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Direitos Humanos

Como o “mocinho com uma arma” se tornou uma fantasia mortal nos EUA

Já houve vezes em que um civil com uma arma foi bem-sucedido ao intervir num tiroteio, mas esses casos são raros

Detalhe de pôster de "Confissão", de 1947, com Humphrey Bogart
The Conversation
05 de agosto de 2019, 16h56

Neste final de semana, houve mais dois ataques em massa em menos de 24 horas nos EUA. Em El Paso, Texas, um atirador entrou numa loja da Walmart e disparou mirando “hispânicos” (aparentemente sob influência do presidente do país, Donald Trump, cujos ataques aos “estrangeiros” incluem até parlamentares da oposição) e matou pelo menos 22. Em Dayton, Ohio, outro cara chegou atirando na calçada de um bar e matou 9 pessoas, entre elas sua própria irmã.

Neste artigo do site The Conversation, a professora Susanna Lee, da Universidade Georgetown, investiga a origem do mito de que um mocinho com uma pistola na mão seria capaz de impedir este tipo de chacina, como defendem o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, e seus aliados para justificar a liberação de armas de fogo no país.

Leia, traduzimos para você.

***

Por Susanna Lee*, no The Conversation
Tradução Maurício Búrigo*

No final de maio, um atirador em massa matou 12 pessoas num centro municipal em Virginia Beach. Os empregados haviam sido proibidos de portar armas no trabalho, e alguns lamentaram que esta medida houvesse impedido que “mocinhos” eliminassem o atirador.

Esta alegoria – “o mocinho com uma arma” – tornou-se lugar-comum entre ativistas do direito às armas. De onde veio isso?

Outras culturas possuem suas novelas de detetive. Mas foi especificamente nos 
Estados Unidos que o “mocinho com uma arma” se tornou uma figura heroica e uma fantasia cultural

Em 21 de dezembro de 2012, uma semana depois que Adam Lanza atirou e matou 26 pessoas na Escola Primária Sandy Hook em Newtown, Connecticut, o vice-presidente executivo da Associação Nacional do Rifle (NRA, na sigla em inglês), Wayne LaPierre, declarou durante uma conferência de imprensa que “o único jeito de deter um bandido com uma arma é um mocinho com uma arma.”

Sempre, desde então, em resposta a cada tiroteio em massa, autoridades, políticos e usuários de mídias sociais a favor das armas papagueiam alguma versão do bordão, seguida de apelos a que se arme os professores, se arme os fiéis ou se arme os funcionários públicos. E sempre que um cidadão armado elimina um criminoso, os canais da mídia conservadora voltam a repetir a ladainha.

Mas o arquétipo do “mocinho com uma arma” data de muito antes da conferência de imprensa de LaPierre em 2012. Há uma razão pela qual suas palavras calaram tão fundo. Ele havia tocado num arquétipo norte-americano bem peculiar, cujas origens reconstituí até à ficção policial barata americana no meu livro A Ficção Policial Linha-Dura e o Declínio da Autoridade Moral (tradução livre para Hard-Boiled Crime Fiction and the Decline of Moral Authority).

Outras culturas possuem suas novelas de detetive. Mas foi especificamente nos EUA que o “mocinho com uma arma” se tornou uma figura heroica e uma fantasia cultural. Com início nos anos 1920, um certo tipo de protagonista começou a aparecer na ficção policial norte-americana. Vestia muitas vezes uma capa-de-chuva e fumava cigarros. Não falava muito. Era decente, individualista –e estava armado.

Esses personagens foram apelidados de “linha-dura”, um termo que se originou no final do século 19 para descrever “homens durões, astutos, incisivos, que não pediam nem esperavam nem transmitiam qualquer simpatia, com quem não se podia tomar liberdades.” A palavra não descrevia alguém que fosse um simples valentão; comunicava uma persona, uma atitude, todo um jeito de ser.

O problema com esse arquétipo é que ele é tão-somente isso: um arquétipo. Uma fantasia da ficção. Na ficção barata, os detetives nunca falham. Na vida real, é mais provável que um civil com uma arma seja morto do que mate um agressor

Muitos estudiosos creditam a Carroll John Daly ter escrito a primeira história de detetive linha-dura. Intitulada Three Gun Terry, foi publicada na revista Black Mask em maio de 1923. “Me mostre o sujeito,” avisa o protagonista, Terry Mack, “e se ele estiver mesmo atrás de mim e for um cara que necessita uma bela matança, ora, sou eu o cara pra fazer o serviço.”  Terry também deixa o leitor ficar sabendo que é um atirador infalível: “Quando eu dou um tiro, não tem essa de concurso para saber onde vai chegar a bala.”

Desde o início, a arma era um acessório crucial. Como o detetive só atirava em bandidos e que nunca errava, não havia nada a temer. Parte da popularidade desse tipo de personagem tinha a ver com os tempos. Num período de Lei Seca, crime organizado, corrupção no governo e populismo em ascensão, o público era atraído pela ideia de um aventureiro bem-armado, bem-intencionado –alguém que pudesse vir heroicamente em defesa das pessoas comuns. Durante todos os anos 1920 e 1930, histórias que apresentassem esses personagens tornaram-se extremamente populares.

