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Como o Chile se tornou um laboratório neoliberal (e sua influência sobre o Brasil de Bolsonaro)

Em instalação, artista chileno conta a história dos Chicago boys que inspiram Paulo Guedes e a cumplicidade deles com os crimes de Pinochet

Detalhe da exposição Tempos Incompletos. Foto: divulgação
The Clinic
05 de junho de 2019, 14h30

Por Carolina Espinoza Cartes, no The Clinic

Tradução Cynara Menezes

A crítica ao neoliberalismo está em alta na Espanha. Talvez pelo resultado das últimas eleições, onde a direita teve uma votação importante e o fantasma da privatização ronda de novo o estado de bem-estar social que, ainda que abalado pelos cortes da crise, ainda tem importantes bastiões na saúde e educação.

Duas obras recordam na capital espanhola o neoliberalismo aplicado no Chile após a ditadura de Pinochet: Shock, o condor e o puma, obra teatral do dramaturgo Andrés Lima, e a mostra Tempos Incompletos: Chile, primeiro Laboratório Neoliberal, cuja obra principal é do artista chileno Patrick Hamilton.

Este sistema econômico foi a herança mais permanente da ditadura Pinochet, um modelo que muitos celebram em termos de crescimento e desenvolvimento, mas que é muito questionável em termos morais, já que é incapaz de abraçar a justiça e a igualdade

O jornal The Clinic conversou com ele diante de sua obra, estendida como um importante tabuleiro em um lugar privilegiado do Museu de Arte Contemporânea Reina Sofía. Sobre o tabuleiro, blocos alaranjados e negros (referência a El Ladrillo, principal texto da política econômica dos Chicago boys para Pinochet) compõem a instalação com arquivos de imagens que documentam a implantação do modelo neoliberal no Chile.

Para o artista, a prova de que as teses neoliberais continuam em ação no mundo está no Brasil atual. “O modelo dos Chicago boys não é algo do passado, circunscrito apenas ao caso chileno, mas um fenômeno muito mais amplo e atual, o que fica evidente no caso de Bolsonaro no Brasil, que se declarou um admirador fervoroso de Pinochet e que pôs um Chicago boy, Paulo Guedes, no Ministério da Economia”, disse.

O artista plástico Patrick Hamilton em Madri. Foto: Miguel Angel González/The Clinic

– Sua obra busca mostrar as consequências da doutrina do choque implantada pela ditadura chilena. Acredita que as pessoas desconhecem tanto as causas quanto as consequências do neoliberalismo?
– Creio que para as pessoas são mais evidentes as consequências do neoliberalismo do que as causas, e por isso foi interessante para mim realizar um trabalho que fala justamente das origens do neoliberalismo (Sociedade Mont Pèlerin), sua difusão e transmissão através do ensino universitário (convênio Universidad Católica de Chile e Universidade de Chicago, em 1956), sob que condições é implantado no Chile e suas consequências, que podemos ver até o dia de hoje no Chile e no mundo. Uma das teses da exposição é que o modelo dos Chigabo boys não é algo do passado, circunscrito apenas ao caso chileno, mas um fenômeno muito mais amplo e atual, o que fica evidente no caso de Bolsonaro no Brasil, que se declarou um admirador fervoroso de Pinochet e que pôs um Chicago boy, Paulo Guedes, no ministério da Economia.

O modelo dos Chicago boys não é algo do passado, circunscrito apenas ao caso chileno, mas um fenômeno amplo e atual, o que fica evidente com Bolsonaro, admirador fervoroso de Pinochet que pôs um Chicago boy, Paulo Guedes, no ministério da Economia

– Como o público espanhol reagiu à exposição?
– Nós chilenos estamos acostumados a um neoliberalismo selvagem, mas aqui na Espanha se percebe o perigo das medidas neoliberais em relação à sabotagem do sistema de bem-estar social –saúde e educação públicas gratuitas e de qualidade, Previdência social– que impera apesar da crise e das medidas de austeridade impostas à Espanha para sair da crise. As pessoas com quem conversei se mostravam muito interessadas e receptivas a estes temas, já que, embora a história específica do caso chileno não seja tão conhecida, o conceito de neoliberalismo após a crise de 2008 esteve no centro do debate público em termos de questionamento ao modelo de mercado, à especulação financeira e imobiliária ou à crise do meio ambiente.

