Amor: a velhice como protagonista
Por Liliane Machado A velhice retorna como protagonista no filme Amor, concorrente ao Oscar 2013 nas categorias de melhor filme, direção, roteiro original, atriz e também de filme estrangeiro. A obra de Michael Haneke não nos permite chamar a decrepitude pelo eufemismo de terceira idade, termo que, aliás, é odiado por muitos dos que se […]
Por Liliane Machado
A velhice retorna como protagonista no filme Amor, concorrente ao Oscar 2013 nas categorias de melhor filme, direção, roteiro original, atriz e também de filme estrangeiro. A obra de Michael Haneke não nos permite chamar a decrepitude pelo eufemismo de terceira idade, termo que, aliás, é odiado por muitos dos que se encontram nessa faixa etária. Nem mesmo o belo amor que o casal de protagonistas nutre um pelo outro, após anos de vida em comum, consegue contornar a realidade inexorável acerca da etapa final da vida humana, pontuada por doença, solidão, movimentos lentos, faces enrugadas e convívio constante com a morte.
O mesmo tema foi abordado em outra produção francesa, exibida no circuito comercial brasileiro em 2012: E Se Vivêssemos Todos Juntos?, de Stéphane Robelin. No entanto, ao invés de um único casal em cena, o filme reunia um grupo de amigos que conviveram nos últimos 40 anos e que, no ocaso da vida, decidem que ficarão sob o mesmo teto, contrariando a opinião e o desejo de seus filhos.
O fato é que o egoísmo e a intransigência dos filhos pontuam as duas obras. A primeira reação deles, diante da doença dos progenitores, é sugerirem sua sumária internação em uma clínica de repouso, sob o auspicioso argumento de que é a coisa mais racional a ser feita. Robelin apresenta-nos as clínicas como o grande fantasma que assombra os velhos, e Haneke, ainda que de forma mais sutil, também questiona a prática da internação, sugerindo que se trata da forma civilizada que a sociedade contemporânea encontrou para livrar-se do incômodo da companhia de parentes em estado terminal.
Um diálogo entre o pai, Georges (Jean-Louis Trintignant), e a única filha do casal, Eve (Isabelle Huppert), que reproduzo de forma imprecisa a seguir, é bastante elucidativo sobre a visão diferenciada que ambos têm frente o desafio de encarar a doença degenerativa e os cuidados que Anne (Emmanuelle Riva), esposa e mãe, respectivamente, inspiram-lhes: “Papai, podemos conversar de maneira razoável?”, pergunta Eve ao pai, quando o vê desdobrando-se e definhando na tentativa de cuidar, sozinho, da esposa, prestes a sugerir-lhe a internação como única solução possível para o impasse que vivem. A filha limita-se a chorar e a se lamentar, em uma atitude tipicamente infantil e marcada pelo egocentrismo.
A resposta do pai é incisiva: “Sim, Eve, vamos falar de forma razoável, a realidade é que…” Então ele passa a descrever seu cotidiano de cuidador: limpar a mulher, dar banho, trocar a fralda, passar pomada no corpo para que não tenha feridas, tentar fazê-la pronunciar algumas frases e instigá-la a comer e a beber para que não morra de inanição, até que um dia tudo isso termine com a chegada da morte. Enquanto ela se desespera, ele segue em frente e não admite abandonar a companheira de modo algum.
No convívio diário, marcado pelo autoisolamento, o casal relembra fatos do passado, come, toma vinho, ri e discute demonstrando enorme carinho um pelo outro. Quando a doença se agrava, ele não arreda pé do seu lado. Se a ternura e o amor de casal emocionam na primeira hora do filme, é a realidade dura de um cuidador que sobressai da metade para o final da obra. Nesses momentos, reencontramos o cineasta de A Fita Branca (2009), dono de sobriedade narrativa e de um estilo que poderíamos chamar de realismo contido.