Tomando o bastão de Daly, autores como Dashiell Hammett e Raymond Chandler tornaram-se titãs do gênero. As tramas de suas histórias eram diferentes, mas seus protagonistas eram na maior parte os mesmos: detetives particulares de fala dura e tiros certeiros. (Trocadilho entre o adjetivo “straight-shooting”, “que atira direto, direito, em linha reta”, e o substantivo “straight shooter”, “pessoa franca, sincera; honesta; reta, direita”.  N. do T.)

Numa das primeiras histórias de Hammett, o detetive tira a arma da mão de um homem com um disparo e daí graceja que é um “atirador razoável –nem mais, nem menos.” (Aqui também um trocadilho com “fair shot”, onde “fair”, adj. pode significar tanto “justo” quanto “satisfatório”. N. do T.)

O “mocinho com uma arma” é branco. Isso explica por que, quando um negro com uma arma tentou impedir um tiroteio num shopping no Alabama –e a polícia atirou nele e o matou– a NRA não fez comentários?

Num artigo de 1945, Raymond Chandler tentou definir esse tipo de protagonista: Um homem que não seja ele mesmo infame, que não esteja maculado nem com medo, deve passar por essas ruas infames… Deve ser, usando uma expressão um tanto gasta, um homem decente, por instinto, por inevitabilidade, sem que pense nisso e, claro está, sem que o diga.”

Conforme os filmes ficavam mais populares, o arquétipo salpicava na tela de cinema. Humphrey Bogart interpretava o Sam Spade de Dashiell Hammett e o Philip Marlowe de Raymond Chandler para grande aclamação.

Ao fim do século 20, o destemido mocinho que carregava uma arma havia se tornado um herói cultural. Havia aparecido em capas de revista, cartazes de cinema, na televisão e em jogos eletrônicos.

Entusiastas do direito às armas abraçaram a ideia do “mocinho” como um modelo a se emular – um papel que apenas precisava de pessoas de verdade para se meterem a interpretá-lo. A loja da NRA vende até mesmo camisetas com o bordão de LaPierre, e encoraja compradores a “mostrar a todos que você é o ‘mocinho’” ao comprar a camiseta.

O problema com esse arquétipo é que ele é tão-somente isso: um arquétipo. Uma fantasia da ficção. Na ficção barata, os detetives nunca falham. Seu timing é preciso e seus motivos são irrepreensíveis. Nunca atiram acidentalmente em si mesmos ou num circunstante inocente. É raro que sejam mentalmente instáveis ou estejam cegos de raiva. Quando entram em confronto com a polícia, é porque com frequência estão fazendo o trabalho da polícia melhor do que a própria polícia.

Outro aspecto da fantasia envolve ser talhado para o papel. O “mocinho com uma arma” não é um cara qualquer –é um branco. Em Three Gun Terry, o detetive prende o vilão, Manual Sparo, com algumas palavras duronas: “’Fale inglês’, eu digo. Não vai ser um pouco de gentileza que vai adiantar alguma coisa pra ele agora”.

Um estudo de 2017 da Agência Nacional de Pesquisa Econômica norte-americana revelou que leis de direito de porte fazem aumentar, em vez de diminuir, crimes violentos

Em Snarl of the Beast (“O Rosnado da Besta Fera, em tradução livre”), de Daly, o protagonista, Race Williams, pega um vilão imigrante, resmungão e monstruoso. Poderia isso explicar por que, em 2018, quando um negro com uma arma tentou impedir um tiroteio num shopping no Alabama –e a polícia atirou nele e o matou– a NRA, em geral ávida por defender mocinhos com armas, não fez comentários?

A maioria dos entusiastas das armas não está à altura do ideal ficcional do atirador firme, justo e infalível. Na verdade, pesquisas mostraram que a liberdade de carregar uma arma desencadeia muito mais caos e carnificina que heroísmo. Um estudo de 2017 da Agência Nacional de Pesquisa Econômica revelou que leis de direito de porte fazem aumentar, em vez de diminuir, crimes violentos. Taxas mais elevadas de propriedade de armas foram associadas a taxas mais elevadas de homicídio. A posse de armas está relacionada ao aumento de violência nas estradas.

Já houve vezes em que um civil com uma arma foi bem-sucedido em intervir num tiroteio, mas esses casos são raros. Aqueles que carregam armas com frequência têm as próprias armas usadas contra si. E é mais provável que um civil com uma arma seja morto do que mate um agressor. Mesmo em casos em que uma pessoa é paga para estar de guarda com uma arma, não há garantia alguma de que cumprirá tal dever.

Centenas de milhões de romances linha-dura foram vendidos. Os filmes e programas de televisão que eles inspiraram alcançaram milhões mais. O que começou como entretenimento virou uma fantasia norte-americana duradoura. Mantê-la tornou-se uma obsessão mortal.

*Susanna Lee é professora de Literatura Comparada e Francês na Georgetown University

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Miranda em 06/08/2019 - 10h56 comentou:

Parabéns pelo excelente artigo. Conhecer as raízes de comportamentos é essencial pra gente ver a realidade social sem disfarces.

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