– Por que seu interesse no tema e como começa a reunir materiais sobre os Chicago boys, El Ladrillo e o neoliberalismo no Chile? 
– Desde meados dos anos 1990, quando estava na universidade, comecei a definir meu trabalho artístico como uma espécie de reflexão estética em torno das consequências da “revolução neoliberal” implantada no Chile por Augusto Pinochet e o grupo de economistas conhecidos como Chicago boys durante os anos 1970 e 1980 até agora. Me interessava a relação entre arte e política, arte e sociedade, mas me angustiava o tema da memória em relação à violência de Estado, ao qual muitos artistas do meu entorno se dedicavam. Então fui dirigindo minha pesquisa tanto formal quanto conceitual às complexas consequências que o sistema neoliberal produziu no Chile, assim como em tantos países ao redor do mundo.  Meu interesse se dá justamente pelo fato de que o Chile foi reconhecidamente o laboratório do neoliberalismo, o primeiro país onde se implanta um sistema econômico mediante um golpe militar. Também porque este sistema econômico, social e cultural foi a herança mais permanente da ditadura de Pinochet, um modelo que muitos celebram em termos de crescimento e desenvolvimento, mas que, como sabemos, é muito questionável em termos morais, já que é incapaz de abraçar a justiça e a igualdade. Desde então, ao longo dos anos, fui formando uma bibliografia sobre o tema e também colecionado documentos e as reflexões de Nelly Richard e Tomás Moulian a respeito.

– Quem convence Pinochet para que os Chicago Boys liderem a “reativação” econômica do Chile? Como se produz este processo?¿
– Foi o almirante José Toribio Merino quem, no final de 1973, através de Roberto Kelly, recém nomeado diretor da ODEPLAN (Escritório de Planejamento Nacional, na sigla em castelhano), contata um setor dos Chicago boys,  Emilio Sanfuentes e Sergio De Castro, que já haviam redigido um programa econômico de corte liberal, monetarista e alternativo ao modelo socialista da UP (Unidad Popular, de Salvador Allende). Este texto será logo conhecido como El Ladrillo e servirá de base para a política econômica do governo militar. Sergio de Castro é nomeado assessor do ministro da Economia, primeiro o General González e depois Fernando Léniz, semanas após o golpe. Jorge Cauas, ministro da Fazenda de Pinochet, começa com o Plano de Recuperação Econômica, que logo Sergio Castro intensifica no Ministério da Economia, pasta que assume no ano de 1975. Assim a visão dos Chicago Boys começa a se impor e suas medidas econômicas se implantam sem anestesia no Chile. Em março de 1975, o polêmico Milton Friedman visita o Chile, se reúne com Pinochet, acompanhado de Arnold Harberger, e lhe diz que as medidas que estão sendo aplicadas são as corretas, mas recomenda que, diante de uma economia doente, não se podem tomar medidas graduais, e sim executar uma ‘terapia de choque’.  Assim segue a história em um contexto onde se falava de liberdade econômica ao mesmo tempo que existia uma absoluta repressão das liberdades civis e sociais, perseguição política, tortura, morte e desaparecimentos.

Houve uma crítica quase imediata à relação entre neoliberalismo e genocídio e a cumplicidade entre os economistas de Chicago e a ditadura, como a famosa carta que Orlando Letelier publica uma semana antes do seu assassinato, 'Os Chicago boys no Chile: o terrível impacto da liberdade econômica'

– Onde estão os Chicago boys quando o  modelo começa a apresentar furos e o que se recomenda a respeito?
– Continuam no governo. A grande crise econômica de 1982 tem como protagonista o mesmo Sergio de Castro que era então o ministro da Fazenda. De fato ele é responsabilizado parcialmente pela crise, dada a sua obstinação em manter o preço do dólar fixo em 39 pesos, quando todo mundo recomendava a desvalorização.

