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Argentina: a volta das costeletas e da cafonalha neoliberal anti-pobres

Estou tendo um déjà vu. Seria Milei o clone loiro de Menem? A história se repete como farsa... e logo virá a tragédia

Menem, Milei e suas "patillas". Fotos: wikimedia commons
Cynara Menezes
14 de dezembro de 2023, 16h30

Eu sabia que tinha visto aquelas costeletas em algum lugar. A eleição de Javier Milei me trouxe à memória umas suíças vistosas que saracoteavam por aí nos anos 1990, só que mais cheias, com pelos mais escuros. O cenário de desolação na Argentina era similar: hiperinflação, desemprego, pobreza. E os hermanos fizeram a opção então, como agora, de eleger para presidente um populista costeletudo que prometia Estado mínimo, eficiência, combate à corrupção e… dolarização.

Sim, estou tendo um déjà vu. Milei não é o “Bolsonaro argentino”, mas o novo Menem. Para quem acredita em numerologia, nossos vizinhos adoram um neoliberal com cinco letras começadas com M, hein? Menem, Macri, Milei. Menemismo, Macrismo, Mileismo… É tudo igual, o projeto é o mesmo. No fundo, a diferença entre a direita “liberal” e a extrema direita é que a segunda soa mais sincera: não esconde a simpatia pelos regimes ditatoriais que conduziram a América do Sul com braço de ferro nos anos 1960/1970 nem o total desinteresse pelas políticas sociais.

Carlos Menem foi eleito em 1989, quando a administração de Raúl Alfonsín, o primeiro presidente pós-ditadura, naufragava de tal forma que ele resolveu entregar o cargo seis meses antes. A inflação atingia inacreditáveis 3079% ao ano –a atual está na casa dos 100% ao ano. Após o primeiro ano de Menem, pouca coisa mudou: passou a 2314%. Os ricos não se queixavam, o PIB crescia num ritmo médio de 6% ao ano graças à dilapidação do patrimônio público. Os indicadores de pobreza também subiam, mas quem se importava?

A história mostra que não dá para confiar em populistas argentinos de costeletas. Não me refiro nem à estética kitsch da extrema direita militarista, à cafonalha evidente nas fotos da posse, com Milei e a irmã em carro aberto como uma dupla saída de algum filme de terror B. Que gente feia! Estou falando de projeto de governo

Em 1991, com o costeletudo morocho na presidência, a pobreza atingia 21,6%; em 1998, o índice já subira para 25,9%. A indigência praticamente triplicou –afetava 2,6% das famílias em 1991 e 6,9% em 1998. Segundo o Banco Mundial, durante o governo Menem, o número de pobres passou de 9,3 milhões, em 1994, para 13,4 milhões em 1998. O costeletudo rubio Milei assumiu o poder esta semana com índices terríveis: os pobres são 18,6 milhões de argentinos; e os miseráveis, 4,3 milhões.

Só que o próprio Milei admite que a tendência é piorar. “Naturalmente, haverá um impacto negativo no nível de atividade, de emprego, nos salários reais, no número de pobres e indigentes. Haverá inflação, é verdade. Mas não é diferente do que aconteceu nos últimos 12 anos”, disse o presidente em seu discurso de posse. Nesta terça-feira, ao anunciar as novas medidas econômicas, o ministro da Economia, admitiu: “Durante alguns meses vamos estar pior do que antes, particularmente em termos de inflação”. Pior? Ué?

A história mostra que não dá para confiar em populistas argentinos de costeletas (patillas, em castelhano). Não me refiro nem à estética kitsch da extrema direita militarista, ao bastão presidencial ornado com os cachorros clonados de nome em inglês, à cafonalha evidente nas fotos da posse, com Milei e a irmã desfilando em carro aberto como uma dupla saída de algum filme de terror B. Que gente feia! Estou falando de projeto de governo (ou da falta dele): o neoliberalismo costeletudo foi um desastre na Argentina.

Menem conseguiu finalmente estabilizar a inflação com a adoção em 1991 do plano Brady, o plano econômico milagroso gestado nos Estados Unidos que seria replicado em quase todos os países sul-americanos e que previa dolarizar a economia a um para um, ilusão que não durou muito nem lá nem no Brasil. Na Argentina o plano viria a se chamar “plano Cavallo” e aqui, “plano Real”.

Com o plano Cavallo, a inflação no país realmente caiu, de 172% em 1991 a 25% em 1992, mantendo indicadores de um só dígito entre os anos 1993 e 2001. A desigualdade, porém, explodiu: em 1989, os 10% mais ricos da capital e dos distritos da Grande Buenos Aires tinham renda 19,41 vezes superior à dos 10% mais pobres; em 1998, no final do governo Menem, a renda dos mais ricos era 27,83 superior à dos 10% mais pobres. Atualmente, os 10% mais ricos ganham 13 vezes mais do que os 10% mais pobres. É o único país da América Latina onde a desigualdade piorou a partir de 2013 (o desastre Macri que antecedeu o também desastroso Alberto Fernández).

