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Ativismo feminino: gibi retrata a luta de mulheres contra a opressão no mundo

"Reflexos do Mundo: Na Luta", de Fabien Toulmé, mostra como as mulheres se organizam e combatem por seus direitos em três continentes

Detalhe da capa de "Na Luta", de Fabien Toulmé
Piu Gomes
11 de janeiro de 2024, 21h14

Fabien Toulmé começou a carreira de quadrinista aos 34 anos, depois de se formar e trabalhar como engenheiro em diversos lugares do mundo, incluindo João Pessoa, na Paraíba, onde conheceu Patricia, com quem se casou. A estreia veio com Não Era Você Que Eu Esperava, onde conta de maneira sensível como lidou com o nascimento de Julia, sua filha, portadora de síndrome de Down.

Em 2018, ele misturou quadrinhos e reportagem na trilogia A Odisseia de Hakim, onde um jovem sírio narra as provações pelas quais passou com sua família ao fugir da guerra. E seu último lançamento segue a mesma linha. Reflexos do Mundo: Na Luta mostra como as mulheres se organizam e combatem por seus direitos em três continentes.

O quadrinista Fabien Toulmé usa as histórias reais e as lutas cotidianas de três mulheres, uma libanesa, uma brasileira e uma beninesa para fazer um retrato da luta feminista ao redor do mundo

A jornada começa pela Ásia, em plena Thawra, a revolução que sacudiu o Líbano em 12/11/2019. Devido ao movimento, uma feira do livro programada para Beirute é cancelada, mas Toulmé decide manter a viagem, para ver de perto as manifestações e falar sobre elas de uma perspectiva humana, como seu antigo professor de história fazia –por exemplo, esteve presente na queda do Muro de Berlim.

O Líbano estava envolto em corrupção e numa crise econômica  persistente, e a insatisfação da população com as classes dominantes se traduziu em manifestações pacíficas, onde se cantavam canções  infantis e se faziam selfies com os militares responsáveis pela segurança. Foi esse clima que atraiu Fabien, que no início se sentiu um velho correspondente de guerra, personagem de um filme de James Bond no bar térreo de um hotel classudo mas praticamente deserto.

Ilustras: imagens do gibi “Na Luta”

A chegada de um enviado do governo francês e o temor de uma ingerência política atrapalham os planos de Toulmé, que é desencorajado a participar das manifestações. O clima esquenta ainda mais com uma desastrosa fala do presidente líbanês, incentivando os descontentes à emigração. A população levanta barreiras rodoviárias por todo o país, e pela primeira vez, um manifestante é morto por um militar. É quando Fabien encontra Nidal, e o desejado ponto de vista humano ganha uma potente voz, que representa a presença maciça de mulheres no movimento.

Da classe baixa na sociedade patriarcal libanesa, Nidal teve de trabalhar desde os 15 anos para pagar a faculdade. Formada em jornalismo, trabalha como freelancer, aluga quartos no AirBnb, faz projetos culinários, é cantora e palhaça

Oriunda da classe baixa libanesa numa sociedade patriarcal, Nidal teve de trabalhar desde os 15 anos para pagar a faculdade. Formada em jornalismo, ela trabalha como freelancer, aluga quartos no AirBnb, faz projetos culinários, é cantora e palhaça. Ela não se considera uma ativista, mas sim uma feminista, o que ela entende como lutar não apenas pelos direitos das mulheres, mas pelos direitos de todos, por toda forma de justiça social. Torna-se figura de destaque nos atos, o que a faz ser perseguida nas redes sociais e por uma tv ligada ao presidente.

Nidal significa “combatente” em árabe, e a personagem faz jus ao seu nome. Por acreditar na amplitude do movimento, nas denúncias que atingem todos os políticos, e sobretudo no fato da união do povo trazer o orgulho de serem libaneses, não imagina sair do país, mesmo acreditando que seu futuro lá está “queimado”: é uma questão de tempo até a polícia ir atrás dela, pensa.

Depois do Líbano, Fabien consulta um sociólogo para entender melhor situações como essa, e Olivier Fillieule vê essas revoltas como uma reação à opressão das elites governantes que utilizam o estado em proveito próprio. Ele aponta também que além de lutar para ganhar algo, muitas vezes o objetivo é não perder o que já se tem. E é exatamente isso que o autor encontra na comunidade do Porto do Capim: em visita à família da esposa em João Pessoa, ele descobre a luta das mulheres paraibanas contra a gentrificação da localidade, proposta em 2019 pela prefeitura, ironicamente na época ocupada pelo… Partido Verde.

Rossana é neta de Pedro e Petra, das primeiras famílias que se instalaram no Porto do Capim, na Paraíba. Detalhe: os pescadores chegaram lá em barcos conduzidos… por mulheres. Ela acredita que o confronto passa pelo embate entre o homem “egocentrado” e a mulher que defende a família

O antigo porto da capital paraibana, às margens do rio Sanhauá, é ocupado desde 1940 por famílias de pescadores, imigrantes de zonas rurais e pelos trabalhadores portuários que ficaram desempregados com a transferência das atividades para Cabedelo. Como parte do processo de revitalização do centro da cidade, surge em 2019 o projeto do “parque ecológico do Sanhauá”, que de ecológico não tem nada e implica na demolição das casas e remoção das famílias da comunidade, que há muito se organizavam para defender seus direitos.

