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Abercrombie & Fitch, a marca coxinha que afundou ao apostar em discriminação

Documentário da Netflix mostra como a pauta identitária modificou hábitos de consumo nos anos 2000 e levou a icônica grife ao colapso

Foto: divulgação Netflix
Iara Vidal
27 de abril de 2022, 13h53

A moda é a vitrine do espírito do tempo. A relação das pessoas com as roupas que vestem muda de acordo com as transformações na sociedade. Um ótimo exemplo dessa simbiose entre o mundo no qual vivemos e o nosso guarda-roupas é retratado pelo novo documentário da Netflix sobre a história de ascensão e queda da marca de moda estadunidense Abercrombie & Fitch (A&F).

Dirigido pela premiada cineasta Alison Klayman (Ai Weiwei: Sem Perdão, Take Your Pills), o longa-metragem Abercrombie & Fitch: Ascensão e Queda (2022), com 1h28 de duração, explora o reinado da A&F na cultura pop na virada do milênio e mostra como a marca prosperou ao apostar em discriminação. E como essa foi a razão de sua derrocada.

Até a década de 1990 do milênio passado, a A&F era onipresente em shoppings, escolas de ensino médio e campi universitários. A combinação do estilo estadunidense com uma tendência não tão sutil de exploração de corpos era a fórmula do sucesso. Só que, sob a imagem tentadora, fervilhava uma cultura corporativa que eliminava funcionários e clientes em potencial com base em raça e aparência física.

O filme disseca a natureza excludente da marca e abre a cortina sobre os processos e desastres de relações públicas que mancharam sua imagem. De acordo com as pessoas entrevistadas pelo documentário –funcionários, jornalistas e ativistas– o tema predominante é que a discriminação era na verdade um recurso e não um bug ou estratégia equivocada.

As raízes da A&F se estendem muito além dos dias de glória do shopping suburbano na década de 1990. A empresa começou como uma marca de peças para serem usadas ao ar livre, vestida por nomes como Teddy Roosevelt e Ernest Hemingway. Foi fundada em 1892 para atender pessoas brancas e privilegiadas de elite.

O primeiro catálogo da marca, de 1909. Foto: WikimediaCommons

Ao longo do século 20, a marca despencou em popularidade, até que, em 1988, foi comprada pela operadora da cadeia de roupas The Limited, liderada pelo CEO Les Wexner. Conhecido como “O Merlin do shopping” pelas táticas de marketing adotadas em marcas como Victoria’s Secret, Wexner levou Mike Jeffries para ser o CEO da A&F. Jeffries foi o responsável por colocar em prática a fórmula discriminatória e de sucesso descrita no documentário.

Uma segunda peça importante foi a publicidade. Jeffries contratou Bruce Weber, famoso fotógrafo de moda com um estilo característico de capturar o erotismo do físico masculino. Os temas onipresentes dos anúncios eram grupos de homens seminus interagindo de forma divertida; o documentário aponta os tons homoeróticos das peças.

Homoerotismo: o ator Ashton Kutcher em um anúncio da marca

Ao longo dos anos 1990, a relevância da marca para a cultura pop cresce com estrelas como Heidi Klum e Ashton Kutcher estampadas em sua publicidade. A empresa construiu um enorme campus, onde os funcionários alegremente passavam a noite toda e se referiam ao ambiente como “a 13ª série”, em alusão a um ano a mais no equivalente ao ensino médio no Brasil, a high school dos EUA .

Jeffries abriu o capital da empresa em 1996, e a A&F deixou a sombra do império de varejo da The Limited três anos depois. As vendas explodiram, com a receita aumentando de 165 milhões de dólares em 1994 para 1,04 bilhão de dólares em 1999.

O milênio chegou ao fim e o reinado da A&F foi abalado na esteira do surgimento de movimentos como Occupy Wall Street, Me too e Black Lives Matter. As sementes dessa militância identitária germinaram no Pós-Guerra, se desenvolveram nos movimentos estadunidenses e europeus da década de 1960. Essa militância foi cooptada pela economia liberal, que se apropriou da concepção moderna dos direitos humanos na raiz desse ativismo civil e individualista.

O auge da A&F durante a década de 1990 foi contemporâneo da queda do muro de Berlim, do fim da Guerra Fria e do ocaso do socialismo soviético. Era um momento de aparente hegemonia do neoliberalismo –o fundamentalismo do livre mercado disseminado por Ronald Reagan nos Estados Unidos, Margaret Thatcher no Reino Unido e Helmut Kohl na recém-unificada Alemanha.

