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Quando os homens terão coragem de participar de uma campanha como #primeiroassédio?

Nas últimas semanas, mulheres de todo o Brasil espalharam pelas redes sociais depoimentos sobre abusos que sofreram na infância, sob a hashtag #primeiroassédio. Os relatos tocantes me deixaram pensando: por que os homens não se juntaram a elas? Fica parecendo que meninos não sofrem abusos sexuais, embora a realidade seja completamente distinta. De acordo com […]

Cynara Menezes
06 de novembro de 2015, 18h16

Nas últimas semanas, mulheres de todo o Brasil espalharam pelas redes sociais depoimentos sobre abusos que sofreram na infância, sob a hashtag #primeiroassédio. Os relatos tocantes me deixaram pensando: por que os homens não se juntaram a elas? Fica parecendo que meninos não sofrem abusos sexuais, embora a realidade seja completamente distinta. De acordo com as estatísticas, um em cada seis crianças do sexo masculino sofre abuso sexual antes dos 18 anos. 40% das vítimas de abuso sexual são meninos, mas estes números podem estar subestimados.

Com as meninas, como se viu nos depoimentos, o assédio pode ocorrer dentro de casa, mas também na rua: desde a mais tenra idade, crianças do sexo feminino são alvo de cantadas grosseiras por parte de homens adultos. Com os meninos, 60% dos abusos ocorrem dentro de casa. Seus algozes são pessoas da própria família, vizinhos e meninos mais velhos. A vergonha de contar faz com que a imensa maioria dos garotos esconda isso até mesmo dos entes queridos, acarretando problemas psicológicos e de relacionamento na idade adulta.

Para tentar entender por que os homens não conseguem enfrentar estes fantasmas, entrevistei o psicólogo Jean Von Hohendorff, especialista em abuso sexual a meninos, um tema sobre o qual há poucas pesquisas no Brasil – os estudos sobre abusos a meninas são mais frequentes, o que corrobora a existência de um imenso tabu em torno do assunto. Hohendoff publicou trabalhos, um livro e um documentário sobre a violência sexual contra crianças do sexo masculino. Assista abaixo:

Socialista Morena – Você chegou a ver a campanha #primeiroassédio? É mais correto falar “assédio” ou “abuso”? Por que os homens temem fazer esse tipo de confissão?

Jean Von  Hohendoff – Sim, inclusive assisti um vídeo de um jornal aqui do RS, Zero Hora, no qual algumas repórteres mulheres deram seu depoimento sobre suas primeiras experiências de assédio sexual. O termo assédio sexual não é incorreto. Inclusive, há o crime de assédio sexual na legislação brasileira. Acredito que, para esta campanha, o uso do termo assédio sexual esteja adequado, mas defendo que se trata de uma violência e deve ser encarada como tal. Denominar apenas de assédio pode abrandar isto, não refletindo toda a gravidade do fenômeno. Quanto aos homens temerem fazer este tipo de confissão, temos que considerar o histórico da violência sexual como um problema de saúde pública, expectativas de gênero e padrões de masculinidade. Historicamente, a violência sexual esteve vinculada à vitimação de meninas e mulheres, tanto que foi o movimento feminista que, nas décadas de 1950 e 1960, buscou dar visibilidade a estes casos. Até 2009, por exemplo, o crime de estupro em nosso país era restrito às situações de penetração pênis-vagina, desconsiderando casos em que havia penetração anal, que é uma das formas de violência sexual contra meninos e homens. No Canadá, a mudança da legislação ocorreu na década de 1980, enquanto que alguns estados dos EUA ainda mantêm o entendimento antigo. Percebe-se, então, que a vitimação masculina teve pouca visibilidade social ao longo dos anos e, atualmente, este panorama tem se transformado. Nos Estados Unidos, por exemplo, existem entidades de apoio específicas para vítimas masculinas. Há, inclusive, um projeto chamado The Bristlecone Project, no qual homens que sofreram violência sexual dão seus depoimentos e estes são divulgados online. Mesmo com estas iniciativas, muitos meninos e homens guardam suas experiências de violência sexual em segredo devido ao papel de masculinidade e as expectativas de gênero vigentes. A visão que se tem do masculino é a de ser forte, invulnerável, que não demonstra fragilidades. Esta visão não é compatível com o papel de vítima, pois este papel remete à vulnerabilidade. As expectativas de gênero relacionadas ao sexo masculino não são coerentes com o papel de vítima.

