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Direitos Humanos

Promessa de Bolsonaro de extinguir Funai faz país retroceder para antes da Constituinte

Aos 30 anos da Constituição Cidadã, impressiona que o discurso anti-indígena pré-1988 tenha sido requentado como se fosse novidade

Foto: Fábio Nascimento/Mobilização Nacional Indígena
Carolina R. Santana
19 de outubro de 2018, 17h40

Nós temos direito à terra. Nós não queremos a casa de vocês, eu não quero a casa de madeira nem a terra ruim, onde meu povo não pode entrar. Seu povo não pode matar mais o meu povo. Quando o seu povo mata o meu povo, temos que lutar para matar.

–Cacique Raoni Kayapó Mentuktire, durante a Assembleia Nacional Constituinte

O último dia 5 de outubro marcou os 30 anos da Constituição Federal. Apesar da pouca idade, a Carta Magna possui uma história de resistência que se iniciou lá mesmo em 1988, quando sua guarda foi entregue a um STF maculado por nove ministros nomeados pelos governos ditatoriais. O trajeto tem sido duro, é verdade. Não sem cicatrizes ela caminha, defendendo-se das elites caudilhistas que, descontentes com seu teor cidadão, insistem em retalhá-la, fatiá-la, desviá-la.

Um dos dispositivos que vivem sob a mira de setores antirrepublicanos é o 231, que garante aos indígenas direitos originários sobre seus territórios tradicionais. Esse texto constitucional é resultado das lutas do movimento indígena, o qual se organizou para reagir durante a Assembleia Nacional Constituinte às fortes articulações de uma incipiente bancada anti-indígena que já se organizava desde as eleições de 1982.

Inúmeros parlamentares foram eleitos para a Constituinte com o discurso anti-indígena em defesa incondicional da “sacrossanta” propriedade privada, fosse ela produtiva ou não

Segundo o indigenista Odenir Pinto, assessor do deputado federal Mário Juruna (PDT) à época, inúmeros parlamentares foram eleitos com o discurso anti-indígena em defesa incondicional da “sacrossanta” propriedade privada, fosse ela produtiva ou não. Atento a isso, Juruna criou em 1983 a Comissão Permanente do Índio –um dos embriões da atual Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados– para enrobustecer a luta em defesa dos territórios.

Os corredores, salas, auditórios e galerias do Congresso Nacional foram testemunhas da primeira Assembleia Nacional Constituinte da qual indígenas participaram. Ainda que não tenham tido direito ao voto, eles avaliam aquele momento como inédito, pois puderam se impor diante de uma estrutura que, desde o século 16, legislava sobre suas vidas sem consultá-los. O texto constitucional resultante daquele processo representava a esperança de dias melhores e o resgate de direitos autoritariamente violados durante a ditadura empresarial-militar, período em que milhares de indígenas foram assassinados e indigenistas foram perseguidos e demitidos da Funai por atuarem na defesa desses povos.

Indígenas ocupam liderança do PMDB na Câmara, em 1988; Foto: Beto Ricardo/ISA

Graças à resistência dos indígenas o texto do artigo 231 segue intacto, apesar das diversas tentativas de alteração propostas pela bancada ruralista. Muitos ataques partem de parlamentares, mas é preciso, contudo, nos mantermos atentos também às investidas advindas de outros poderes constituídos. Se o texto permanece inalterado, o mesmo não se pode dizer de sua interpretação. Atualmente, observamos estarrecidos exercícios hermenêuticos contrários à Constituição provenientes do Poder Judiciário e do Poder Executivo.

Não deixa de ser curioso, aliás, constatar que os questionamentos contemporâneos sejam fundamentados em termos requentados, trazidos de antigos debates já travados durante a Constituinte em 1987. Os atuais intérpretes da Constituição (e aqui penso numa sociedade aberta de intérpretes) que lançam mão dessa estratégia parecem se posicionar entre o descaso e a má-fé. Algo como que a nos dar o recado de que a Constituinte, e consequentemente a construção coletiva de uma norma a partir da participação de indígenas, antropólogos, ambientalistas, indigenistas e juristas, de nada tivesse valido.

