Socialista Morena
Cultura

Capitão Fantástico contra a vidinha de merda da sociedade de consumo

Uma fábula sobre como é duro desafiar o sistema reinante, mesmo que você abra mão dele por completo

Ben e uma de suas filhas, Vespyr
Cynara Menezes
13 de fevereiro de 2017, 14h37

A certa altura do filme Capitão Fantástico, em cartaz nos cinemas, o pré-adolescente Rellian pergunta irritado ao pai, Ben (Viggo Mortensen):

– Que tipo de gente maluca celebra o aniversário de Noam Chomsky como se isso fosse um tipo de data oficial? Por que não celebramos o Natal como todo o resto do mundo?

Ben responde:

– Você preferia celebrar um elfo mágico fictício em vez de um humanitário vivo que fez tanto para promover os direitos humanos e o entendimento?

O menino se cala. Rellian é o “rebelde” da família, só que ao contrário: Ben e a mulher, Leslie, criam os seis filhos de maneira alternativa, no meio de uma floresta. As roupas são costuradas por eles, que também aprendem desde cedo a caçar, plantar e encontrar o próprio alimento, fugindo, portanto, da chamada “sociedade de consumo”. Rellian está de saco cheio de viver assim e a internação da mãe só faz aprofundar o conflito entre o garoto e o pai.

O que a maioria das crianças e dos adolescentes quer é justamente o oposto, ser “iguais a todo mundo”, base fundamental para a sociedade de consumo funcionar. Sem o desejo de ser igual, não existiriam grifes, por exemplo, capazes de seduzir jovens a pagar fortunas por uma blusa ou uma bolsa “da moda” que todo mundo tem. Mas os Cash decidiram que não queriam desse jeito para os filhos. Queriam que sentissem orgulho de ser “diferentes”, por isso cada um tem um nome único, inventado pelos pais. O caçula, Nai, inclusive, é uma criança sem gênero.

O conflito do filme é que, ao mesmo tempo que de fato aquelas crianças sentem orgulho de si mesmas, o contato com a “civilização” demonstra que também possuem inseguranças. Sentem-se ao mesmo tempo superiores e inferiores àquela sociedade que seu pai e sua mãe esnobaram. Contrastam maturidade e inocência: seu pai lhes acostumou a falar sobre tudo, sem reservas, mas se esqueceu de alertá-los para coisas prosaicas como paquerar uma garota.

Capitão Fantástico é uma fábula sobre como é duro desafiar o sistema reinante, mesmo que você abra mão dele por completo. Todos estamos programados a viver sob as regras do sistema e, se você foge delas, arrisca-se a sofrer e a ser punido, a ser visto como freak, uma aberração. A revolta de Rellian contra o Noam Chomsky Day ilustra isso –e se inspira numa celebração feita pelo diretor Matt Ross com os próprios filhos. Viver de forma anticapitalista num mundo capitalista é tão complicado quanto, para um ateu, se esquivar do Natal todos os anos.

Mas à ternura e à angústia despertadas pelo filme é adicionado ainda outro sentimento: frustração. A sensação de que hoje em dia criamos nossos filhos de uma maneira banal, automática. Submetidas a uma disciplina rígida de exercícios físicos e leituras, as crianças de Ben são incrivelmente agradáveis, encantadoras e interessantes, principalmente em contraste com os primos criados na cidade à base de muita televisão e videogames. Difícil não sentir uma invejinha dos resultados que ele conseguiu com seus meninos…

benigreja

(Ben e sua linda trupe)

A “sociedade de Noam Chomsky” emulada pela família Cash a partir das concepções do linguista, filósofo e ativista norte-americano está longe de ser perfeita, mas está impregnada de um humanismo que causa nostalgia. Será que um dia não fomos assim, capazes de sentar à mesa de jantar com nossos filhos e falar de literatura e ciência, em vez de permitir que passem a maioria de suas horas de folga absortos em si mesmos, mexendo num tablet? É constrangedor e incômodo se dar conta de como a vidinha confortável e previsível do mundo capitalista é, no fundo, uma vidinha de merda.

Temos todos os tipos de aparelhos eletrônicos que previa a ficção científica dos anos 1960 e nunca fomos tão pobres de espírito. As crianças do século 21 sabem mexer em qualquer bugiganga eletrônica, mas não teriam a menor ideia de como sobreviver no meio da mata se algum dia se perdessem em uma. Para sorte (ou azar) delas, dificilmente alguma criança toparia atualmente passar uma semana na natureza sem wi-fi.

A sociedade de consumo e a tecnologia trouxeram um efeito colateral bizarro, de nos tornar seres humanos vazios. Quantas horas de leitura o Facebook roubou de você hoje? Capitão Fantástico impacta por escancarar isso, por chacoalhar as certezas de todos, mesmo a dos que afirmam estar fazendo a sua parte, lutando por um mundo mais justo, com as nádegas confortavelmente instaladas sobre uma cadeira acolchoada e diante da tela de um computador.