– Sua obra faz um recorrido pelas origens da Escola de Chicago e o sucesso de sua implantação em Chile graças à ditadura até os elogios ao sistema neoliberal chileno feitas recentemente por Jair Bolsonaro. Antes talvez houvesse mais recato no panorama internacional na hora de exaltar os benefícios do neoliberalismo, agora parece que se perdeu a vergonha… 
– Nunca houve vergonha por parte de certos grupos em exaltar as conquistas do neoliberalismo no Chile. Desde sempre se disse no Chile e no mundo que Pinochet, ‘apesar dos lamentáveis ataques aos direitos humanos’, realizou um grande trabalho na economia chilena. O que sucede é que este reconhecimento supõe primeiro menosprezar o terrorismo de estado que se utilizou para implantar o modelo, assumi-lo como parte dos custos, e segundo, que este mesmo modelo privilegiou o crescimento a todo custo, sem medir a grande desigualdade que provocou. Então o desenvolvimento que o desprezível Bolsonaro exalta tem a ver com essa visão totalmente parcial e repetida do ‘milagre econômico chileno’.  Paralelamente a isto, é preciso dizer que houve uma crítica quase imediata à relação entre neoliberalismo e genocídio e a cumplicidade entre os economistas de Chicago e a ditadura desde o princípio, nos anos posteriores ao golpe. Sem ir mais longe, Andre Gunder Frank publicou suas cartas abertas à escola de Chicago e sua intervenção no Chile, dirigidas a Milton Friedman e Arnold Harberger, assim como a famosa carta que o ministro das Relações Exteriores de Allende, Orlando Letelier, publica na The Nation uma semana antes do seu assassinato, intitulada eloquentemente ‘Os Chicago boys no Chile: o terrível impacto da liberdade econômica’.

Os Chicago boys em 1957: Sergio de Castro, ministro de Pinochet, é o último à direita. Foto: Ernesto Fontaine

– Os Chicago boys se estenderam por toda a América Latina. Que região o neoliberalismo ainda não conquistou e por quê?
– As medidas do receituário econômico do neoliberalismo estão no mundo todo. Salvo alguns países europeus com um sólido sistema de bem-estar social, sobretudo os países do norte da Europa, no resto do mundo o neoliberalismo campeia, com maior ou menor intensidade. Se poderia dizer que poucos países vivem em um capitalismo do bem-estar e a grande maioria vive em um capitalismo do mal estar.

O neoliberalismo é a ideologia mais bem sucedida dos últimos 40 anos, já que equipara de forma enganosa os conceitos de mercado aos de liberdade e democracia. Este desprezo pelo que é público esconde um emaranhado de relações mediante as quais o Estado deve operar a favor do livre mercado

– Como você explicaria a um jovem de 20 anos o que é o neoliberalismo?
– Eu diria que o neoliberalismo é um sistema econômico que se baseia em um programa político que se define por um desprezo absoluto por qualquer ideia coletivista e que defende a superioridade técnica, moral e lógica do privado sobre o público, e que define o mercado como a expressão material e concreta da liberdade individual. É sem dúvida a ideologia mais bem sucedida dos últimos 40 anos, já que equipara de forma enganosa os conceitos de mercado aos de liberdade e democracia. Também lhes diria que este desprezo pelo que é público, comum a todos, de interesse geral, esconde um complexo emaranhado de relações mediante as quais o Estado deve operar a favor do livre mercado. É por isso que para a ideologia neoliberal a política está a serviço do mercado e deve garantir, mediante um conjunto de leis e mudanças institucionais, que nada interfira no livre funcionamento do mercado, já que qualquer tipo de regulação significa um obstáculo para a ‘liberdade’.

 


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