Um bom exemplo desse retorno de temas é a emblemática votação da Petição n. 3.388/RR, sobre a Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Na ocasião vimos a temática da imemorialidade das terras renascer das cinzas, não para ser reinterpretada de forma inovadora, mas nos exatos termos debatidos em 1987. Lembre-se, aliás, que o Centrão tentou inserir a imemorialidade no Projeto de Constituição na etapa de sistematização e não logrou êxito. Essa não foi uma opção dos constituintes.

Vinte e um anos depois, o Supremo não apenas recuperou o mesmo debate, como descaracterizou o primário sentido de proteção das terras pretendido pelo constituinte originário. Por fim, o debate desaguou na indigesta tese do marco temporal, segundo a qual o relator estabeleceu nova condição a ser atribuída ao caráter de permanência da habitação dos indígenas em suas terras.

Ainda durante a votação da referida Petição reapareceram –nos mesmos termos– as antigas disputas acerca da proibição da demarcação de terras indígenas em regiões de fronteira e a respeito do garimpo e do usufruto dos indígenas sobre o subsolo. Todos já analisados durante a Constituinte sob a não menos antiquada tese da ameaça indígena à soberania nacional e trazida ao STF em 2009.

Bolsonaro tem feito o papel de requentar velhos debates. Utilizando-se de dispensáveis figuras de linguagem em tempos de ódio, o candidato do PSL tem prometido dar uma “foiçada” no pescoço da Funai para acabar com a instituição

Ignorando o direito à diversidade e o respeito às diferenças, a Segunda Turma do STF passou a aplicar indiscriminadamente a tese do marco temporal em terras localizadas em contextos absolutamente distintos da Raposa Serra do Sol. A última pá de cal nessa sequência de inconstitucionalidades e retrocessos foi formalizada, em 2017, pelo Parecer n. 001/2017 da AGU (Advocacia-Geral da União), subscrito pelo presidente da República, vinculando toda a administração pública direta e indireta aos termos do julgado (Pet. 3388/RR).

Com isso, o Executivo acabou por cercear a defesa dos direitos territoriais indígenas, a ser realizada por advogados da União e procuradores federais, e por comprometer a atribuição institucional da Fundação Nacional do Índio. O parecer segue em vigor, apesar de já ter tido sua inconstitucionalidade apontada pelo Ministério Público Federal.

Esses direitos territoriais estão, desde sempre, em uma inacabada disputa, avaliados sob os mesmos velhos argumentos. E com um decréscimo democrático se compararmos com o momento constituinte, afinal realizados no STF sem o diálogo com os indígenas que, por razões raciais e de classe, não galgaram os espaços de poder que vem ocasionando a corrosão do dispositivo.

Pelo amor de Deus, hoje um índio constrói uma casa no meio da praia e a Funai vem e diz que ali agora é reserva indígena. Se eu for eleito, vou dar uma foiçada na Funai, mas uma foiçada no pescoço. Não tem outro caminho

Recentemente, o presidenciável Jair Bolsonaro tem feito esse papel de requentar velhos debates como se grandes novidades fossem. Utilizando-se de dispensáveis figuras de linguagem em tempos de ódio, o candidato do PSL tem prometido dar uma “foiçada” no pescoço da Funai para acabar com a instituição que, segundo ele, “não serve mais”, pois demarca terras indígenas sem nenhum critério, baseando-se em “cocô petrificado de índio”.

“A Funai é um órgão que fica exigindo laudos e mais laudos porque, desculpe a linguagem, tem um cocô petrificado de índio no terreno, querendo dizer que porque lá passou um índio alguma vez na vida, não pode construir nada em cima. Pelo amor de Deus, hoje um índio constrói uma casa no meio da praia e a Funai vem e diz que ali agora é reserva indígena. Se eu for eleito, vou dar uma foiçada na Funai, mas uma foiçada no pescoço. Não tem outro caminho, não serve mais”, disse o candidato, em discurso a empresários do Espírito Santo, em agosto.

O candidato promete ainda não demarcar mais nem um centímetro de terras indígenas e, contraditoriamente, promete fazer uso da tese do marco temporal. Não fosse a desfaçatez do discurso, nada de novo haveria sob o sol. Não é de hoje que a Funai –e também o INCRA, o IBAMA e o ICMBio– são fortemente atacados pelos ruralistas, pois pensam criticamente os usos da propriedade privada.