Ninguém melhor que Isabelle Huppert para interpretar a filha de postura elegante, fria e pouco amorosa. A atriz de desempenho impecável em obras como Madame Bovary (1991), Assunto de Mulheres (1988) e A Comédia do Poder (2006), dirigidos por Claude Chabrol, encarna o protótipo de uma geração habituada a ter tudo e a não doar nada; a encarar a velhice como um incômodo a ser descartado. Também representa a metáfora de uma sociedade que não suporta rugas, estrias e sobrepeso, como se tudo isso fosse a praga atual a ser combatida e extirpada do convívio humano.
Nas poucas cenas em que aparece no decorrer de Amor, ela imprime grandiosidade à direção perfeccionista de Haneke, que escolheu dois atores fetiches do cinema francês: Riva, a bela protagonista de Hiroshima, Mon Amour (1959) e Trintignant, o delicioso sedutor de Um Homem, Uma Mulher (1966), de Claude Lelouch, no qual faz par romântico com Anouk Aimée, e De Repente Num Domingo (1983), de François Truffaut, em que esbanja charme ao lado de Fanny Ardant.
Haneke obteve de Riva e Trintignant uma atuação sem precedentes, numa troca mútua de benefícios entre diretor, atores e público: o filme ganhou a Palma de Ouro de melhor filme no Festival de Cinema de Cannes de 2012, a segunda na carreira do diretor; propiciou visibilidade mundial para quem já parecia totalmente esquecido do público – Riva já tem uma torcida fervorosa para que vença como melhor atriz – e o público, por sua vez, pôde rever dois ídolos do passado, que surgem na tela dignos, belos e iluminados. É arrepiante como o cineasta de origem alemã explora a velhice como um momento de dor, mas também revestida por dignidade, sem a tentativa de truques de rejuvenescimento digital.
O cenário do filme é, basicamente, o confortável apartamento onde vive o casal. Ali, desenrolam-se dramas que reproduzem em microcosmo as tensões dos períodos mais difíceis da vida humana. Mas é também o espaço de belas surpresas, como a visita que um ex-aluno de Anne, agora um famoso concertista de piano, lhe faz, prestando a mais bela homenagem que a mestra poderia receber: um espetáculo solo. Por fim, quando a missão de Georges está cumprida e o apartamento toma ares de prisão, ele recebe a visita de uma pomba, que adentra a casa, aparentemente de maneira inadvertida, e inspira-lhe a buscar a liberdade, por meio de um ato (insano?) de amor. Um filme imperdível.
Os comentários aqui postados são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião da Socialista Morena. Todos as mensagens são moderadas. Não serão aceitos comentários com ofensas, com links externos ao site, e em letras maiúsculas. Em casos de ofensas pessoais, preconceituosas, ou que incitem o ódio e a violência, denuncie.
mercedes campora em 12/02/2013 - 14h33 comentou:
GOSTEI MUITO DO SEU COMENTÁRIO SOBRE O FILME. ADOREI! ESSE É UM FILME MUITO DURO, REAL E MAGNÍFICO. TODOS VAMOS PASSAR POR ESSA ETAPA NA VIDA! TOMARA QUE COM ALGUÉM QUE TENHA AMORRRRRRR!!!!!!!!!
camiseta em 12/02/2013 - 17h36 comentou:
Lindo seu espaço, Parabens Forte abraço Willian camisetas
Claudia Mogadouro em 12/02/2013 - 23h59 comentou:
Que beleza de crítica! E que boa a comparação com "E Se vivêssemos todos juntos?", um belo filme também, mas em outra chave (a da quase comédia). Em ambos vemos a crítica a essa geração dita adulta que não sabe o que fazer com os pais velhos. Haneke mais uma vez faz um filme que fica em nossa cabeça por muitas horas, dias, meses e acho que anos… "A Professora de Piano", "Cachè", "A Fita Branca" são filmes inesquecíveis!!!