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Feminismo

Com Marcela, golpistas recolocam a mulher no lugar que o machismo sempre lhe reservou: o de primeira-dama assistencialista

Mulher só pode ser primeira-dama. Aí sim ela é aplaudida, elogiada e, quem sabe, ganha até presente do marido

Marcela Temer fala no lançamento do programa Criança Feliz. Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil
Cynara Menezes
05 de outubro de 2016, 17h55

Se o ministro da Cultura, Marcelo Calero, não estivesse na Suíça, a foto oficial do lançamento do programa Criança Feliz repetiria o que já se tornou rotina na era Temer: só homens nos principais lugares da cerimônia. A ausência de Calero foi providencial. Sentada entre o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, e o senador José Medeiros, a interina da Cultura, Mariana Ribas, pôde servir de cota feminina e evitou que a primeira-dama Marcela Temer, designada “embaixadora” do programa, aparecesse cercada por engravatados nas imagens.

Trajando um delicado vestido azul claro com detalhes em renda, Marcela representava ali o protótipo da “mulher ideal” sob a ótica machista que norteia o governo do marido. Doce, linda, submissa, disposta a “ajudar” os mais necessitados, mãe e esposa. Fez inclusive questão de frisar que será um trabalho “voluntário”, afinal é casada, não precisa de salário. Em pouco mais de três minutos de um discurso vago e cheio de clichês, a primeira-dama transmitiu a defesa dos cuidados na primeira infância, assunto do qual se tornou especialista (ela é advogada de formação) apenas por ter um filho pequeno.

Os objetivos do programa são ainda mais vagos que o discurso de Marcela, denunciando que o Criança Feliz foi criado às pressas com a função de alojar a mulher de Temer. “O programa Criança Feliz atenderá crianças de 0 a 3 anos do cadastro do Bolsa Família, com a integração de ações de várias áreas, como saúde, assistência social, educação, justiça e cultura. O objetivo é oferecer às famílias mais informação e interação com suas crianças, para identificar oportunidades e riscos ao desenvolvimento infantil”, diz a página oficial do Palácio do Planalto. O que exatamente isso quer dizer?

Quanta diferença daquela senhora já passada em anos, grossa, acima do peso, ex-guerrilheira e mal vestida que ousava, imaginem, governar o país! Agora, sim, a mulher foi colocada em seu devido lugar, um lugar de onde nunca deveria ter saído: o de primeira-dama. Ora, como se não fosse uma honra estar ao lado do presidente da República, inclusive na intimidade. Para que mais, gente? Já diz o ditado, “atrás de todo grande homem existe uma grande mulher”, não é mesmo?

Teve até site de direita comemorando o fato de Marcela ter “escrito o próprio discurso”. Lógico, é um feito e tanto para uma mulher escrever um texto. Ainda mais bonita como a primeira-dama. Só faltou pegarem na bochecha da moça e dizer: “Coisinha fofa, sabe até escrever, gente. Cuti, cuti”. Pobre Marcela. Será que algum dia, como a princesa Diana que parece inspirá-la, ela irá descobrir que existem outros mundos onde a mulher não precisa ser um enfeite ao lado de maridos poderosos?

primeiradama

Desde a época do império que a mulher exerceu o posto que foi destinado a Marcela, que ingressa, aos 33 anos, na a galeria das primeiras-damas que se dedicaram ao lar e ao assistencialismo. Dona Iolanda Costa e Silva era carola; Lucy Geisel oferecia chás da tarde para as esposas dos militares e controlava a dieta do marido. Entre as mulheres dos ditadores, Dulce Figueiredo foi a única do balacobaco: gostava de frequentar as boates mais badaladas do Rio de Janeiro e de São Paulo. Scila Médici era tão “recatada e do lar” que, em 1969, enviou uma mensagem louvando o fato de ter sido primeira-dama a vida inteira.

“Sou e serei sempre o que fui: a esposa de meu marido, duas vezes mãe. Ao longo de minha vida, não me tem feito maior diferença a função que ele exerce desde que permitido me seja estar ao seu lado. Minha valia é tão pouca, minha missão é tão fácil e tão suave. A mim toca fazer-lhe a casa amiga e serena, fazê-lo sentir-se o homem simples e confiante que sempre foi, fazer o presente encontrar-se com as raízes de si mesma no amor de nosso lar”, declarou Scila. Todo um modelo para Marcela Temer.

Com a volta da democracia, as primeiras-damas se dedicaram a “obras sociais” além de pajear o marido. Rosane Collor assumiu a presidência da LBA (Legião Brasileira de Assistência), de onde saiu por denúncias de desvio de verbas públicas. Mesmo a antropóloga Ruth Cardoso, intelectual de destaque, feminista, dirigiu um programa social durante os governos do marido, Fernando Henrique, o Comunidade Solidária. Marisa Lula da Silva não quis, preferiu manter-se praticamente anônima.

Quando Dilma Rousseff se tornou a primeira mulher a assumir a presidência, contava sempre uma história, que tinha encontrado uma menininha chamada Vitória que queria saber se mulher podia ser presidenta da República. E Dilma respondeu: “Mulher pode”. Após o golpe que a arrancou do poder, voltamos várias casas. Agora, essa menininha terá que ouvir que mulher não pode se tornar presidenta do Brasil senão vem um monte de homem e a derruba. Mulher só pode ser primeira-dama. Aí sim ela é aplaudida, elogiada e, quem sabe, ganha até presente do marido.

 

 

 


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