Uma geração que aprendeu não ser apropriado sofrer ou causar bullying, que diversidade importa, cresceu e resolveu não gastar dinheiro com uma marca que era o oposto do espírito do tempo. A exclusão turbinou a A&F e foi a razão da sua derrocada

Naqueles anos em que os EUA eram governados pelo democrata Bill Clinton, os estadunidenses impuseram sua ideologia como verdade universal. Uma ideologia baseada no individualismo, na alienação e na despolitização, mas que também estava conectada às pautas identitárias muito mais pela expansão do mercado consumidor do que por compromisso civilizatório e que passou a bombardear diuturnamente o cidadão comum.

A primeira reação contra a poderosa A&F começou com o conteúdo de camisetas gráficas irreverentes, uma pedra angular das ofertas da marca que foram vendidas com um markup (índice utilizado na formação do preço de venda) de 85%. O humor de estilo adolescente muitas vezes cruzou a linha com temas explicitamente racistas.

A estampa que quebrou as costas do gigante do varejo foi para um serviço de lavanderia fictício chamado Wong Brothers com o slogan “dois Wongs podem torná-lo branco”. Grupos de estudantes asiáticos norte-americanos começaram a protestar em 2002 e levaram a A&F a literalmente queimar todas as peças restantes.

A camiseta racista

Na sequência à fogueira de camisetas racistas, os funcionários da marca começaram a se manifestar contra as práticas de contratação racialmente discriminatórias. Um grupo de nove ex-funcionários não-brancos entrou com uma ação coletiva contra a empresa e o episódio virou pauta nacional.

Em 2004, a A&F resolveu o processo jurídico sem admitir culpa. Apenas assinou o equivalente a um Termo de Ajustamento de Conduta no Brasil no qual concordou em mudar as práticas de contratação e se reportar a um diretor de diversidade nomeado pelo tribunal ao longo de seis anos.  No entanto, um truque de nomenclatura burlou a orientação. A marca passou a chamar os funcionários de “modelos”, tática que acobertou as práticas de contratação racistas da A&F e tudo continuou na mesma.

Na esteira do escândalo das camisetas racistas, funcionários da marca começaram a se manifestar contra as práticas de contratação racialmente discriminatórias da marca. Um grupo de nove ex-funcionários não-brancos entrou com uma ação coletiva contra a empresa

No calor desses escândalos, os modelos de moda masculina da A&F começaram a se manifestar contra o fotógrafo Bruce Weber e entraram com ações judiciais. Embora ele nunca tenha sido condenado por um crime (um caso foi arquivado, dois foram resolvidos sem admissão de culpa), vários modelos homens descrevem no documentário, em detalhes, como foram coagidos a atividades sexuais pelo fotógrafo-celebridade.

O próprio Jeffries esteve no centro de vários outros escândalos. Ele usava palavras como “butch” (gíria ofensiva para se referir a lésbicas) para descrever roupas femininas que não eram femininas o suficiente, era obcecado com a definição estreita de uma estética totalmente estadunidense branca e admitia abertamente as intenções excludentes da marca. Os tamanhos plus, por exemplo, nunca estiveram nas prateleiras das lojas da marca.

Em 2008, outra controvérsia envolveu a A&F e a blogueira de moda Samantha Elauf. Ela apareceu em uma entrevista de emprego na marca usando um hijab (lenço usado por muçulmanas para cobrir os cabelos) preto. Quando o entrevistador levantou o assunto com um gerente de contratação, foi comunicado de que lenços de cabeça não eram permitidos. Elauf entrou em contato com o Conselho de Relações Americano-Islâmicas e a história foi notícia nacional. A A&F não recuou e o caso foi parar na Suprema Corte, que decidiu a favor de Elauf por 8 a 1.

Para além dos problemas de racismo, exclusão e falta de representatividade, o mundo mudou e as roupas deixaram de ser legais. Uma geração criada com outra mentalidade, que aprendeu que não era apropriado sofrer ou causar bullying, que diversidade e pluralidade importam, cresceu e resolveu não gastar o próprio dinheiro em peças de uma marca que era o oposto do espírito do tempo. A exclusão turbinou a A&F e foi a razão da sua queda.

Atualmente, nem Wexner nem Jeffries atuam na empresa. A atual liderança da Abercrombie & Fitch tem feito esforços para se livrar do passado vergonhoso e discriminatório da marca. Funcionários de várias etnias foram contratados e as peças de propaganda da marca dão ênfase para a positividade de corpos diversos.

Como a moda é uma vitrine do espírito do tempo, ainda há muito a caminhar em direção à real representatividade tanto da A&F quanto de outras empresas de moda. Não se apaga um passado de segregação racial, genocídio de povos originários, discriminação contra não-brancos e apartheid de Estado –valores que estão na raiz dos EUA– com a contratação de vendedores de loja de roupas não-brancos.

 


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Suzana Elias Azar em 27/04/2022 - 14h30 comentou:

Matéria fundamental para entender esse caso específico e tantos outros cases do “mundinho da moda”. Parabéns, Iara!

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