragilidade e infelicidade, pode decidir seu destino, sim

– Como está sendo para trabalhar? Qual tem sido seu maior desafio?
– Escrevo com a mão direita, mais lentamente. As palavras que me acorrem na escrita me faltam na fala. Não conseguir me comunicar com os netos pequenos é triste. E o mundo aí fora não está fácil.

– No livro, você menciona duas vezes a hipótese de eutanásia. Pensou a sério nisso?
– É natural que a gente fique olhando em volta os coleguinhas de sofrimento e tente entender a reação de cada um. Como não sou religioso, como não acredito (respeitando quem acredita) que existe um deus lá no céu, com um Livro de Caixa na mão, decretando a hora em que vou morrer, penso que o ser humano, em situações de extrema fragilidade e infelicidade, pode decidir seu destino, sim.

– Depois de três anos com ELA, como está sua relação com a doença?
– Na verdade, quatro –os sintomas já estavam presentes. Descobri um paradoxo: é uma doença atroz, que me debilita a cada dia, mas fora isso tenho uma saúde de ferro.

Como escrevi no livro, tem dias que acordo num filme feliz de Frank Capra, tem dias que me desperto a própria barata do Franz Kafka

– Você colocou bastante humor e sarcasmo no livro, mas e no dia a dia? Ainda consegue transmitir seu senso de humor, que sempre foi tão refinado?
– Não consigo viver sem. Mas oscilo. Como escrevi no livro, tem dias que acordo num filme feliz de Frank Capra, tem dias que me desperto a própria barata do Franz Kafka.

– E seus familiares? Como eles estão encarando essa nova fase em sua vida?
– Incondicionais, amorosos, valentes. Nada fácil para eles. Cada vez que engasgo é um susto. E eu que me achava o campeão da autossuficiência…

Livro: Meus Começos e Meu Fim
Autor: Nirlando Beirão
Editora: Companhia das Letras, 190 págs., R$49,90


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MARCIA Guimarães em 30/04/2020 - 23h09 comentou:

O tempo que assinei a Carta Capital, adorava ler o Nirlando em suas criticas aos programas de TV. Ele tinha um humor maravilhoso e muito elegante. Uma perda lamentável. Descanse em paz!!

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