Se esse ainda é um país democrático, o candidato, se eleito, terá que obedecer à convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), da qual o Brasil é signatário, e consultar todos os povos indígenas a respeito da extinção de uma das mais antigas instituições do Estado brasileiro. Aliás, aos amantes do militarismo, lembro que na Funai estão guardadas relíquias materiais e legados do marechal Rondon. (Teria sido Rondon um comunista? Não me surpreenderia essa tese em tempos de notícias sem lastro no real. Entre generais prefiro o humanista ao que brada indolências. Muito embora nenhum deles me apeteça).

Aos amantes do militarismo, lembro que na Funai estão guardadas relíquias materiais e legados do marechal Rondon. (Teria sido Rondon um comunista? Não me surpreenderia essa tese em tempos de notícias sem lastro no real)

Para além disso, ainda temos Constituição. E nossa Constituição tem uma história. Os princípios constitucionais, os objetivos e fundamentos da República não comportam a fala de que as minorias devem se curvar às maiorias ou devem desaparecer.

Embora saibamos que a Constituinte não engessa e não determina definitivamente as possibilidades de interpretação da norma constitucional, ela deve ser um elemento que estabelece uma margem e um ponto de partida que não podem ser ignorados.

Os debates realizados na Constituinte devem ser o primeiro limite semântico na aplicabilidade das normas constitucionais a respeito dos direitos territoriais indígenas, especialmente por terem sido escritas junto com os indígenas. Entender o processo político-jurídico pelo qual o compromisso foi estabelecido pode nos ajudar a densificar as interpretações que vem sendo feitas e, quiçá, transpor uma onda cíclica de constante reinterpretação casuística permeada pela influência de anseios sociais momentâneos e interesses político-partidários.

Não voltemos a ser o Brasil que nega suas origens ou que as aceita apenas docilizadas. Lutemos por um país tupinambárbaro, como diria Arnaldo Antunes, aceitemos nossa verdade tropical

Tivemos no pleito eleitoral de 2018 a primeira indígena a disputar a presidência da República, Sônia Guajajara, e a eleição da primeira mulher indígena para a Câmara dos Deputados, Joênia Wapixana. A luta continua, mas passa, sem dúvida, pela democratização das instituições. Não basta apostarmos em intérpretes sensíveis à causa, é preciso que eles próprios, os indígenas, possam interpretar institucionalmente as normas que lhes dizem respeito.

A Constituição consagrou o direito à diferença e o respeito à diversidade. Só quem não conhece a si mesmo tem medo da diferença do outro. Perder-se no outro também é se encontrar. Não voltemos a ser o Brasil que nega suas origens ou que as aceita apenas docilizadas. Lutemos por um país tupinambárbaro, como diria Arnaldo Antunes, aceitemos nossa verdade tropical, nossa antropofágica história, nossa alteridade.

Carolina R. Santana é indigenista, Doutoranda em Direito na UnB e advogada.

Esse texto se baseou em:

BRASIL. Diário da Assembleia nacional Constituinte. (Suplemento); 07 de abril de 1987, p. 179.  Disponível em aqui.

SANTANA, Carolina Ribeiro. (2018). “Direitos territoriais indígenas e o marco temporal: o STF contra a Constituição”. In: ALCÂNTARA, Gustavo Kenner, MAIA, Luciano Mariz, e TINOCO, Lívia Nascimento (Orgs.). Índios, direitos originários e territorialidade. Brasília: Editora ANPR, pp. 451- 479.

 


(3) comentários Escrever comentário

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Neide Martins Siqueira em 19/10/2018 - 20h29 comentou:

Lindo e emocionante texto, que nos traz animo e desejo de lutar e continuar lutando pelo fortalecimento da Funai e pela garantia dos direitos indígenas nesse tempo de desamor .

Responder

Miranda em 20/10/2018 - 10h41 comentou:

Se o boçal realmente chegar la, eu que sempre viajei para fora carregando o orgulho de ser brasileiro, passarei a ter vergonha…

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Gabriel Gualano em 24/10/2018 - 00h18 comentou:

Importantíssima e sensível contribuição de Carolina Santana no debate público nesse momento em que os direitos dos povos indígenas estão sob ameaça juntamente com os pilares mínimos de sustentação do estado democrático de direito. Uma lição de direito, ética e política.

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