Os neoliberais não costumam informar ao povo antes de as empresas serem privatizadas, mas as privatizações resultam no aumento direto dos gastos da população com os serviços públicos, afetando com maior intensidade os setores menos favorecidos. Não por acaso, uma das primeiras medidas de Milei foi justamente cortar os subsídios que o governo federal concedia ao transporte, em especial o sistema de ônibus, trem e metrô da capital, Buenos Aires, e da região metropolitana. Os preços das passagens irão subir –e quem é que anda de transporte público? Os ricos é que não são.

No fundo, a diferença entre a direita “liberal” e a extrema direita é que a segunda soa mais sincera: não esconde a simpatia pelos regimes ditatoriais que conduziram a América do Sul com braço de ferro nos anos 1960/1970 nem o total desinteresse pelas políticas sociais

O ministro Caputo anunciou ainda o fim do programa “Preços Justos”, do governo Fernández, que previa congelamento dos preços de mais de 1700 itens essenciais para conter o avanço da inflação e a saída de dólares do país. Esta medida irá causar, de acordo com o jornal Clarín, um aumento de pelo menos 180% no preço dos alimentos. Óleo, macarrão, farinha e pão já começaram a subir: o litro de óleo, por exemplo, passou de 800 a 2 mil pesos (de 10,80 reais para 27 reais, aproximadamente) nos últimos dias.

Quando Menem finalmente saiu, o desemprego estava em 16% –com todos os problemas do governo Alberto Fernández, atualmente está em torno de 7,6%. O combate à corrupção também era uma mentira. Nunca se roubou tanto como durante a era Menem, conhecida como “el saqueo” (“o roubo”). O cineasta Fernando Solana relatou toda a roubalheira em seu excelente documentário de 2003, Memorias del Saqueo. Pelo visto a nova geração de argentinos não assistiu, ou 70% dos jovens com menos de 25 anos não teriam votado nele.

Milei é o novo Menem, e nem sequer esconde sua admiração pelas políticas do seu homólogo costeletudo e neoliberal (seria Milei o clone loiro de Menem?). “Cavallo foi o melhor ministro da Economia da História”, disse, em uma entrevista de 2020. “O primeiro governo de Menem foi o melhor governo da História e começou mal. Depois deu certo o plano de convertibilidade. Claramente o o primeiro governo de Menem foi o melhor da História por tudo que fez Cavallo no Ministério da Economia, quer você aceite ou não.”

As análises dos economistas às primeiras medidas do novo governo apontam justamente na direção do “mais do mesmo”: ortodoxas e sem inovação. Corte de ministérios é só perfumaria para atiçar o gado, na prática não significa nada. Milei terá problemas com um Congresso onde não possui maioria e é possível que sua popularidade não resista a mais inflação e ao aumento da pobreza.

Bem a propósito, Zulemita Menem, a vistosa filha do ex-presidente falecido em , foi uma das estrelas da recepção de posse a Milei, e apareceu em entrevistas na televisão reivindicando o legado do pai. “Foram muito duros com meu papai”, disse Zulemita, que atuou como primeira-dama do país após a separação de Carlos e Zulema, em 1990. Nas redes sociais, há uma semana, contou que havia promovido um encontro entre o pai e Javier Milei quando jovem, e depois teria comentado: “O guri é mais menemista que vocês”.

Na posse, o filho dela, Luca Bertoldi Menem, gargalhava em fotos ao lado de ninguém menos que Jair Bolsonaro. “Fiz rir ao melhor presidente do Brasil”, publicou no instagram. A direita liberal se derrete diante da extrema direita, literalmente.

Luca Menem e Bolsonaro. Foto: reprodução instagram

E para completar o déjà vu, Martín Menem, de 48 anos, sobrinho de Carlos Menem e presidente do A Liberdade Avança, o partido de Milei, é o novo presidente da Câmara dos Deputados. Ele é apontado como o homem forte do mileismo, mas, inexperiente na política, é uma incógnita se terá pulso para conduzir as negociações no Congresso.

A história se repete como farsa… E logo virá a tragédia.


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(3) comentários Escrever comentário

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Caiowa em 16/12/2023 - 12h22 comentou:

O arroxo de agora não é pra empobrecer, mas pra exterminar mesmo. O desprezo ao excluído é igual entre todos os minions.
Se vc nao tem quatro rodas novas nao é grnte. Solução: Genocídio, mas na visso do vilão, nao somos gente logo nao seria Genocídio.

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Vinicius em 19/01/2024 - 21h54 comentou:

Cai de paraquedas nesse site. Mas até que estou gostando de rir dessas ” piadas que você escreve”. Como o Milei está piorando o que a esquerda fez com a Argentina? 😂😂 Você deveria trabalhar na Globo News ao lado da Daniela

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Rodrigo em 23/03/2024 - 11h07 comentou:

A Cynara é como todo esquerdista que sabe escrever razoavelmente bem: julga que textos escritos com o mínimo de coesão e coerência refletem algum pensamento também coeso e coerente. Se lhe fizer alguma pergunta um pouquinho mais difícil sobre economia, que envolva uma escolha difícil entre objetivos sociais igualmente desejáveis, vai deitar alguma falação pseudofilosófica em que a palavra neoliberal vai aparecer 2 587 vezes.

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