É um paradoxo, porque em tese as facilidades das novas tecnologias deveriam servir para a gente se independizar da vida urbana e do caos das grandes cidades. Deveriam servir para a gente ter mais tempo para curtir a família, os amigos. E é todo o contrário o que está acontecendo: os gadgets estão roubando o tempo ocioso que temos porque nos viciamos neles. Como a heroína fez com a morfina, criamos uma dependência dos instrumentos que supostamente nos salvariam. E ela é transmissível às novas gerações.

Por outro lado, senti também que talvez exista um lugar no meio do caminho entre abdicar de tudo ou se embriagar na sociedade de consumo, chafurdar nela. Difícil é se dedicar a encontrar este caminho do meio, na correria em que vivemos. Há que se ter uma disciplina férrea, é isso que Ben ensina. Eu fiquei a fim de começar imitando o Noam Chosky Day. A propósito, é 7 de dezembro.

Capitão Fantástico – EUA, 2016. Direção: Matt Ross. Com: Viggo Mortensen, George McKay, Nicholas Hamilton, Annalise Basso, Samantha Isler, Shree Cooks, Charlie Shotwell.

 

 

 


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(9) comentários Escrever comentário

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Tavares França em 24/10/2017 - 12h32 comentou:

O filme é bom como divertimento, mas muito fraco intelectualmente. Pode ser bastante criticado tanto sob a ótica marxista, quanto sob a ótica história, religiosa, entre outras.
Pois bem, o Ben não tem nada de marxista. Marx e Engels não buscavam uma regressão civilizatória, uma vida “tribal”, sem a presença de tecnologia, de produtos industrializados. Ao contrário, eles chegaram a reconhecer avanços do capitalismo, e queriam uma sociedade “PÓS-CAPITALISTA”, ainda mais avançada, em que o povo detivesse o controle dos meios de produção, para que todos pudessem aproveitar os avanços tecnológicos. Portanto, nada a ver com essa “vida tribal” e hippie a qual o Ben sujeita os seus filhos, que seria algo mais próximo do “socialismo utópico”, tão criticado por Marx. Defender a visão de mundo do Ben é dá munição ao argumento ignorante de que um marxista não pode usufruir da tecnologia, aquela besteira de “esquerda caviar”

“Você preferia celebrar um elfo mágico fictício em vez de um humanitário vivo que fez tanto para promover os direitos humanos e o entendimento?”

Perdoe-me, mas um homem que preza tanto pelo conhecimento jamais diria uma besteiras dessas. A existência de Jesus como personagem histórico é um fato consensualmente atestado entre acadêmicos de todo o mundo, independentemente de filiação religiosa. Aliás, o Ben poderia usar os ensinamentos de Jesus como modelo para algumas das coisas que defende, pois Jesus não dava valor aos bens materiais e mostrava desprezo pelos ricos; além de ter sido perseguido e oprimidos pelos donos do poder da época. Por sinal, Chomsky, tão mencionado no filme, reconhece o papel positivo da religião em alguns momentos, por exemplo quando elogia os católicos quanto à “Rerum Novarum”, “a opção preferencial pelos pobres) e a Teologia da Libertação entre os padres da América Latina nos anos 80.
Ainda sobre religião/história, curioso ver um homem com tanto desdém pelo cristianismo dar “Os irmãos Karamazóv” de Dostoievski para o filho ler, um autor defensor do cristianismo e de seu poder redentor através do amor. Além de ouvirem Bach, outro inspirado totalmente pelo cristianismo a ponto de dizer que “At a reverent performance of music, God is always at hand with his gracious presence.”

Pois bem, um homem que, amargurado com a situação da sociedade atual, se isola e desiste do mundo. Ben é na verdade ótimo para o sistema, pois seria ideal para os opressores que os poucos oprimidos com consciência de sua opressão, simplesmente, abandonassem a vida em sociedade e desistissem de transformar o mundo.

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    Marcus Almeida em 23/02/2018 - 15h53 comentou:

    Exemplar comentário! Noam Chomsky criticaria o Ben. Note o que ele escreveu sobre ser socialista e ter dinheiro:

    “Well, what capitalist system? Do you use a computer? Do you use the internet? Do you take an airplane? That comes from the state sector of the economy. I’m certainly a beneficiary of this state-based, quasi-market system; does that mean that I shouldn’t try to make it a better society?

    If I gave away my car, I would feel even more guilty. When I go to visit peasants in southern Colombia, they don’t want me to give up my car. They want me to help them. Suppose I gave up material things — my computer, my car and so on — and went to live on a hill in Montana where I grew my own food. Would that help anyone? No.”

