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Direitos Humanos

A hipersexualização do corpo do homem negro, a face “aceita” do racismo

A herança escravagista alimenta uma série de mitos e estereótipos presentes na ontologia do homem de cor

Ajitto, Robert Mapplethorpe, 1981
Weudson Ribeiro
30 de abril de 2017, 12h02

“Você é preto e pobre. Uma cova e uma cela decorada com o seu nome te aguardam. Então, mostre o seu melhor!”

Com essas palavras, dona Lucinária costumava acordar o filho Rodrigo Amaro, 23 anos, todas as manhãs, para levá-lo à escola. O tom assustava. Dado o pouco entendimento sobre questões sociais na infância, o rapaz conta ter crescido sob a impressão de que estaria condenado. “Eu tinha cerca de sete anos quando ouvi aquela frase pela primeira vez. Aprendi cedo sobre o peso que acompanha o homem negro desde o nascimento”, diz ele. “Andar dois passos atrás do homem branco em termos de oportunidades e auto-estima e precisar aceitar a objetificação do próprio corpo como um dos poucos meios de tratamento favorável é algo com que lidamos diariamente.”

O jovem acredita que a hipersexualização projetada sobre a tez de ébano revela uma face cruel do racismo. “Eu recebo tratamento distinto em relação a amigos de pele clara. Com eles, cogitam casar e ter filhos. Comigo, apenas sexo casual… Dizem que pareço ser bom de cama”, conta. A politização, reflete Rodrigo, deu um quê de amargura ao que antes parecia lisonja: “É como se nenhuma virtude, além de um presumido vigor sexual, fosse digna de reconhecimento ou atenção”.

rodrigoamaro

Foto: Weudson Ribeiro

Na avaliação da etnógrafa negra norte-americana Yaba Blay, a herança escravagista alimenta uma série de mitos e estereótipos presentes na ontologia (a “ciência do ser”) do homem de cor, como a naturalização da “criminalidade negra” por parte da mídia. “A constante animalização de seus corpos não os afeta tanto porque a espécie masculina necessita de validação sexual. Serem vistos como fortes e bem-dotados os desencoraja de discutir sobre o abuso implícito que os vitimiza há mais de 500 anos”, explica.

Gênero popular no mercado pornográfico, o roteiro Cuckold retrata maridos brancos como entusiastas de esposas que procuram sexo extraconjugal com “machos alfa” de pele escura, também chamados de “touros” por praticantes de BDSM (sadomasoquismo). O livro A Vênus das Peles (1870), a obra mais conhecida de Leopold Ritter von Sacher-Masoch, aborda a fantasia de forma despudorada, embora eurocêntrica.

Um século mais tarde, o assunto ganharia viés étnico no cinema: em 1975, o boxeador Ken Norton estrelou o filme de blaxploitation Mandingo. A obra conta a história de Mede, um africano de corpo escultural que é forçado a transar com Blanche, sinhá da plantação em que ele trabalhava, sob a ameaça de ser acusado de tê-la estuprado. Após dar à luz o filho do escravo, Blanche e o bebê mulato são sacrificados pelo marido, Hammond. Numa cena emblemática do conceito contemporâneo de “privilégio masculino”, o assassino caucásico lava o túmulo da ex-esposa com um “caldo” feito a partir da carcaça do negro, também morto por Hammond.

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Cena do filme Mandingo, 1975

Cleber Arlequim, 29 anos, conta que sai com mulheres casadas desde os 23, quando deixou a casa dos pais, em Barreiras (BA), para morar no interior do Rio de Janeiro. Ele relata que os maridos são os primeiros a estabelecer contato, a fim de garantir que a aventura não afete o vínculo primário dos cônjuges. O rapaz acredita que, quando há consenso, a fetichização interracial é aceitável: “Não vejo nada de errado nisso. São casais estáveis ​​em busca de adrenalina e prazer. Admiro a atitude de quem me procura para saciar essa curiosidade”, diz. “Todos se divertem.”

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Cleber Arlequim. Foto: Weudson Ribeiro

O protagonismo de homens negros no cerne das grandes bilheterias tem se tornado cada vez mais comum. Numa época focada na exposição feminina, o nu frontal masculino também se prova constante na tevê paga. Esses avanços, porém, raramente se manifestam no mesmo corpo. O thriller de verão da HBO, The Night Of (2016), é um reflexo dessa realidade: na cena mais memorável do episódio The Season of the Witch, o primeiro pênis negro a aparecer no canal famoso por exibir séries carregadas de volúpia pertencia a um cadáver. Por outro lado, o personagem negro mais sexual da atração era um estuprador convicto.