“Eu faço parte da Associação de Mulheres do Porto do Capim e sou moradora há 55 anos. Cinquenta e cinco anos, prefeito, não são cinquenta e cinco dias não, viu meu amor! Nós gostamos de morar na beira da Maré, nossa Mãe Maré, e é lá que vamos ficar! Exigimos isso! Estou gritando pelo meu direito porque eu quero envelhecer lá!’ Foi o que disse Odacy de Oliveira Santos, na Assembleia Legislativa da Paraíba em 11 de abril de 2019. E completou: “A natureza, a Maré nos torna desse jeito: mulheres fortes e homens fortes. Nossa Associação é de mulheres, mas a gente dá uma brechinha para os homens também!”.

Mas os homens não aproveitaram o espaço, e a Associação se tornou mesmo das mulheres fortes do Capim, que chamaram Rossana para agregar a juventude, através da arte, no processo. Pouco depois ela já era presidente da Associação e os resultados apareceram: iniciativas como o grupo de dança “Garças do Sanhauá” trouxeram visibilidade para a comunidade e culminaram com uma decisão judicial que paralisou as obras, em 2020, devido ao fato das terras pertencerem à União. O estrago, porém, já havia começado.

Em visita ao Porto do Capim, Fabien conheceu alguns de seus “bairros”. Na Vila Nassau, encontra casas demolidas pela prefeitura, a maioria delas pertencentes a moradores recentes, que visavam os novos apartamentos oferecidos em outro setor da cidade, numa região disputada por facções criminais. No Sítio do Picapau Amarelo, conhece o que chama de “pomar comunitário”, repleto de coqueiros, mangueiras, pássaros e, claro, árvores derrubadas em nome da ecologia que busca “concretar tudo”, como disse Odacy, sua guia. No Curtume, se encanta com os prédios da época colonial.

Rossana é neta de Pedro e Petra, das primeiras seis famílias que se instalaram no Capim. Detalhe: os pescadores das ilhas do rio chegaram lá em barcos conduzidos… por mulheres. Ela acredita que o confronto entre o interesse individual e o coletivo passa pelo embate entre o homem “egocentrado” e a mulher que defende a família, e logo tem mais noção da “globalidade”.

Para proteger suas tradições, a Associação se conecta com a modernidade e traz uma proposta alternativa à da prefeitura para um verdadeiro parque ecológico, começando por obras de saneamento e investimento em educação. Administrado com participação de uma cooperativa, prevê uma horta comunitária e turismo sustentável, baseado na preservação, na culinária e artesanato tradicionais. Mas como Nidal, também tem dificuldades no papel de liderança: afinal, é difícil ficar sempre se perguntando sobre o amanhã.

Da Paraíba para o Benin. Toulmé encontra Chanceline, ativista que busca ajudar jovens africanas a se empoderarem e mudar uma realidade onde são educadas a ser “uma verdadeira mulher africana”, que sofre sem se queixar dos abusos de uma sociedade machista e patriarcal. Focando em temas como a gravidez precoce, ela traz a vivência do teatro e poesia slam. Começou pouco depois do 9º ano, quando menstruou e teve de encarar dúvidas do pai se não havia perdido a virgindade.

Ela narra o início: “Eu via esses grupos como um lugar para conversar com meus colegas sobre coisas que não poderia discutir em casa. Comecei a escrever sobre a importância da educação sexual para as crianças, bem como sobre a luta contra a violência em meninas e mulheres. Percebi que depois de cada uma de nossas apresentações, as pessoas faziam perguntas e conversavam sobre esses assuntos e surgia uma conversa. Então, continuei.”

Chanceline é ativista no Benin, e busca ajudar jovens africanas a se empoderarem e mudar uma realidade onde são educadas a ser “uma verdadeira mulher africana”, que sofre sem se queixar dos abusos de uma sociedade machista e patriarcal

No vilarejo de Avrankou, Toulmé e um cinegrafista da TV5 participam de um encontro de Chanceline com estudantes de diversas idades, meninos e meninas, e testemunham como seu papo reto bate na turma: “Acredito que quando algo está errado nas nossas comunidades, devemos falar sobre isso e ter conversas! Porque não encontraremos soluções sem conversas, a ferramenta que nos permite compreender porquê e como as crianças, meninas e mulheres são afetadas”. E para Chanceline palavras representam atos, como retrata a obra na relação de toda a vida com seu pai.

A luta dessas mulheres é peleja constante, e árdua. Fabien reencontra suas personagens, e a realidade mostra que o desejo por mudanças não tem caminho fácil. Apesar da participação em órgão internacionais, como a ONU, Chanceline reconhece que o Benin reluta em conscientizar-se e repete as práticas misóginas.

A Thawra não sobreviveu e Nidal foi processada por blasfêmia e calúnia contra o presidente, acusada de ser agente da CIA, e recebe ameaças constantes pelas redes sociais. Mas se recusa a deixar o Líbano, pois seria “como abandonar as pessoas que estão em apuros”. Finalizado em 2022, o livro termina com Rossana dando conta que, apesar das dificuldades, o diálogo com as autoridades caminhava bem. Em 2023, porém, todos seriam surpreendidos por decisão judicial que retomava o antigo projeto do parque.

Fabien Toulmé continua com seu traço leve, abusando do duotone em diversos tons e mantendo a diagramação clássica. Ele afirma que a motivação para escrever Na Luta foi falar de casos particulares e tentar entender algo mais amplo, para compreender melhor a nós mesmos. Como abrir uma janela para ver o todo da grande paisagem, e mostrar reflexos do mundo. Esse espelho traz três mulheres corajosas que querem um mundo melhor. E não desistem.


Reflexos do Mundo: Na Luta
AUTOR: Fabien Toulmé

EDITORA NEMO, 344 págs., R$ 94,90

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Thaís Bialecki em 20/02/2024 - 21h19 comentou:

Que ideia maravilhosa. A arte é uma arma poderosa na luta contra a opressão.
Minha sororidade, Thaís Bialecki.

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