    “Seu eu abandonasse as coisas materiais — meu computador, meu carro — e fosse morar numa montanha em Montana onde colheria minha própria comida. Isso ajudaria alguém? Não”.

    Estão vendo? Noam Chomsky acha que figuras como Ben não ajudam ninguém!!!!

jeckyl em 23/11/2019 - 17h03 comentou:

Tb achei o filme prepotente, o caoitao fantastico eh pedante, mal humorado, como se castigasse os filhos com a propria presenca. Nao me parece mesmo com alguem q goste dos semelhantes, e essa parece ser a base de sua revolta. Eh alguem que nao gosta dos outros, nao alguem que se revolta com injusticas. Porque alguem que quer voltar ao primitivismo se preocuparia com uma ciencia tao “inutil” do ponto de vista desse pragmatismo, como seria a fisica quantica (naquele contexto, no meio de uma floresta, sem nem mesmo um aparelho eletronico que precise de algum tipo de conhecimento a nivel subatomico?). O capitao fantastico ta mais pros alienados sobrevivencialistas americanos do que pra alguem critico da sociedade do ponto de vista da esquerda.

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Miguel Lopes em 20/02/2020 - 12h40 comentou:

“Somos finos como papel.

Existimos por acaso entre as percentagens, temporariamente.

E esta é a melhor e a pior parte, o fator temporal. E não há nada que se possa fazer sobre isso. Você pode sentar no topo de uma montanha e meditar por décadas e nada vai mudar. Você pode mudar a si mesmo para ser aceitável mas talvez isso também esteja errado. Talvez pensemos demais. Sinta mais, pense menos.”

Bukowski,

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James Moriarty em 11/02/2021 - 14h28 comentou:

Em relação ao filme, não me apeguei aos detalhes citados nos comentários. A principal essência do filme (pra mim) é de que o radicalismo, em todos aspectos, é danoso ao ser humano. Ou seja, o filme mostra que o segredo da vida é o equilíbrio em qualquer circunstância.

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Kalu em 11/06/2022 - 09h30 comentou:

Acho que a ideia principal do filme não foi dizer que Ben estava certo e era um ser superior. Se fosse o caso, ele não teria feito tantas cagadas. O principal foi mostrar a reação da nossa sociedade, (essa sim,
“superior”) em relação a quem vive ou pensa de forma diferente. Essa reação foi muito bem retratada.

Gostei muito do final, quando o filho mais velho, sedento por conhecer o mundo real, vai à Namíbia ao invés de Harvard.

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Sheila em 13/09/2022 - 14h36 comentou:

Bom, não vi por esse lado. O filme começa com a família e seus corpos pintados todo de preto… O filho mais velho caçando brutalmente um cervo, que após matar come a sua carne crua ensanguentada. O jovem é seguidor de Mao tse tung, um comunista. O pai alerta: “o comunismo pode ser tão genocida quanto o capitalismo”… O pai ensina seus filhos a serem brutos ao mesmo tempo que os colocam para ler e conhecer as ciências. Há ali um contante conflito entre a brutalidade e o conhecimento. No fim, as atitudes perserveram sobre qualquer ideologia. O homem é um ser pensante e racional… Na minha opinião, a ideologia, que esse filme parece atacar, desde o início, é comunismo e não a vidinha de merda do consumismo capitalista que você, socialista morena, indaga com veemencia as pessoas assistirem…. O marxismo nunca pregou vida bruta e alternativa na selva. Muito pelo contrário, para ler o capital de Marx, o sociedade precisa do conhecimento e, óbvio, do consumo. A sociedade precisa consumir, sobretudo ciencia. Seria melhor você recomendar a “Costa do Mosquito”, por exemplo, que retrata bem a sociedade consumista. Livro que virou filme estrelado por Harrison Ford em 1986, do que este filme, que coloca as ideologias em completo conflito existencial

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Kássio em 30/03/2023 - 10h33 comentou:

Belíssimo. Ótimo entretenimento, como se pode dizer de praticamente todos os filmes estrelados por Viggo Mortensen.
Além disso traz críticas válidas a diversas ideologias políticas, sendo mais diretamente ao consumismo e indiretamente a outras, como ao anarquismo e ao socialismo utópico.
E finalmente demonstra com clareza a importância do homeschooling e o total fracasso do ensino tradicional a cargo do Estado.

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MANOEL MALHEIROS TOURINHO em 18/05/2023 - 17h53 comentou:

penso que houve exageros nos comentários. O filme não é um grito contra um sistema; o sistema capitalista, e sim contra o exagero de consumo que ameaça não só a natureza mas os sistemas de valores humanísticos e a ética relacional: o Criador, a Terra e o Homem. Não digo que todos temos que ser o Ben e sua familia, mas uma mudança nos estilos de vida é necessário e urgente.

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