“Por toda parte, a sexualidade de pessoas negras é mais imaginada do que, de fato, vista. Isso dá fôlego ao longo histórico de fetichismo reproduzido sobre homens e mulheres negros. Não há nada de errado com a sexualidade do homem negro inerentemente, mas sim com o vício que alguns dos maiores roteiristas demonstram ao demonizar, negar ou distorcê-la em suas criações”, explica o cineastra paulista Jeferson De. Sociólogo e professor de estudo de mídias da Universidade Federal de Campinas, Noel Carvalho compara a sub-representação da nudez negra à censura ao beijo gay na teledramaturgia tupiniquim.

“Apesar de o meio audiovisual ter dado uma guinada progressista, parte da sociedade não mudou o bastante para permitir que aos personagens negros seja oferecida a mesma gama de seriedade, safadeza e romance presente na retratação comercial da sexualidade branca. Essa exclusão mostra um desconforto geral em relação à ideia conservadora do que é tabu. Conforme artistas, escritores, diretores e produtores negros ganham espaço e voz, esse contexto ganha ares de igualdade”, diz o estudioso, que aponta o premiado Moonlight (2017) como divisor de águas para o cinema negro e queer contemporâneo.

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Robert Mapplethorpe, Retrato de Ken Moody, 1973

Bissexual declarado, Robert Mapplethorpe (1946-1989) foi o principal artista da “geração Warhol” a celebrar o sexo negro por meio da fotografia. Em 1986, The Black Book ganhou notoriedade por enquadrar um anônimo cujo pênis cruzava a braguilha de um terno de poliéster. Há quem acuse o clique erótico de encapsular um problema, uma vez que, ao pôr gênero e raça lado a lado, a representação reforçaria estereótipos, podendo distorcer a compreensão sobre negritude e sexualidade afro. Fotógrafa e professora do Instituto de Artes da Universidade de Brasília, Denise Camargo discorda da tese, que considera “reducionista”.

“Por meio da imagem, o próprio fotógrafo desconstrói a ideia do sexo potente que lhe querem impingir.  Assim, pouco importa se é um pênis negro, homo ou heterossexual, por exemplo”, diz Denise. “O corpo negro transcende a questões de gênero. Trata-se de um corpo identitário  –nem masculino, nem feminino, mas cultural… Uma referência às matrizes ancestrais africanas. Esse é o corpo que deu voltas numa árvore do esquecimento, deixando para trás suas memórias para se reconfigurar em terras desconhecidas. Escravizado, precisou aprender a driblar, gingar, suingar e atravessar encruzilhadas. Os corpos negros não se separam do que, de fato, representam.”

*PAGUE O AUTOR: O repórter Weudson Ribeiro colabora com o blog pelo sistema de “vaquinha posterior”: todas as doações para este post irão para ele. Contribua!

 


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Maurício Saaverda em 17/12/2021 - 10h58 comentou:

Eu me identifiquei com muitas coisas citadas. Eu sou branco, hetero e desde muito cedo fui exposto a pornografia, sou um viciado em recuperação.

Por ter sido exposto desde cedo a pornografia moldou e muito minha cabeça. No começo eu só assistia mulheres, eu não curtia ver um pênis na tela, ainda mais sendo tão diferente (maior) que o meu.

Mas depois migrei para o porno hetero sempre buscando homens brancos por serem maioria e por eu ser branco. Quando assisti o primeiro porno com negro (“negão” como eles chamam) fiquei assustado, parecia ter encontrado um nova pornografia. A indústria sexualiza os negros de tal forma que eles são maiores, mais ousados e mais desejáveis em suas produções

Isso me instigou a procurar mais sobre os BBC (Big Black Cock) e foi quando descobri o Cuckold, gênero que me manteve preso por anos nesse mercado tão prejudicial.

Me questionava se seria “normal” um rapaz branco ter essas preferências. E a Internet apresentou as explicações mais estranhas possíveis:
– Negros são superiores
– A vida de brancos com pênis pequeno é assim
– Aceite sua condição
– Por que não virar BI e aproveitar o negão?
– Ou vc aceita que é um macho beta ou vira travesti
– A Feminização é o futuro dos cornos
– Você só está observando o que mercado tem de melhor (homens negros) e o Cuckold seria uma forma de “participar” disso tudo.

Quando lia os relatos eu percebi muitas pessoas que começaram no mesmo caminho que eu. Exposição muito cedo, vício, insegurança… Só que essas pessoas buscaram suas respostas em fetishs ainda mais estranhos. Talvez alguns até tenham se descoberto nisso mas fiquei com a impressão que a maioria só buscando respostas para o estrago que o porno, e outros setores da cultura, causaram.

Isso foi me despertando a deixar de consumir e a inclusive me conscientizar em como o racismo é velado e perigoso. Não basta não ser racista, tem que ser anti-racista. E um dos lugares onde o racismo é mais forte e destrutivo é na pornografia

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