– Confessar ter sido vítima de abuso é difícil para ambos os sexos, mas, no caso das mulheres, contar não põe em xeque sua orientação sexual. Está aí a origem da dificuldade?

– Sim. O temor de que a sua masculinidade seja colocada em xeque pode fazer com que as vítimas do sexo masculino não falem a respeito. Quando os agressores também são do sexo masculino, pode haver o receio de que as pessoas questionem a orientação sexual da vítima, tendo em vista que vivemos numa sociedade heterossexista. Mesmo nos casos em que um menino ou homem é violentado sexualmente por uma mulher, a tendência é a que a vítima não revele, pois teme que sua masculinidade seja questionada, pois, em sociedades machistas, o homem, seja qual for sua idade, deve sempre estar pronto para o ato sexual. O machismo é ruim tanto para as mulheres quanto para os próprios homens. Ao se estipular comportamentos típicos de um “macho”, nossa sociedade acaba impondo regras aos homens que, muitas vezes, trazem sofrimento. Perceber o menino e o homem como um ser forte, estóico, faz com que os indivíduos não possam demonstrar fragilidades. Mesmo nas situações nas quais não há violência, mas que meninos e homens aparentam fragilidade, sua masculinidade é questionada. Os resultados de estudos com homens que foram vítimas de violência sexual na infância indicam que as dúvidas quanto à orientação sexual, sejam do próprio menino ou homem, ou de familiares e da sociedade em geral, é o principal fator para a manutenção do silêncio sobre o ocorrência da violência sexual.

– Meninos são mais abusados pelo mesmo sexo ou também pelo sexo oposto?

– Os estudos indicam que o mais comum são agressores do mesmo sexo. No entanto, acredita-se que casos envolvendo mulheres agressoras possam permanecer em segredo. Isto tende a ocorrer porque meninos e homens teriam resistência para revelar estas situações, pois contraria a expectativa social atribuída ao gênero masculino. Por outro lado, as características atribuídas à figura feminina (“frágil”, “protetora”) não parecem coerentes com o papel de agressora.

– Até por essa razão, as estatísticas sobre abusos são menos frequentes em relação aos meninos. É possível que as estatísticas existentes estejam subestimadas?

– Sim. Muitos casos podem permanecer em segredo. Temos que lembrar que as estatísticas disponíveis são baseadas somente nos casos revelados. No entanto, estudos de meta-análise sobre a prevalência da violência sexual contra crianças e adolescentes na população em geral indicam maior predominância de meninas vítimas. Mesmo assim, os meninos poderiam não revelar nem mesmo num estudo devido aos fatores expostos nas respostas anteriores.

abuso

(Ilustra de Sam Dahl)

– Onde são os espaços do abuso masculino? Mais em casa ou na rua? Quem são os abusadores?

– Temos pouquíssimos dados da realidade brasileira, infelizmente. Posso responder esta pergunta com base em um estudo que realizamos recentemente. Analisamos notificações de 239 casos de violência sexual contra meninos. Destas, cerca de 60% foram intrafamiliares, sendo a residência da vítima o local de ocorrência mais frequente (cerca de 80%). Por fim, em cerca de 94% os agressores foram do sexo masculino.

– Que tipo de consequências esconder este abuso pode trazer para o homem em sua vida adulta?

– Não há uma síndrome, ou seja, um conjunto de sintomas ou consequências que seja típica. No entanto, dificuldades de relacionamento interpessoal, dificuldades sexuais e envolvimento com drogas são frequentes. Algumas vítimas podem desenvolver comportamentos (por exemplo, envolvimento com brigas) com o objetivo de reafirmar a sua masculinidade, que foi maculada pela violência sexual.

– Vocês, pesquisadores no tema, estão detectando algum tipo de mudança neste comportamento?

– Percebo maior discussão social sobre a violência sexual contra meninos. Por exemplo, até cerca de 3 anos atrás, as campanhas de conscientização sobre a violência sexual contra crianças e adolescentes estampavam apenas meninas. Atualmente, são utilizados macacos, sem distinção quanto ao sexo. Na área acadêmica, os estudos científicos no Brasil ainda são muito escassos. O mesmo ocorre internacionalmente. No entanto, o número de estudos têm crescido. O interessante é perceber que estes estudos internacionais tendem a ser realizados com participação de homens com histórico de violência sexual na infância. Isto ocorre, geralmente, porque estes homens mantiveram o segredo sobre a violência sexual até a idade adulta, ou seja, não revelaram durante a infância ou adolescência.

 

 


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